Linguagem, Poder e Discriminação

“A língua é um enorme iceberg flutuando no mar

do tempo e a gramática normativa é a tentativa

de descrever apenas uma parcela mais visível

dele, a chamada norma culta.” (BAGNO, 1999).

Hoje em dia, a frase que mais ouvimos acerca da linguagem e tudo o que a permeia, é: língua é poder. Penso ser isto coerente, afinal, quando uma nação ascende, suas formas de manifestar-se ou até os elementos essenciais à sua existência também acompanham o ritmo de importância. Se assim não fosse, a língua inglesa não seria a segunda mais falada no mundo (só perde para a chinesa por motivos de grandezas territoriais e números de habitantes). A nossa língua, a portuguesa, aparece em nona posição. Mas esta posição seria o reflexo apenas de motivos territoriais ou de número de falantes seus?

A língua portuguesa com toda a sua essência analítica é complexa. A começar em níveis de Brasil, onde o termo mais viável a ser empregado a ela seria a nomenclatura de “Língua Brasileira”.

Quando alegamos que linguagem é poder, também estamos criando com isto e a partir disto uma identificação de extremos. Pois o poder não é para todos. Logo, linguagem também é discriminação.

Digo identificação de extremos porque a nossa língua já começa a discriminar no próprio texto constitucional, o qual diz todos as pessoas serem iguais perante a lei. O problema é que esta lei é feita numa língua que só uma minoria dos mais de cento e oitenta e três milhões de brasileiros entende.

Outro fato que separa os mais de cento e oitenta e três milhões de universos brasileiros é o analisar da língua em si. Sabemos que a linguagem é a capacidade nascida com o homem, a qual lhe permite a comunicação; no mesmo raciocínio, sabemos que a língua é um instrumento peculiar de comunicação e exterior ao indivíduo; e, por fim, a fala é o ato intencional em nível individual de inteligência. Ou seja, linguagem é poder natural, é todo heterogêneo; língua é natureza homogênea, é código imutável; e fala é subjetividade.

Partindo das definições que apresentei, podemos usar a inferência e ver a língua portuguesa (brasileira, para mim) e a nossa gramática normativa como uma linha reta. Então, quem se afasta desta linha reta é considerado inculto, vulgar, sem instrução.

A questão é que em uma nação tão grande quanto o Brasil, a língua também é termo de estratificação e marginalização. Já não basta o sem-terra e o sem-teto, agora temos o sem-língua. Uma pessoa não fala de forma inculta simplesmente por falar, ela não se desvia da tal linha reta só por birra ou vontade de não seguir os padrões, como se ela pensasse “Ah, hoje eu vou infringir totalmente essa língua doida que todos falam!”.

Não, isso tudo é questão de cultura. Não podemos menosprezar quem não fala do jeito culto porque este é o jeito de quem fala assim. Não devemos transformar este acontecimento em contracultura (como Cabral fez com os índios, em 1.500), porque o Brasil é gigantesco e não possui uma única língua ou uma homogeneidade lingüística. Aliás, isto o que eu acabei de citar acima é mais um dos muitos mitos concernentes à linguagem, à língua e à fala no Brasil. Mitos estes que compreendem todos os tipos de pensamentos que vão desde a insistência de que português é difícil ao ditado que só os ricos o falam corretamente, desde a mentira de que só em Portugal se fala bem o português ao mito de que é preciso saber a gramática para falar e escrever corretamente.

O mais leve a se fazer sobre os muitos que não falam ou se expressam como os poucos, seria tornar este fato uma subcultura ou uma das duas culturas lingüísticas brasileiras imperantes: a forma “culta” gramatical e a forma “culta” popular.

Eu, particularmente, penso que sempre existiu e sempre existirá este contraste sobre linguagem. É muito arriscado dizer que o povo tem de acompanhar a gramática, porque a expressão comunicativa (escrita ou falada) se renova com o passar dos segundos. Se o povo tivesse de prender-se deste modo, a uniformidade enjoaria todos, não atenderia a todos. É igualmente perigoso dizer que a gramática deve seguir o povo, porque tudo viraria um festival de asneiras e não haveria a uniformidade necessária à ordem a ao progresso.

Esta relação língua-povo-gramática é muito frágil, ao mesmo tempo em que se mostra auto-construtiva e auto-destrutiva, também.

Obviamente, a palavra e a língua têm de se fazer valer numa nação, mas elas não podem atropelar a natureza dos integrantes desta mesma nação. Língua é poder, sim, uma vez que nascemos com bocas e ouvidos para falarmos e deixarmos os outros falarem.

O que deve ser feito é uma melhor exploração ou manipulação deste poder. Claro, não podemos atentar mais para um lado do que para outro, ou seja, não podemos fraudar a balança na qual lingüística e gramática estão juntas. O que precisa ser feito é encontrar como favorecer qualquer harmonia entre as duas; e se esta “qualquer harmonia” já existe porém esconde-se a preferir o implícito, o que carece ser feito é a adaptação, para que o substantivo “discriminação” não faça par com o substantivo “linguagem”.

Referência bibliográfica

BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz”. Edições Loyola, São Paulo: 1999.