Desencanto

Dividimos nossas expectativas em relação à vida em dois pressupostos: 1. Propósito e 2. Projetos. Ambos vinculados e mesmo assim, muitas vezes temos plena consciência somente do segundo por ser mais aparente e identificável. E como temos projetos ao longo da vida: uma formação acadêmica e/ou para o mundo do trabalho, um bom emprego (com um bom salário e alguma estabilidade), a compra da casa própria, um carro ou motocicleta, viagens, formar uma família, etc. Já os propósitos adentram a casa dos valores: alguns idealmente coletivos como ser uma pessoa justa e fraterna, ser uma pessoa importante para o bem da humanidade, compartilhar saberes com outras pessoas, transformar o mundo em um lugar melhor; ou idealmente egoístas como ser feliz, amar e ser amado, ser realizado, viver em paz interna e externa.

Obviamente os propósitos são muito mais difíceis de serem alcançados ou mesmo de se tornarem permanentes quando alcançados porque dependem de 80 a 90% de fatores externos (outras pessoas e circunstâncias). Já os projetos dependem somente 50% de fatores externos, desse modo, as chances são mais equilibradas. O problema é que mesmo quando realizamos os projetos com sucesso, nos deparamos com frustrações na realização do propósito e isso faz com que, em determinadas fases da vida, até mesmo os projetos bem sucedidos percam o encantamento. Assim, entramos em uma era de desencantamento de nós mesmos, dos projetos, do mundo e pessoas que nos cercam e invariavelmente dos propósitos que nos norteavam. Isso nos lança ao abismo da tristeza, da incerteza, da desmotivação e geralmente é acompanhado por depressões profundas, inclinação ao suicídio (vontade de resetar tudo), emoções e comportamentos bipolares, burnouts e tantas outras mazelas que nos corroem a mente, o emocional, a alma e o físico.

Algumas vezes buscamos amigos, familiares, religiosidade ou psicólogos/psiquiatras para desabafar, suportar e ressignificar esse desencanto contínuo. De outras, nos mantemos em nossa solidão recorrendo à drogas lícitas ou ilícitas para tentar sobreviver mais um dia, mesmo que à duras penas. Mas cada dia se torna mais pesado e mais difícil sair do buraco no qual nos enterramos, seja pela primeira ou segunda via. Muitas vezes parece impossível. Isto porque amarguramos o mal estar da pós-modernidade onde tudo, todos e todas as coisas são efêmeros, fluidos e insuficientes. Nada dura, só nossa melancolia. Ás vezes achamos que a fuga pode ser uma saída: sumir do mapa, ir para outro município, estado, país e recomeçar como uma nova pessoa, mas como fugir do que está dentro e carregamos conosco para onde quer que nos desloquemos? Como fugir de nossas experiências passadas, de nossas memórias e trajetória? Não temos um botão de amnésia. O que vivemos e sentimos está gravado, marcado com ferro em brasa em nossas almas. Por isso, essa saída é mais uma ilusão. Mas então qual a saída de verdade? Qual a resposta? Qual a solução para esse desencanto do viver? Não sei. Talvez nunca venha a saber. Talvez sequer exista. Ou talvez tudo isso seja apenas um bug sem conserto dentro da Matrix.

Talvez a única resposta seja a de estarmos predestinados ao fracasso de nós mesmos como humanidade, como sociedade, como coletivo, já que nossos propósitos dependem de outros e esses outros não estão dispostos à facilitar a vida de ninguém. Talvez sejamos essencialmente maus, egoístas, mesquinhos, invejosos, arrogantes, sádicos, sóciopatas ou psicopatas. E não importa quantas vezes reencarnemos para "melhorar como seres humanos", pois essas características jamais deixem de fazer parte do que somos como pessoas. Talvez devêssemos viver ilhados, pois as chances de fazermos mal à outra pessoa seriam infinitamente menores. Talvez nossa única solução seja o isolamento de todos, uma vez que como "bichos racionais gregários" falhamos miseravelmente. E talvez, de fato, mereçamos a extinção já que somos sempre tão danosos aos demais e não temos a hombridade de admitir isso nem publicamente e nem internamente, iludidos que somos com uma "autoimagem" promissora de nós mesmos.

No final, não existirá nem inferno ou paraíso, uma vez que esse "desencanto" é o purgatório humano, demasiadamente humano de nós mesmos e todo o resto é somente ilusão.