Sobre a veracidade do argumento de Santo Anselmo

O argumento ontológico de Santo Anselmo é o seguinte: 1) percebemos uma hierarquia nos seres, tanto específica quanto genérica, e para cada ser deve haver um exemplar, o mais perfeito; 2) pode-se conceber um ser mais perfeito do que todos; 3) pode-se conceber um ser acima do qual nada se possa imaginar; 4) este ser existe necessariamente, pois, se não existisse, não seria o maior, e negá-lo seria negar a hierarquia dos seres.

Para ficar claro, ontológico que dizer da lógica do ser, ou seja, a lógica entre o que é e o que não é, do que existe ou não existe. Ou seja, este argumento busca demonstrar através da lógica a existência de Deus. O problema deste argumento reside na própria relação da lógica com a construção do conhecimento.

O Professor Olavo, se não houver engano, na aula 14 do seu Curso Online de Filosofia, fala sobre a utilização da lógica conforme Aristóteles e conforme os racionalistas. Segundo o professor a lógica é um exercício de construção verbal que trata apenas de possibilidades, cujas conclusões devem ser verificadas conforme a própria realidade adquirida conforme nossa experiência pessoal. Os racionalistas, por outro lado, acreditam que todo o conhecimento pode ser somente adquirido através da lógica, abandonando o exercício de confissão da realidade.

Assim sendo, podemos tratar os argumentos construídos com a lógica de limitadas formas conforme a possibilidade da conferência dos seus conteúdos. Um argumento lógico é constituído de 3 partes, premissas, do encadeamento (deve ter um nome melhor, agora somente consigo pensar neste) e conclusão.

Caso haja um argumento lógico onde não conseguimos autenticar as premissas nem as conclusões poderemos apenas verificar a qualidade do encadeamento lógico utilizado, de forma que este argumento depende de alguma nova observação ou experimento científico. Caso seja possível autenticar as premissas é possível, avaliando a qualidade do encadeamento, chegar a algum nível de certeza de que a conclusão é verossímil ou não, ocorrendo de forma similar quando a lógica é construída no sentido contrário, como nas 5 vias de Santo Tomás de Aquino, onde ele busca demonstrar a existência de Deus partindo das consequências presentes na realidade do mundo. A última forma de tratar um argumento lógico é quando temos a validação das premissas e da conclusão, restando apenas o trabalho de avaliar o encadeamento lógico para concluir se há uma relação de causa e efeito entre eles. Por exemplo, há algum tempo foi realizado um estudo percebendo uma relação entre a felicidade de um homem casado e o hábito de lavar a louça. O estudo, influenciado pelo seu viés, considerou que lavar a louça era a causa e a felicidade do homem casado era a consequência. Aqui a premissa e a consequência são verdadeiras e a relação entre elas ficou, ao menos no círculo estudado, evidenciada. O problema é que este argumento lógico (os maridos que lavam a louça são mais felizes) falhou em considerar adequadamente se os maridos são mais felizes porque lavam a louça, se lavam a louça porque são mais felizes, se são mais felizes e lavam a louça porque têm esposas melhores ou ainda se lavam a louça e são mais felizes porque trabalham menos horas, ganham mais, tem esposas melhores, os filhos estão crescidos e torcem para o Corinthians.

Resumindo, apesar deste estudo ter percebido uma relação entre o hábito de lavar a louça e a felicidade, fica claro que esta lógica apresentada pelos autores do estudo é completamente falha e não explica em nada a realidade.

Foquemos agora no argumento de São Anselmo. A grande questão com este argumento, para mim, é que ele soa perfeito aos ouvidos católicos (talvez até aos evangélicos e protestantes, mas aqui já é além do que posso afirmar) e completamente ilógico aos descrentes. Acredito que isto tem relação direta com a primeira parte do argumento.

1) percebemos uma hierarquia nos seres, tanto específica quanto genérica, e para cada ser deve haver um exemplar, o mais perfeito;

Isto aqui é claro para um católico. Todos eles sabem que Deus está acima dos homens e que os homens estão acima dos animais. Percebem que tem pessoas mais santas, como a Virgem Maria, outros menos santos, os padres, os leigos e os ateus. Nem todos os católicos sabem ou consideram isto com a mesma força, mas o homem tem o seu exemplar perfeito na pessoa de Jesus. Ele é perfeito Deus e perfeito homem. Temos a Virgem Maria que, concebida sem pecado, é perfeito exemplo de mulher e de mãe, assim como São José, perfeito exemplo de pai, sendo a sagrada família perfeito exemplo de família. Todos os outros seres e coisas não têm expressas sua perfeição no mundo material, este é uma graça concedida por Deus aos homens. O problema é que isto somente é aceito pode pessoas que tem fé, ou seja, o conhecimento empírico de Deus sempre é precedido da aceitação da Sua verdade, somente pode conhecer Deus quem considerou as evidências suficientes para considerar a existência de Deus não somente plausível mas fidedigna, ou seja, digna de fé. Dito de outra forma, considerou as evidências tão fortes que percebeu que, apesar de não ter uma experiência direta, era impossível negar esta verdade. Todos os outros que não dão este assentimento não podem conhecer a Deus senão por um milagre como o de São Paulo. Ou seja, não creem porque consideram insuficientes as evidências e não obtém mais evidências porque não creem. Este é, a meu ver, o passo que invalida o argumento de Santo Anselmo para eles. Para os ateus não há nada no mundo que confirme esta hierarquia dos seres. Até percebem uma hierarquia momentânea em alguns casos, como o homem sobre o animal, mas, para eles, esta não é uma hierarquia fixa e sim um momento histórico que pode mudar assim como acontece no filme O Planeta dos Macacos.

2) pode-se conceber um ser mais perfeito do que todos;

Para um católico não somente isto é possível como este ser falou conosco e ainda mandou seu filho como comprovação. Para quem não tem fé esta concepção é possível apesar de ser apenas uma fabricação mental.

3) pode-se conceber um ser acima do qual nada se possa imaginar;

Apesar de ser um passo além, sofre a mesma condição do item 2.

4) este ser existe necessariamente, pois, se não existisse, não seria o maior, e negá-lo seria negar a hierarquia dos seres.

E aqui está o caso. Um católico não nega a hierarquia dos seres porque esta hierarquia faz parte da própria fé. O descrente, por outro lado, não aceita as premissas do argumento, afirmando que não há comprovação de que exista a perfeição de qualquer ente existente neste mundo e também que esta hierarquia dos seres não tem comprovação empírica a longo prazo. Rejeitando as premissas rejeitam também as conclusões.

Estes, meus caros, são os motivos pelos quais este argumento causa certa estranheza. Soa perfeito aos ouvidos católicos ao mesmo tempo em que gera uma estranheza por não servir para a conversão daqueles que não têm fé.