debutante

só parte#

Era ainda estranho. Mesmo após a pandemia e milhões de pessoas mortas, a festa de debutante era importante. A vida não se acaba num instante. A própria debutante, lógico, estava radiante, mas a celebração é sempre algo familiar para quem evita viver o dia a dia. O aniversário de quinze anos é uma marca do passado. Um símbolo dito de comemoração. Supostamente branca era aquela extravagante festividade. Há de ser lembrando que ninguém havia visto a morte de perto, naquele tempo de pandemia, registrado nos livros didáticos das escolas como um fato histórico, sem nenhum nome ou sobrenome, só uma data solta no tempo. Uma pandemia, um debut, uma minúscula coisa que ninguém se importa. A morte ainda é uma conta só vista como um número oco para quem escolhe a narcose de assistir um noticiário da televisão. De longe a morte é só uma distância. Uma metáfora equidistante. Naquela festa debutante tudo era denunciante. Tia velha com a chapa solta na boca. Prima e seus dois filhos endemoniados por açúcar. Vizinho e sua prótese peniana contando uma piada machista misógina sem graça. Tudo certo, nada errado, sem ficar pensando o certo ou o errado. Voltando ao debut, se entrei na festa pelo canto, posso dizer que foi por engano? Queria sumir, mas sou o primo distante que mora na capital, portanto, não escapo dos comentários das viúvas adormecidas ou passo desapercebido. Eu vivia sem sucesso, voltado ao ostracismo. Esse era eu, pelo menos assim era como a família me via. Apesar de ser um servidor público, sempre soube da irreverência do período anterior, quando vivia estudando naquele velho apartamento em Bagé. Ninguém me via sair daquele lugar. Eu parecia um desaparecido. E, foi nesta mesma época em os sentimentos dominantes, antes, negativos, chamados de medo, paranóia e loucura, mudaram. Acreditei que poderia criar uma valsa assoprando uma melodia. Ela combinou com quem era isolado e achava que vivia numa ilha. Certo era ter uma jangada. E, naquele dia, beijei um estranho e vi nascer um amor fértil, sem anéis e barganhas, ainda que sonhasse que tudo que senti ali pudesse sumir, sair de perto daquilo era sair de perto de mim.

Severo Garcia
Enviado por Severo Garcia em 16/04/2022
Código do texto: T7496059
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