Quarto de despejo: um cantinho para a poesia aninhar-se

QUARTO DE DESPEJO: um cantinho para a poesia aninhar-se

Rosangela T. Calza

RESUMO

A memória testemunhada tem uma força gigantesca de visibilizar o esquecido, laçar luz em áreas ofuscadas e, quiçá, trazer poder de transformação. Com sua obra, Quarto de despejo, Maria Carolina de Jesus, negra, mãe solteira de três filhos, catadora de papel e metal, moradora da favela de Canindé às margens do Tietê (SP), expõe as mazelas do dia a dia de favelados, a invisibilidade social do excluídos, o descaso dos políticos com a população menos favorecida, a fome e a miséria. Conta também sobre seus momentos de raiva, seus sentimentos por ver e compreender sua situação de jogada no lugar onde ficam as coisas destinadas ao lixo, a serem queimadas... as coisas sem utilidade. Seu sentimento diante da infeliz vida é retratado em toda sua dureza. Mas, forte que é, esperançosa de que a sorte mude mescla seu discurso duro e sofrido com poesia, tece seu cotidiano com um exercício de fantasia, imagina-se em outros mundos para esquecer que está na favela (JESUS, 2014), e consegue ver, no mundo encardido e malcheiroso da favela, o azul do céu, o brilho do Astro-rei, o brilhante céu estrelado.

Palavras-chave: Quarto de despejo. Diário. Poesia.

1 INTRODUÇÃO

“Quando despertei o astro rei deslizava no espaço” (JESUS, 2014, p. 5). É possível imaginar qualquer cenário maravilhoso ao se ler esta frase... há nela poesia. Mas, este poético despertar do sol é a realidade de uma favelada, negra, mãe de três filhos que cata papel e metal para poder sustentar-se e sustentar a eles. Assim ela escreve o amanhecer de mais um dia de labuta, incertezas, sofrimentos, fome, frio e falta de quase tudo. Mas ela consegue ver poesia nesses dias, chuvosos, gélidos e tristes, nesse seu cotidiano de extrema miséria.

No decorrer do livro Quarto de despejo, a autora várias vezes lança mão de dardos de doçura para descrever o ambiente ao seu redor, seus sentimentos, seus sonhos e desejos. Carolina usa de recursos estilísticos e literários e assim mescla sua narrativa dura e sofrida com pitadas de figuras de linguagem poéticas, pega na mão da poesia e sai em busca do sustento diário da família.

Este texto tem o objetivo de ressaltar os momentos, os espaços, os instantes em que a autora teve a poesia como sua companheira na solidão de seu barraco e transcreveu para os papéis sujos, rasgados, amassados a poesia que ia em sua alma – alma de sonhadora, de lutadora, de esperançosa de que um dia a maré virasse e ela pudesse “vestir roupas de alto preço, andar bem limpinha, residir em uma casa confortável [...] (JESUS, 2014, p. 19).

2 DE POESIA EM POESIA

“17 de julho. Domingo. [...] O céu maravilhoso sem nuvens. O sol está tépido” (JESUS, 2014, p. 10). Assim a autora inicia a narrativa de mais um dia. Acordara cedo, Enfrentara a interminável e incômoda fila da água... café e apenas um pedaço de pão para os filhos. Domingo, dia de descanso. Não para nossa protagonista. Põe o feijão no fogo e vai lavar roupa... domingo para o favelado não é dia de descanso, não é dia de passeio... é um dia comum, um dia que se luta para sobreviver. A noite não é para descanso... a noite do favelado também é para catar papel... e ela não esmorece, sai cumprindo seu destino de catadora.

O relato da autora é feito em vinte cadernos velhos encontrados em suas andanças na busca de papel e metais para vender. Ela escreve as dificuldades pelas quais passam mulheres miseráveis, sem trabalho, sem ajuda do governo, sem nenhum tipo de assistencialismo. Fala das promessas políticas, que, no fim das contas, não passam de promessas. ”Os políticos só aparecem aqui em épocas eleitoraes (sic)” (JESUS, 2014, p. 24).

Tem seus dias de tormento, dias em que não há palavras para descrever o horror que a cerca... mas ela não se abate. Diz-se alegre, “muito alegre”... canta todas as manhãs... compara-se às aves “que cantam apenas ao amanhecer” (JESUS, 2014, p. 23). “Comparação é uma figura de linguagem caracterizada pela analogia explícita entre termos de um enunciado, já que conta com a presença de conjunção ou locução conjuntiva comparativa” (SOUZA, 2010, p. 1, grifo do autor).

“11 de maio. Dia da Mães. O céu está azul e branco. Parece até que a Natureza quer homenagear as mães [...]” (JESUS, 2014, p. 26). O que circunda Carolina? Em uma ambientação precisa, Quarto de despejo retrata a antiga favela do Canindé, situada às margens do rio Tietê, entre os anos 1950 e 1960. A obra evoca momentos representativos da história do Brasil – período do governo de Juscelino Kubitschek, cujo lema era ‘50 anos em 5’.

A obra de Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo, coloca-nos em contato com a miséria, apesar de ter sido escrita em um período de intensificação do processo de desenvolvimento do capitalismo no país, com um forte incentivo à industrialização e à modernização dos homens (ANDRADE, 2019, p. 117).

Quarto de despejo, lugar em que se coloca tudo o que não mais tem serventia, os restos, o lixo, o que beira ao imprestável. A autora, porém, não deixa de perceber a beleza na Natureza que rodeia esse seu espaço... céu a azul e branco... Natureza que se embeleza para homenagear às mães pelo seu dia.

Seu espaço é recheado de poesia, diz a autora: “... a noite está tépida. O céu salpicado de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu e fazer um vestido” (JESUS, 2014, p. 24). No meio do lamaçal, de casebres, de fome e frio, de brigas intermináveis, de desesperança, de relatos cruelmente reais, Carolina tem um coração poetizado, um coração sensibilizado por uma veia poética. A autora utiliza-se das palavras

como instrumento principal de criação, as palavras podem adquirir significados novos, proporcionando a invenção de uma realidade que já não diz respeito ao real verificável, mas há um mundo que causa estranheza, que rompe com o sentido comum das coisas, forçando uma união irreal daquilo que real e logicamente é inconciliável (FRIEDRICH apud PORTAL EDUCAÇÂO, 2020, p. 2).

O leitor sente o impacto do que é retratado dura e cruamente em seus cadernos, mas não pode deixar de sentir um certo prazer em ler a história e nela encontrar palavras não esperadas, palavras que destoam da realidade massacrante vivida pela autora e seus filhos – e por que não dizer vivida por tantos outros que dividem aquele espaço esquecido pelos que têm posses –, espaço que exala a suor e a álcool – companheiro que faz esquecer temporariamente as desgraças –, que é o combustível que faz explodir brigas e causa problemas de saúde.

A morte com suas garras escuras e desesperantes também chega à favela. É uma favelada que morre, Carolina narra sucintamente esse momento, mas aí também mistura um tom poético. Escreve ela: “D. Maria morreu. [...] era crente e dizia que os crentes antes de morrer já estão no céu. [...] Os crentes estão entoando um hino. As vozes são afinadas. Tenho a impressão de que são anjos que cantam” (JESUS, 2014, p. 29). Aqui ela parece deixar por um momento – em seus pensamentos – a dureza do espaço e tempo em que vive; o que lhe vem à mente é a imagem do céu... em meio a tantas agruras, não há revolta contra o sofrimento, há um pensamento de beleza que enternece, que afaga, que adoça e embeleza toda a mente de Carolina, e que registra em seu caderno.

Mais um dia amanhece e Carolina (2014, p. 26) diz: “Os pardais já estão iniciando sua sinfonia matinal. As aves deve (sic) ser mais feliz do que nós”. Que mulher é essa que depois de dias e dias sem ter a certeza de que terá o que comer e de alimentar seus filhos (como muitas vezes realmente vão dormir com fome), depois de sofrer xingamentos de seus vizinhos de favela, de trabalhar como um animal de carga durante um dia inteiro e ter como fruto de seu trabalho alguns míseros trocados que permitem apenas comprar um bocado de comida, que apenas irá disfarçar uma fome crônica, uma mulher que tem consciência de que os políticos, na sala de visita, nada fazem por essa multidão que vive pior que animais... uma mulher que tem em si a consciência de ser uma desafortunada, que começou a perder o interesse pela existência, que pensou em convidar seus filhos para se suicidarem... que mulher é essa que se compraz em ouvir a sinfonia dos pardais em meio a um barulho que grita o desespero da vida que leva... uma mulher que ouve o concerto dos pardais... e registra em seu diário como se fosse algo mais natural do mundo ?

Carolina é uma analfabeta, mas isso não a impede de ter consciência política, cita políticos durante seus textos, até prepara sua casa para receber a visita de um futuro deputado, que queria que ela fizesse alguns discursos (JESUS, 2014). Carolina ama seu país, ao contemplar o céu de anil, declara esse amor por seu país, olha para as árvores no início da rua Padre Vicente que balançam ao sabor do vento e imagina poeticamente que elas aplaudem seu gesto de amor à Pátria (JESUS, 2014).

Seu pouco estudo – só cursou até o segundo ano primário – não a impede de conhecer nossos poetas... lembra os versos de Casimiro de Abreu, ao olhar para sua filha, Vera Eunice, que sorria: “Ri criança. A vida é bela” (JESUS, 2014, p. 28).

E ela segue... em todo o seu diário retrata a fome, o desespero, a dor, a incompetência dos políticos, a falta de empatia de muitos... mas mescla tudo com o Rei-sol, com nuvens brancas, com flores que desabrocham em plena primavera, com as estrelas que adornam o céu, com as flores que perfumam prados e bosques (JESUS, 2014).

Quarto de despejo é uma obra em que a autora narra o dia a dia de favelados. É uma mulher à margem da sociedade que se esforça em fazer ouvir sua voz, escancara a vida dos favelados de dentro, conhecedora profunda de um cotidiano de incertezas, de faltas, de insegurança, de escassa ou falta total de esperança. Sabe usar as palavras para descrever o inferno em que reside... mas as usa também para mostrar a beleza que seu coração – quase totalmente endurecido pelo sofrimento – ainda vê, ainda sente. Pode-se até arriscar que toda sua força e esperança está em proporcionar aos filhos uma vida melhor, diferente da que ela trilhou... uma vida com mais poesia.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra de Carolina de Jesus coloca-nos em contato com a miséria, mas a autora, ao narrar as vicissitudes de seu cotidiano e de tantos outros miseráveis com os quais tropeça nas suas idas e vindas no cortiço em que mora, lembra que a vida pode ter seus momentos cor-de-rosa... seus momentos de mar de rosas... ela ameniza o amanhecer desesperançado: “o céu é belo [...] o astro-rei sempre pontual para despertar-se e recluir-se” (JESUS, 2014, p. 29).; sua vida ‘causticante’, sua noite escura, ela adocica com ideias poéticas “eu gosto da noite só para contemplar as estrelas [...]” (JESUS, 2014, p. 29). Ela tem o contexto histórico-geográfico como paisagem real – favela do Canindé; anos de 1950 –, e, ao olhar para si mesma, “acentua a sua vida individual, a história de sua personalidade”, de acordo com a definição de autobiografia de Lejeune (1998, p. 50).

Que autobiografia... ao lê-la, é impossível não se condoer com a vida dessa mulher guerreira, forte, lutadora, desesperada, mas cheia de esperança. Contudo, o que mais enleva a personalidade de Carolina Maria é o fato de ela não passar todos os seus dias se banhando em autocomiseração... apenas reclamando dos infortúnios da vida, do infeliz destino seu e de seus filhos. Ela escreve. Em sua escrita procura denunciar, alertar, mostrar um lado pouco conhecido pelas pessoas com as quais cruza em seu caminho de catadora. Ela escreve... e na sua dor... consegue mesclar poesia... volta e meia a poesia volta para seu texto... envolve com ternura a mente da escritora que se permite esses momentos poéticos... e a poesia, nesse ambiente que lhe é tão desconhecido, entra e fica tão à vontade de mãos dadas com a autora.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Letícia Pereira de. Quarto de despejo: fato e ficção no espaço autobiográfico. Revista Literatura em Debate, v. 4, n. 5, p. 117-129, jul.-dez., 2009. Recebido em 25 out.; aceito em 25 out. 2009. Disponível em: file:///C:/Users/rocal/Downloads/506-2403-1-PB%20(1).pdf. Acesso em: 27 out. 2020.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: Diário de Uma Favelada. Ática: São Paulo. 2014.

LEJEUNE, Philippe. El pacto autobiográfico y otros estúdios: el mundo iluminado. Ciudade del México: Lúmen, 1998.

PORTAL EDUCAÇÃO. A poesia infantil. Disponível em: https://siteantigo.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/educacao/a-poesia-infantil/28127. Acesso em: 26 out. 2020.

SOUZA, Warley. Comparação. Disponível em:

https://mundoeducacao.uol.com.br/gramatica/comparacao.htm. Acesso em: 29. out. 2020.