Porto de Santa Iria - I

Caixa Introdutória

A meio da pesquisa e escrita do 2.º Volume da Biografia da Ribeira Grande, dedicado ao Nascimento da Cidade, pretendo abordar neste jornal o aeródromo de Santana e o porto de Santa Iria. As questões à volta do aeródromo da Ilha de São Miguel em Santana, a três quilómetros a poente da Ribeira Grande, e a decisão de o transferir para Ponta Delgada, e do porto de Santa Iria, a cerca de dois quilómetros a nascente, da Ribeira Grande, e a decisão de apostar unicamente no porto artificial de Ponta Delgada, em vez de, como ficara acordado, construir uma alternativa/complemento a Norte da Ilha, são pontos essenciais para perceber quem manda na ilha de S. Miguel, logo que tipo de cidade é a Ribeira Grande.

Se não se cansarem do que escrevo, se o jornal continuar a permitir a minha colaboração e eu, entretanto, não tiver outra ocupação, gostaria também de aproveitar a oportunidade para partilhar neste jornal dois trabalhos não apenas ligados ao trabalho do 2.º volume mas igualmente à feitura de dois catálogos destinados ao uso dos utentes do Arquivo e da Biblioteca Municipal Daniel de Sá: ‘Jornais e jornalistas da Ribeira Grande (da origem ao presente),’ como apresentação do catálogo da Hemeroteca Municipal e ‘Fotógrafos e estúdios fotográficos (da origem ao presente), destinado ao Catálogo da Imagoteca Municipal. Só para aguçar a curiosidade aqui vão algumas dicas. Se se disser que a seguir de Angra e de Ponta Delgada, a Ribeira Grande teve o seu primeiro jornal? Que o primeiro director do Açoriano Oriental, residente e casado na Ribeira Grande, fundou o segundo jornal da Ribeira Grande? E que a primeira colaboração de Teófilo de Braga saiu num jornal da Ribeira Grande? Ou que há fotógrafos e estúdios fotográficos na Ribeira Grande muito próximos da sua implantação em Ponta Delgada?

O que já tenho seguro é o porto de Santa Iria. Começarei justamente por ele. Em 2017, no final da apresentação que fiz do primeiro livro do meu amigo Álvaro Feijó, perante as autoridades presentes, meti ‘uma cunha’ a favor deste porto; dois anos depois, o Presidente da Junta, convidou-me a dizer algo sobre aquele porto, no dia da freguesia, por não ter dados seguros, com muita pena, declinei o convite; há dias, na apresentação do segundo livro daquele amigo meti outra ‘cunha,’ revelando, na mesma ocasião a intenção de publicar uma série de 12 artigos sobre o porto de Santa Iria. De 2017 a 2021, consegui obter dados novos sobre aquele porto.

Antes da versão final que costumo escolher, gosto de ‘ensaiar’ a versão que já tenho com quem me possa ler por duas razões: por um lado, o tema porto de Santa Iria está ‘na ordem do dia,’ quero assim ‘dar’ o que sei a quem tem de decidir bem (com proveito de todos) o futuro daquele porto, por outro lado, quero ‘testar a minha versão,’ quer a solidez das provas e da interpretação que delas faço quer o modo como transmito esta interpretação, portanto, quero ‘despentear parágrafos,’ como diz Onésimo de Almeida.

Para este ensaio narrativo, escolhi o jornal, O Diário dos Açores, pela sua ligação histórica à História da elevação da Ribeira Grande a Cidade. Dois exemplos: em 1933, na inauguração oficial do Teatro Ribeira Grandense, Rebelo Bettencourt, o orador da cerimónia, ligado a este jornal, por cortesia, relança a ideia de cidade; em 1965, J. Silva Júnior, membro do Círculo dos Amigos, não sei se já estaria ou não ligado a este jornal, propõe um programa para a elevação a cidade. Foi neste jornal ainda que, em finais da década de 40 do século passado, Jorge Gamboa, Lucindo Rebelo Machado e o Conde de Caminha esgrimiram apaixonadamente argumentos a favou ou contra o título de Vila-Cidade. Neste momento, Osvaldo Cabral, no Diário dos Açores, abre as portas à História da elevação a cidade que propôs em várias ocasiões. Relembre-se que a luta final para que a elevação a cidade passasse do sonho à realidade, com muito da alma do Padre Edmundo Pacheco, ocorreu nas páginas do Correio dos Açores graças à dedicação de, citemos os mais sonantes, Luciano da Mota Vieira (meu caríssimo professor de História), Sílvio do Couto, Salomão Adrehi, Osvaldo Cabral e Jorge Nascimento Cabral.

Daqui, das páginas deste jornal, julgo que o responsável não se oporá à sugestão, faço um apelo a quem possua imagens ou guarde recordações sobre o porto de Santa Iria, as queira partilhar connosco. Conto com o leitor?

Porto de Santa Iria - I

À memória de Monsenhor Cónego Jacinto da Costa Almeida, Reitor do Seminário Menor do Santo Cristo e do Santuário da Esperança, meu mestre de latim, ribeirinho de nascença e de coração, que, nas águas límpidas deste porto que tanto amou, ensinou a nadar ‘centenas de jovens da Ribeirinha e arredores.’

Como os leitores bem saberão, o porto de Santa Iria fica na costa Norte da Ilha de São Miguel. Talvez também saibam que foi o porto da Ribeira Grande e um dos três mais importantes da Ilha, destinado mesmo a ser, conforme as condições climatéricas predominantes, alternativa/apoio, a Norte, ao porto de Ponta Delgada, a Sul. Estarão por certo ao corrente de que goza há anos de pouca saúde. A cura não é coisa de outro mundo, diz-nos quem disso sabe e, todavia, desculpem-nos a perplexidade, porque tarda tanto em curá-lo? Dar-lhe uma nova vida. Tenho algumas respostas, não julguem que por ser historiador (aprendiz) ando desaparecido no passado, desinteressado pela vida presente, longe disso, porém, não querendo influenciar quem me possa ler, não as vou dar, desafio, antes, os leitores a fazerem-no a propósito dos próximos 12 (doze números).

O que a seguir partilho, sem falsas modéstias, não será mais do que o contributo de um aprendiz de História para o conhecimento do ‘nosso’ (os desta área e suponho os da Ilha de São Miguel) porto de Santa Iria. Pretende ser uma achega a todos quantos porfiam, com razão, em dar nova vida a este porto. Há mais de uma década o acesso ao porto foi oficialmente interditado ao público, o que, apesar das precárias condições, não impede que muita gente o frequente. Neste entretanto de tempo, informa-nos a comunicação social, houve um projecto, cujos contornos desconheci e creio que poucos o terão conhecido, do tempo do Governo do Partido Socialista. Foi sucessivamente orçamentado e sucessivamente esquecido. Preterido? Recentemente, houve uma promessa eleitoral do Partido Social Democrata que formou Governo e governa em coligação com outros dois partidos e apoio de incidência parlamentar de outros dois. A promessa é: ‘Requalificar o Porto de Santa Iria, na freguesia da Ribeirinha.’ Como? Quando? Na gaveta? Não, segundo consta, estão a ‘redefinir’ o anterior. Fui conversar com as pessoas e ouvi de todos a recomendação de que fosse um projecto que não tivesse apenas em conta a esplêndida História daquele local, feita de feitos enormes, de tragédias e de esquecimentos, mas olhasse para as imensas potencialidades presentes desta fabulosa baía. O Padre Edmundo Pacheco achava que podia ter uma doca flutuante. Outros, deveria ter uma marina, uma estrutura que o Norte da ilha de São Miguel e a Cidade da Ribeira Grande carece para valorizar a Ilha. Não, de todo, a ilha já tem as suficientes. O mar do norte é para esquecer. Ainda outros, deveria ser um centro de apoio a actividades náuticas na costa Norte da Ilha.

Comecemos, então, a esgravatar um pouco da sua história conhecida:

‘Donairoso, na beleza inconfundível que oferecem as suas linhas, ele estacionará amanhã por alguns momentos entre os azuis do mar e do Céu, em saudação à terra que lhe deu o nome, junto do seu coração, o local onde, as águas da Ribeira Grande e as do imenso oceano escolheram para se abraçarem fraternalmente.’ Quem era o donairoso referido? O navio-motor Ribeira Grande da companhia de Navegação Carregadores Açorianos, na sua viagem inaugural. Onde iria estacionar por momentos? Ao largo da foz da ribeira Grande. Quando? No dia 4 de Abril de 1948. É provável que José Pereira da Silva, homem inteligente e culto, senhor de uma prosa que enfeitiça pela singeleza, que trazia a Ribeira Grande no coração, soubesse que a 3 de Abril completara-se 440 anos sobre a data em que a primeira vereação da Ribeira Grande fora eleita.

Era invulgar a vinda de barcos daquele calado ao Norte da Ilha? É o que tentaremos ver nas páginas seguintes. De uma maneira geral, a ideia com que se fica é que as caravelas (e outras embarcações) vinham a Santa Iria. O porto de Ponta Delgada, mau porto tal como os demais da ilha, possuía condições de apoio: armazéns, Alfândega. Mas os navios vinham ao Norte em alternativa ao Sul. A questão vinha do início do povoamento, os ventos fortes do Sul levavam as embarcações a refugiarem-se na costa Norte e as Nortadas fortes levavam as do Norte a refugiarem-se no Sul. Estou em crer que a rota dos portos do sul da ilha, em detrimento dos do norte, se deverá menos ao mar e mais ao facto de existirem mais polos desenvolvidos no Sul. Uma embarcação na ida e na volta à ilha tinha vantagem em parar na Povoação, Vila Franca, Lagoa e Ponta Delgada. A ligação ao Norte era fácil no meio da ilha.

Para tentar responder a estas questões, tentarei ao longo desta narrativa partilhar o que sei sobre o ‘nosso porto,’ como alguns na Ribera Grande o chamam ou ‘Porto de Santa Iria ou porto da Ribeirinha ou do Macedo.’ A propósito, acho que foi Frutuoso que o disse, terá ficado com o nome de Santa Iria porque alguém (João do Outeiro e um seu enteado) pretendeu construir uma ermida no topo do ilhéu daquela baía com aquela invocação. A ermida ficou por construir mas ficou o nome. Ora, naquela baía, poderia ter existido logo desde o início do povoamento, tal era a necessidade comunicar pelo mar, ainda antes de Santa Iria, uma pequena calheta de mar, ao fim da rua do Castelhano, que mais tarde viria a ser o porto do Forte de Nossa Senhora da Estrela, onde no século XIX se pretendia construir um ‘varadouro no poço denominado - do Castelo - da Ribeira Grande.’ Poderiam até se servir da ‘areia,’ o extenso areal que fica aos pés da Ribeira Grande, para varar os barcos.

Ao sabermos o que se entendia por portos de mar em 1825, podemos ter um vislumbre dos que aqui existiram antes e depois de 1508? Acho que sim. Consideravam-se em 1825, em S. Miguel portos a ‘um espaço de que a braços se tem arredado os maiores penedos, em largura somente suficiente para receber um barco.’ Ao nos inteirarmos ao modo como se procedia a cargas e a descargas pelo mar em 1825, podemos ter um vislumbre de como se fazia o mesmo em 1508? Igualmente. A manobra era a seguinte: ‘quando um barco tem chegado em frente a um destes boquetes, volta a popa à terra, e espera o momento, em que o mar rebente com menos violência; então os remos são metidos dentro, e o barco impelido à vara contra o boquete, uma parte da gente salta na água, e vai a braços empurrando o batel, que os vaivéns das ondas fazem repetidamente bater sobre o fundo, finalmente o barco é tirado a braços sobre as lavas roladas, que cobrem a borda do mar.’ Seria assim em toda a ilha, a Norte ou a Sul.

Será que o porto de Santa Iria, ligação marítima a outros pontos da costa Norte, virá ainda do tempo do Lugar principal da Ilha? Havia um guindaste numa grande enseada dos Fenais da Maia (Fenais da Ajuda), onde se carregava trigo. Naquela zona, os irmãos António e Pedro Rodrigues da Câmara, moradores na Ribeira Grande, cultivavam trigo. Depois, havia o Porto Formoso, ‘onde se fizeram já e vararam alguns navios e carregaram muitos trigos.’ Além do mais, Santa Iria, uma das calhetas a seguir ao Porto Formoso, e a curta distância, ficava junto à fazenda de António Rodrigues da Câmara, na Ribeirinha: ‘Para a parte do sul do porto, pela terra dentro pouco espaço, perto deste porto e pico de Santa Eiria, está uma ermida de São Salvador, junto das casas de D. Catarina Ferreira, mulher que foi de António Rodrigues da Câmara.’ Transportar trigo por mar, da Algarvia à Ribeirinha, era a melhor solução.

A partir de Março de 1515, tem origem uma romaria anual à Ribeira Grande. Os peregrinos chegam da ilha de São Miguel e das ilhas de Baixo e dirigem-se à igreja de Nossa Senhora da Estrela onde, à procura de ganhar indulgências, a que normalmente designam por perdões, ‘correm a igreja quatro vezes por fora e três por dentro.’ E, para o caso que nos interessa, os das ilhas de baixo, vinham ‘em barcos (…).’ Não se diz onde aportavam, mas é presumível que (em parte) desembarcasse em Santa Iria.

Cinco anos depois da ponte de pedra da praça, é a vez de tratar da ligação por mar. A obra foi arrematada, a um outro Fernão Álvares, igualmente morador na Ribeirinha. Diz assim Frutuoso: ‘(…) a um Fernão Álvares, o Grande, chamado Grão Pele, dito assim por diferença de outro, do mesmo nome, que tomou a partido a ponte da dita vila, ambos moradores na Ribeirinha.’ O contrato, no valor inicial de ‘cento e vinte mil réis,’ chegaria, ‘a mais de duzentos mil,’ surgiram na obra dificuldades, ‘porque para se fazer se ajuntou a ribeira do salto com a Ribeirinha e elas juntas levaram a terra ao mar, que os homens iam cavando, com que se abriu um alto pico pelo meio e se fez o caminho de carro que agora tem.’ Porém, o Fernão Alvares, o Grande, do caminho do porto de Santa Iria, ao contrário do outro da ponte, não iria pagar do seu bolso o excesso. Segundo Frutuoso, era uma ‘obra que parece de Romanos.’

Mário Moura

Lugar das Areias – Rabo de Peixe

Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 10/04/2022
Código do texto: T7492047
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