Neuropatia

É possível enxergar todas as coisas. Noutro dia me contaram essa história. É possível pegar o cérebro, partir no meio, ligar três fios, fase terra e neutro e vai aparecer com áudio e tudo, tudo e mais um pouco que existe. É possível desencarnar a cabeça usando eletrólitos num copo com água e uma moeda de cobre. É possível separar em pastas. É possível escolher um dia. Mas claro, os ignorantes, os trabalhadores braçais e os alienados não sabem ou não tem tempo ou não querem saber. Por isso circula nas academias, mas nos meios mais aplicados da academia. Circula entre os segredos de governo. Circula nos grupo de psiquiatras mais aplicados, daqueles que mapeiam sentimentos no cérebro, que já trabalharam com a raiz da memória, que buscam a razão dos sonhos. Acho que o Sidarta Ribeiro deve ter ouvido falar. Acho que os transsexuais sentem na pele. Há sempre uma grande relação entre os nichos mais marginalizados e a alta classe acadêmica. Deve ter sido por isso que eu sonhei que fodia um psiquiatra. Deve ser por isso que as pessoas do meio se parecem tanto com pessoas do meio. Entre todas as cabeças comuns vemos basicamente três grossos miolos que funcionam mais ou menos da mesma forma. Como uma programação universal. A trindade, como chamam. Mas tem alguns casos, como esse, por exemplo, em que dentro de um sanatório na Varsóvia guardaram o cérebro de um pintor residente que tinha sido recolhido das ruas por volta de 1926 e esses miolos principais, na radiografia, estavam esgarçados como cordas hiper-tensionadas cheia de fiapos se partindo. Só por conta dessa elasticidade inexplicável, que ninguém sabe muito bem o que causa, quem herda ou como se transmite, ele conseguiu pintar a curva por cima da cabeça do traço que representava o completo desfalecimento da sociedade. Mas nem todos viram, na epoca. Mostraram o quadro a outro doido que não falava nada, não se movimentava e nem comia (estava mantido a base de soro e alimentação intravenal) a mais de oito anos. O doido chorou. A mais de oito anos. Hoje em dia o quadro também está submetido a radiografia. Descobriram que é como se a pintura tivesse consciência própria. Falasse e pensasse por si. Que era feito da mesma matéria de aminoácidos da sopa primordial da vida, ou algo parecido ou algo assim. Acho que quando terminarem e os livros forem escritos e a história se popularizar e virar filme didatico, a humanidade vai ficar tão consciente de si sobre si mesma que entraremos numa nova era imediatamente, tão imediatamente quanto nunca antes se entrou em outra era. As mortes vão parar. As linhas das fronteiras entre os países vão se dissolver. Os grandes prédios vão virar espaços comuns. Ha de se falar muito sobre esse novo uso da arquitetura inclusive. Imaginem sempre grandes pilares como troncos de sequoias gigantes segurando pesados e impressionantes tetos abobados perfurados por faixas de luz que atravessam todo esse espaço até o chão, onde estão as pessoas. Imaginem que há pouca diferença entre dormir e acordar. Imaginem como tudo é sólido, mesmo na dimensão das formas. Os animais passarão a galope, brilhantes em nosso meio. Reverenciaremos a natureza. Chega de lutar contra ela. Chega. Já chega. A palavra "civilização" também será imediatamente dissolvida, assim como tudo. Não haverá censo de hierarquia, nem entre as coisas e os seres, nem entre os seres e outras realidades, outras ideias. Estaremos como que lúcidos e entorpecidos. Como que na vida e também na vida após a vida. Lembraremos de tudo, mas já não seremos culpados de mais nada. Estaremos em paz com um deus que provavelmente tirou a gnte do cu e colocou num mundo qualquer. Não precisaremos mais de deus. Precisaremos apenas de nós mesmos. E teremos direito a nós mesmos. Ou é assim que eu imagino. Por isso tanto segredo por cima de segredo. Tanto cuidado por cima de medo. Muita gente acha que será o caos completo. Se preocupam com a extinção do lucro. Com o massacre dos poderes. Com a falta de funcionalidade de uma sociedade que atende aos seus próprios desejos, que ama suas vontades. Parece ser sempre muito nescessário nos lembrarmos que tudo existe hoje de acordo com a concessão de deus e que não é uma boa ideia tentar furar está hierarquia. Que no filme do indiana Jones e a caveira de cristal, após saber de tudo e ver todas as coisas, a cabeça da exploradora explodiu, pois não estamos e nunca estaremos preparados para a verdade. Devemos compactuar com nossa mediocridade. Devemos manter a super-estrutura que assegura o esforço para a manutenção da vida comum. Que os poderes são inatos, que os artistas devem ser sempre observados de longe e que não se deve equiparar com razão coisas da realidade com coisas do mundo da cabeça que na verdade são coisas colocadas por Deus e que apenas a Deus e a aqueles autorizados por Deus pertence analisar. Não é bom cair em dissimulação. Não é bom se enganar, aliás, achando que saberemos de tudo, quando a maior verdade sempre será o mistério. Filhos do mistério. E o mistério é deus. Os estudiosos são soberbos, os transsexuais são desviados enlouquecidos. São pervertidos. Querem perverter a sociedade. Eu acho que o que vai acontecer é o seguinte: antes de sairmos para o fim de qualquer era pra entrar em qualquer outra era, mais livre do que antes ou mais rigorosa do que nunca, a discussão ficará travada dentro dos meios de saúde, na oms, nas organizações de médicos de cada estado. Vão estigmar que essa condição de quem não tem a trindade rígida de neurônios na supra-radiografia realizada com três gramas de cobre depois de beber cinco litros d'água é passível de um transtorno, na verdade, é uma pessoa com um transtorno mental. Transtorno que atinge 0,7% da população, que é mais comum em países subdesenvolvidos por causa da qualidade do ar e do aumento da alimentação ultra-processada. Que é uma endemia sanitária recém descoberta. Que ainda não sabem se é transmissível. E obviamente vão surgir os homeopatas, os reikes quânticos, os banhos de ervas. Para previnir e para estimular. Enfim, uma história muito cansativa de se viver. Repetida como todas as outras. História embriagada. História de quem fumou muita maconha. História de quem tomou ayawuasca. De quem faz microdosagem de cogumelo. História marginalizada. Quebraremos o espelho antes de conseguirmos espalhar a prata em cima do vidro. Re-enveloparemos a consciência antes de terminar de ler a carta, e mandaremos com selo pra puta que pariu. A endemia a partir de então será não enxergar mais nada. Do mesmo jeito que se abre o cérebro, fecha-se o cérebro. Passando cola. Submetendo a altas temperaturas. Com solução de álcool e manganês. Fecha-se o cérebro. Tranca-se o cérebro. Se acaba a cabeça.

Nia Ferreira
Enviado por Nia Ferreira em 16/01/2023
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