Esquizoanálise e Micropolítica: Anestesia Social e os Fenômenos de Revolta e Contra-revolta

Esquizoanálise e Micropolítica:

Anestesia Social e os Fenômenos de Revolta e Contra-revolta.

Universidade de Pernambuco(UPE)

Cadeira de Introdução à Esquizoanálise.

Raul Magalhães Brasil.

É difícil dizer se existe qualquer momento da história que não tenha sido único, cada tempo tem sua peculiaridade, é fato. Mas este tempo em que estamos vivendo… é peculiar entre os peculiares.

I. A Experiência do Contra-Contágio.

Tive a oportunidade de escutar de um amigo o depoimento de sua indignação para com o status quo do Brasil. Tamanha era que ele não aguentava mais ficar imóvel em casa, presenciando as barbaridades microfascistas que o presidente e seu governo cometem diariamente. Ele percebia a necessidade de um nomadismo, de um movimento de ruptura, mesmo que pequeno, mesmo que molecular. Um fluxo revoltoso alimentava a fonte de suas máquinas desejantes.

Tentou transformar os movimentos internos em movimento externo, e da sua revolta pessoal tentou fazer uma revolta coletiva. Convocou amigos, e amigos convocaram amigos, logo então eram dezenas de pessoas em aliança, unidas por um afeto comum: a revolta. O devir-revolucionário estava prestes a criar linhas de ruptura, de inadequação, emancipação voluntária.

No entanto, nessa pequena amostragem, nessa micro-tentativa de protesto, nesse pequeno nomadismo, pôde-se perceber um fenômeno tão potente quanto o devir, quanto a aliança, ou ainda, tão poderoso quanto o próprio contágio que uniu aquelas pessoas num afeto comum: falo do fenômeno do contra-contágio. Quase análogo a uma pulsão de morte. Primeiro vem o desejo por mudança, que une a todos, que cria união, que cria aliança e que fomenta a revolta, contagiando e afetando. Logo em seguida vem o contra-afeto, o desejo por mudança se transforma em pessimismo rapidamente, niilismo político, conformismo, sedentarismo microfascista… Primeiro um diz: “o que isso vai mudar efetivamente?” contra-contagiado, um outro reflete: “será que deveriamos fazer isso mesmo?” e o contra-contágio se concretiza com aquele que diz “não vou mais fazer isso, não vai dar em nada mesmo”. Logo todos desistem da revolta, da insubmissão, da inadequação e readquirem suas linhas duras: o estudante retorna à academia, o operário à fábrica, o trabalhador à loja e o revoltoso ao sofá.

Dessa experiência podemos fazer um mapeamento generalizado da cartografia do sujeito brasileiro: A tessitura de sua subjetividade está muito bem alicerçada em linhas duras, em linhas de captura. As máquinas burocráticas e de estado muito sutilmente se confundem com máquina abstrata de sobrecodificação e diante disso, qualquer tentativa de ruptura com as segmentaridades logo é capturada, mutilada, decalcada e logaritmizada.

O afeto do brasileiro está cristalizado em um circuito afetivo sobrecodificante, que desemboca em uma servidão voluntária, em um conformismo análogo à patologia, em um microfascismo de si e do mundo, em um pessimismo, em um niilismo político, em suma: em uma anestesia social contra-contagiante e contra-revoltosa.

II. Anestesia Social.

Uma pergunta que a muito tempo considero ser relevante e que também a muito tempo não consigo dar resposta é a seguinte: “por que o povo não se revolta?”. Etienne de La Boétie tentou responder a esta pergunta, à sua maneira, mas creio que seu Discurso Sobre a Servidão Voluntária não daria conta da configuração subjetiva do indivíduo peculiar que é o brasileiro.

Assistimos à “Marcha dos 300” que ocorreu na frente do planalto esse ano, um movimento marcadamente fascista dirigido pela Sara Winter, assistimos à brutalidade com à qual o exército brasileiro fuzilou com 80 tiros um pai de família por causa da cor de sua pele, assistimos a perseguição diária aos indígenas, ao desmatamento desenfreado de nossa floresta natural e o que fazemos? Nos revoltamos, claro! Mas a revolta atua numa microesfera ínfima, que logo é tomada pela macroesfera, o sentimento de revolta é silênciado e logaritimizado antes mesmo de nos levantarmos do sofá. Assistimos à desgraça que cai sobre nós sem mexer um único dedo, sem realizar um único movimento numa tentativa de mudar a realidade. O sentimento é o seguinte: de impotência. Faltam forças, falta poder, o brasileiro não crê que existe mudança possível, revolta possível, tudo o que se pode fazer cai sobre as costas de um Grande Outro(aqui não se fala de Lacan). Algo horrível aconteceu, então se pensa “alguém tem que mudar isso” e tudo se encerra nesse cenário. Automaticamente exclui-se a si do cenário, se retira-se do horizonte de possibilidades de mundo e as coisas ficam a mercê: “existe esse problema, alguém precisa resolvê-lo, mas esse algo não é e nem tampouco será eu”.

À um convencimento generalizado de que a realidade das coisas é imutável, e isso se transmite num “O Brasil é assim mesmo”, ou ainda “O Brasil é uma merda” — esse último, confesso, é o meu favorito —. É como se a sociedade estivesse anestesiada, imobilizada, paralisada. O sofá se torna o coliseu onde as lutas diárias acontecem diante dos nossos olhos, e nós nos limitamos a nos entreter com a nossa própria desgraça que ocorre diante dos nossos olhos. Sem revolta, sem protesto, apenas silêncio e conformismo.

III. Intervalo: Estado Suicidário.

Necropolítica é uma maneira de gerir o estado que é imanente ao liberal-capitalismo. O Brasil é um país que como quase nenhum outro desenvolveu essa tecnologia social de gerenciamento da morte e da coisificação das pessoas. A necropolítica do Brasil(que é não só macropolítica, com as estratégias de silenciamento, desaparecimento e extermínio, mas também micropolítica, onde a sociedade do desaparecimento retroalimenta-se em um circuito afetivo microfascista) foi herdada e desenvolvida em 2 pontos notáveis de nossa história: o período da colonização e o período da ditadura militar. No entanto, com a ascensão de Bolsonaro ao poder, com a crise econômica e com a crise de saúde do coronavírus chegamos a um novo estágio da necropolítica brasileira, estágio esse que Vladimir Safatle muito habilmente apontou como sendo um Estado Suicidário:

Engana-se quem acredita que isto é apenas a já tradicional figura do necroestado nacional. Caminhamos para além da temática necropolítica do Estado como gestor da morte e do desaparecimento. Um Estado como o nosso não é apenas o gestor da morte. Ele é o ator contínuo de sua própria catástrofe, ele é o cultivador de sua própria explosão. Para ser mais preciso, ele é a mistura da administração da morte de setores de sua própria população e do flerte contínuo e arriscado com sua própria destruição. O fim da Nova República terminará em um macabro ritual de emergência de uma nova forma de violência estatal e de rituais periódicos de destruição de corpos.(SAFATLE, Vladimir. 2020)

IV. Contra-revolta Constante Como Fascismo de Si e do Mundo.

O estado não está somente no plenário ou na câmara, o estado é um leviatã que estende seus tentáculos sobre cada buraco que encontra. Há estado em cada coisa que você faz, em cada detrito que você dejeta e em cada bueiro que você encontra: o estado está ali. Há macroestado, com uma órbita gravitacional de poder, que captura todos os outros corpos, e também há microestado, que se traduz pela ressonância dos focos de poder nos buracos. Há um buraco negro no centro da Via Láctea, e é ao redor dele que tudo se configura, que tudo gira, é através desse buraco negro, dessa órbita gravitacional de poder, que se configuram as subjetividades individuais. É isso o que cria esse Grande Outro não-lacaniano, é isso o que silencia a revolta: macroestado gravitacional e microestados de ressonância.

O leviatã tem articulações estratégicas de mutilação: as máquinas sociais configuram nossas máquinas desejantes, as máquinas burocráticas cansam e obstruem nossos fluxos. O nosso desejo é mutilado e direcionado, logo depois nós somos castrados e sugados. “Não posso participar do protesto porque tenho que trabalhar amanhã”, microfascismo de si que alimenta o fascismo de mundo, a dominação não é somente macropolítica, as instâncias de poder e de castração estão também na subjetividade, e é aí que o estado tem seu foco de poder.

Tudo o que o estado menos quer é punir. Tudo o que o estado faz é numa tentativa de punir cada vez menos, e por que? Porque punir é caro e não dá lucro. E é nessa tentativa de não punir com a qual a máquina do estado opera suas sobrecodificações: Não é preciso punir o povo, se o povo não se revoltar. E há aí todo um empenho constante que trabalha em função de uma contrarrevolta. Há estado em cada buraco: há contrarrevolta em cada buraco. O estado cansa os revoltosos, suga suas energias e mutila seus devires, antes mesmo de se pensar em revolta, o afeto é capturado e sobrecodificado, todo pensamento de “é preciso mudar isso” é seguido de “não há nada que eu possa fazer para mudar isso” e é assim que o estado opera, criando microfascismos que alimentam o fascismo de si e do mundo.

O estado brasileiro é um estado de desaparecimento, não falo somente da coisificação das pessoas e de necropolítica, falo de silenciamento, silenciamento de si, auto-censura constante, máquina de guerra que combate as máquinas de guerra. No Brasil os nômades são os fascistas, esses sim realizam movimentos numa tentativa de alimentar e instaurar o fascismo. Os não-fascistas é quem são os sedentários, quem não realizam movimentos, sejam esses movimentos afetivos ou movimentos revolucionários, há aqui uma inversão preocupante de papéis. Os tentáculos do estado acariciam os fascistas enquanto enforcam os não-fascistas.

E onde isso culminará? Ora, eu já respondi a isso muito tempo atrás em meu ensaio “Esquizoanálise e Produção de Subjetividade: Os Processos de Logaritmização do Indivíduo”: Os processos de logaritimização são fascistoides e culminam numa única coisa: destruição.

Esses indivíduos podem tanto criar sociedades fascistas como delas nascerem. Podem também, criar células fascistas que se organizam ao redor do poder gravitacional institucionalizante de um líder e em detrimento do poder desse líder, que é massificante e normalizante, unirem-se em massas que ameaçam a liberdade e a democracia.(BRASIL, Raul M. 2020)

Corpos cancerosos que se espalham por contra-contágio. Nessa sociedade, fascistas coexistem com não-fascistas sedentários, e esses corpos se unem no silenciamento da revolta e dos corpos desviantes. Tudo é capturado e docilizado, tudo é logaritmizado ao extremo e reduzido ao absurdo. O que pode um corpo fascista como esse? Safatle tem a resposta:

Um Estado dessa natureza só apareceu uma vez na história recente. Ele se materializou de forma exemplar em um telegrama. Um telegrama que tinha número: Telegrama 71. Foi com ele que, em 1945, Adolf Hitler proclamou o destino de uma guerra então perdida. Ele dizia: “Se a guerra está perdida, que a nação pereça”. Com ele, Hitler exigia que o próprio exército alemão destruísse o que restava de infraestrutura na combalida nação que via a guerra perdida. Como se esse fosse o verdadeiro objetivo final: que a nação perecesse pelas suas próprias mãos, pelas mãos do que ela mesma desencadeou(SAFATLE, Vladimir. 2020)

Referências

BRASIL, Raul M. Esquizoanálise e Produção de Subjetividade: Os Processos de Logaritmização do Indivíduo. Recanto das Letras. 29 de set. de 2020. Disponível em: <https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-sociedade/7074990>. Acesso em 8 de nov. de 2020.

LAURO, Rafael; TRINDADE, Rafael. Bem-vindo ao Estado suicidário. Razão Inadequada, 7 de maio de 2020. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/portfolio/73-bem-vindo-ao-estado-suicidario/>. Acesso em 8 de nov. de 2020.

SAFATLE, Vladimir. Bem-vindo ao Estado suicidário. GGN, 25 de mar. de 2020. Disponível em: <https://jornalggn.com.br/blog/doney/bem-vindo-ao-estado-suicidario-por-vladimir-safatle-n-1-edicoes/>. Acesso em 8 de nov. de 2020.

TRINDADE, Rafael. Foucault - Por que a prisão?. Razão Inadequada, 11 de nov. de 2018. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2018/11/11/foucault-por-que-a-prisao/>. Acesso em 8 de nov. de 2020.