Livro : Nove Noites, de Bernardo Carvalho

1 Recuperação biobibliográfica:

Bernardo Carvalho

Bernardo Carvalho nasceu em 1960 no Rio de Janeiro, é escritor e jornalista. Foi repórter, editor e correspondente da Folha de São Paulo em Paris e em Nova York. Assina uma coluna, a cada quinze dias, no caderno Ilustrados da Folha. . Possui os livros Aberração e Os Bêbados e os Sonâmbulos publicados na França pela editora Rivage. Em 2003, ganhou dois dos principais prêmios literários no Brasil; o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte, na categoria romance, com o livro Mongólia e o Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, com a obra Nove Noites. Além disso, foi homenageado com o prêmio literário Machado de Assis. Mongólia, o último livro de Bernardo Carvalho resultou-se dos dois meses em que o escritor passou naquele país e de 5000 quilômetros de viagem, com uma bolsa oferecida pela editora portuguesa de Livros Cotovia pela Fundação Oriente.

Obras:

Aberração (contos)1993, Onze 1995, Os Bêbados e os Sonâmbulos 1996, Teatro 1998, As Iniciais 1999, Medo de Sade 2000, Nove Noites 2002, Mongólia 2003.

2 Recuperação da narrativa e dos narradores do romance Nove Noites:

O romance Nove noites inicia-se como uma parte de uma carta do narrador Manoel Perna que introduz o tema do romance, funcionando como uma espécie de prefacio. Não é tanto a saga do personagem de que fala o romance, mas, principalmente do difícil processo de reconstituição de fatos que são inapreensíveis. Assim ele se dirige a seu narratário : ”Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui”.

O livro Nove Noites constitui-se em duas narrativas autônomas sobre o suicídio do antropólogo americano Buell Quain em agosto de 1939. Os textos iniciam com as letras no formato itálico com os dizeres “Isto é para quando você vier”, esta frase começa oito capítulos apresentados por esse narrador homodiegético , que se constitui num foco narrativo em primeira pessoa, entretanto, não é o personagem principal, pois possui caráter secundário e na narrativa funciona como uma espécie de testemunha que descreve os acontecimentos com envolvimento e lirismo. O personagem Manoel Perna era engenheiro de Carolina encarregado do posto indígena Manoel de Nóbrega, morreu em 1946, afogado no rio Tocantins, durante uma tempestade, quando tentava salvar a neta pequena. Na narrativa é mostrado como amigo, além disso, aparece como uma espécie de confidente a quem Buell destina as oito cartas escritas antes do suicídio.

O segundo relato constitui-se numa escrita objetiva em que o narrador autodigético atravessa experiências, é uma espécie de narrador-personagem, porque participa e reflete a situação da narrativa. Ao mesmo tempo, denota-se nesses dez relatos a mistura de narradores na primeira, quando o personagem explica a investigação e o tormento pessoal para descobrir dados sobre o suicídio de Buell, por exemplo, “Procurei a antropóloga que havia escrito o artigo”( p.14), na terceira, no momento que em descreve os dados sobre Buell, como, “ Quando se matou,,,,”(p.15). É um jornalista (uma espécie de autor empírico) que parte de um dado real para a ficção, lê um artigo de jornal em que aparece o nome de Buell Quain, sessenta dois anos depois da sua morte. É nessa parte da narrativa em que são detalhados os dados reais da pesquisa, a reconstituição do personagem Buell, família, formação cultural (viagens e pesquisas), amigos, cartas, fotos e o contexto histórico em que o personagem estava inserido.

Na sexta parte da narrativa, o narrador em primeira pessoa (jornalista) descreve a infância entre os índios no Xingu, ao mesmo tempo permeia um narrador em terceira pessoa contando que Buell também acompanhava o pai em viagens, assim levando-nos a uma relação de alteridade entre o narrador e o personagem. Neste capitulo, o narrador (jornalista) vai para o Xingu, obter informações sobre os índios Krahô, as relações de alteridade continuam, a data que o narrador parte para aldeia é a mesma que o personagem cometeu o suicídio (2/8). Do mesmo modo, o narrador discute a própria escrita do livro que levaria a metaficção , quando refere-se às teorias sobre o suicídio de Buell com amigos. Do mesmo modo, no momento em se questiona que não há mais nada para pesquisar, no entanto que precisa terminar o livro:

“..eu precisava ver um rosto, nem que fosse como um antídoto à obsessão sem fundo e sem fim que me impedia de começar a escrever o meu suposto romance(…) com pesquisa terminada e o livro publicado.” (p. 157)

Na narrativa, Quain deixou oito cartas, que escrevera antes de morrer. De todas se sabia o destinatário, à exceção da oitava, de que tampouco se sabia o paradeiro. Ela foi deixada com Manoel Perna, que morreu e só legou de testamento sua própria carta. Diante da impossibilidade de reconstituir os fatos que levaram Quain à morte, o narrador decide: “Manoel Perna não deixou nenhum testamento, e eu imaginei a oitava carta”(p.135). Ela seria enviada ao companheiro de Quain nos Estados Unidos, Andrew Parsons, um fotógrafo. A oitava carta pode ser aquela de Manoel Perna, apresentada ao longo da narrativa, porque é esta a carta endereçada à pessoa que tem a outra parte da história. “Isso é para quando você vier. [...] Só você tem a outra parte da história”. Diante do emaranhado de fatos, o narrador não tinha mais como dar linearidade à sua história, o que ele faz, então, é ficção.

3 Hibridismo na forma literária do romance Nove noites:

Parte-se da hipótese que há hibridismo na forma literária do livro Nove Noites, sendo assim vamos explicitar alguns itens para defesa da nossa pressuposição.

a- Elementos paratextos: O prefácio parece constituir-se no primeiro capitulo do livro, não há nomes nos capítulos, existe uma carta de agradecimentos às todas pessoas que o ajudaram na pesquisa sobre o personagem Buell Quain, o autor dá os créditos às fotos que aparecem durante a narrativa no final do livro.

b- Metatextualidade: O livro é produzido a partir de outro texto: “...mas a verdade é que não fazia a menor idéia de quem ele era até ler o nome de Buell Quain pela primeira vez num artigo de jornal (...) p.13.

c- Intertextualidade: A narrativa do livro é construída com uma série de referências a outros textos no decorrer da história, as pesquisas do autor para descobrir a vida de Buell, as cartas( p.22,28, 30, 36). Uma citação sobre um poema de Carlos Drummond de Andrade.”Elegia 1938”, (p.114).Também aparecem as noticias sobre o atentado de 11 de setembro, a derrubada das duas torres do World Trade Center.”Os jornais diziam que o mundo nunca mais seria o mesmo”.(155). Na procura pelos parentes de Buell recorre a Internet “Em sites genealógicos, em programas de buscas na Internet e finalmente, depois de varias tentativas frustradas, pelo método mais arcaico de todos enviando cartas...”.(p.154).

d- Metaficção: A metaficção se dá no texto quando o jornalista começa a se preocupar como irá escrever o livro em que se propôs,” (...) com a pesquisa terminada e o livro publicado. Porque agora eu estava disposto a fazer dela realmente uma ficção.” (p.157). “ A ficção começou no dia em que botei os pés nos Estados Unidos”. (P.158)

e- Gênero narrativo literário: Há uma espécie de relativização, uma espécie de desaparecimento nas fronteiras do gênero literário narrativo, pois o autor combina textos que não são considerados narrativos literários como cartas, pesquisas investigativas que são relatadas no decorrer do livro, usa imagens(fotos), ao mesmo tempo faz uma espécie de autobiografia no capitulo onze quando conta a infância do narrador( jornalista).(...) ‘Xingu da minha infância “. (p. 60) O livro apresenta uma fragmentação na estrutura narrativa dimensionada pelo uso de duas formas de narração apresentando diferenças em relação às letras, narradores e linguagem”. Do mesmo modo, existe uma quebra em três elementos da narrativa tradicional, não há uma exteriorização centrada num narrador objetivo, os dois narradores são em primeira pessoa (Manoel Perna e o Jornalista), sendo assim não existe uma tendência objetiva no texto, pois o autor em terceira pessoa, também está envolvido na narrativa quando relata a pesquisa sobre Buell. Ao mesmo tempo, a narrativa de Carvalho não instaura uma dinâmica de sucessividade, porque os acontecimentos das pesquisas, a vida pessoal do jornalista e a narração de Manoel Perna não se sucedem, são quase independentes na estrutura narrativa. Por outro lado, nota-se que a partir da página 158, há uma mudança no tom da narrativa, pois desaparecem as datas, as cartas, os despachos sobre a estada de Quain no Brasil, para a tomada de rédeas de uma narrativa que não se preocupa mais tanto em se justificar com a realidade, apesar de mostrar-se interligada com ela. “A ficção começou no dia em botei os pés nos Estados Unidos”. (p.158).

f- Presentificação dos períodos romântico e naturalista: Acredita-se que existam elementos voltados para ficção romântica (folhetim) no elemento “surpresa” que aparece na página 159. Por outro lado vemos os resíduos do naturalismo no descritivismo das páginas 91,101, “As noites eram um festival de sons íntimos, roncos,peidos e choros de crianças”.

g-Alteridade: A alteridade (ou "outridade") é a concepção que parte do pressuposto básico de que todo o homem social interage e interdepende de outros indivíduos. Assim, como muitos antropólogos e cientistas sociais afirmam que, a existência do "eu-individual" só é permitida mediante um contato com o outro (que em uma visão expandida se torna o outro, a própria sociedade diferente do indivíduo). Em toda a narrativa do livro constrói -se uma relação de alteridade entre o jornalista e o personagem Buell, por exemplo, “Buell Quain também havia acompanhado o pai em viagens” (p. 64), quando relata as memórias da infância. Além disso, na viagem para investigar os índios Krahô, surgem varias citações que levam a alteridade, “... a para nossa ida para aldeia teria que ficar para 2 de agosto, o mesmo dia em que Buell se suicidara há sessenta dois anos”.(p.75) “Carolina é um lugar morto, como disse Quain ao desembarcar pela primeira vez”.(p.76) “Era o mesmo cenário de fundo que eu tinha visto na foto da chegada de Quain à cidade, publicada na primeira página da edição de 18 de agosto de 1939...”(p. 76) “...fico pensando no que deve ter sentido Quain ao longo de quase cinco meses sozinho com os Krahô”.(p.107) A alteridade no livro Nove noites pode ser mais um fator de comprovação da forma híbrida de romance que o compõe.

h-Teóricos: Dentre os teóricos que nos apropriamos para esta investigação foram: Zila Bernd, principalmente, no terceiro nível de hibridação. Do mesmo modo, nos voltamos para Peter Burke, nos artefatos híbridos em relação aos gêneros literários, também o autor Nestor Garcia Canclini no capitulo Descolecionar quando fala sobre a fragmentação nos Videoclipes e encontramos a mesma descontinuidade no romance de Carvalho. Assim como, usamos o ensaio de Nelson H. Vieira para entender alteridade na literatura. Para os conhecimentos de literatura em relação aos termos paratextos, intertextualidade, metatextualidade, metaficção, níveis e categoria da narrativa usamos a obra de Carlos Reis.

i- Bibliografia:

BERND, Zila. Estruturas híbridas - estudos em literatura comparada interamericana. Porto Alegre: Ed. da Universidade / UFRGS, 1998. p. 265.

BURKE, Peter.Hibridismo cultural. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p.27

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para pensar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2003. p.305

CARVALHO, Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

REIS, Carlos. O Conhecimento da literatura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

VIEIRA, Nelson.Hibridismo e Alteridade: estratégias para repensar a historia. In: MOREIRA, Maria Eunice (org.). Histórias da literatura: teorias, temas e autores.Porto Alegre: Mercado Berto, 1978.