O ATLETA PERFEITO

Edson Arantes do Nascimento, o Rei Pelé, falecido em 29 de dezembro de 2022, agora ficará sempre lembrado como lenda do futebol. Retratado como o atleta mais talentoso do planeta, virou Atleta do Século na França, em 1980, e o COI reforçou o título 28 anos depois. Mas, sua imagem sempre foi cercada de enigmas. Quem de fato foi Pelé?

Nos anos 1970, já cultuado como ídolo do futebol foi questionado por sua constante neutralidade política quanto às lutas raciais e aos diversos grupos que atuavam para derrubar a ditadura militar no Brasil. Este jogador morreu no Terceiro Milênio vivenciando a crise econômica mundial e a retomada da ascensão da extrema direita, fatos que servem de pano de fundo do desaparecimento deste ícone internacional. O que move nossa curiosidade não é propriamente o contexto histórico, mas servirá de base para decifrar os motivos que encobrem a descoberta do enigma Pelé, que se mantém ao longo de 50 anos (Silva, Ana Paula da,2008).

No seu enterro, com homenagens do mundo inteiro, chamava a atenção o depoimento das autoridades sobre o atleta: “Profissionalismo, Técnica, Disciplina e Humildade”. O país foi surpreendido pela morte de outro grande jogador, Roberto Dinamite, falecido em 08 de janeiro de 2023. O slogan sobre este atleta seguia o mesmo rumo: “Bondoso, Carismático e Humilde”. Não podia ser acaso ...

O que estaria por traz dos formadores de opinião? Por que valorizar a humildade e não a altivez? Se fossem tão humildes teriam continuado por tanto tempo? Veio à tona a lembrança de Garrincha, “O anjo das Pernas Tortas”. Um gênio do futebol que acabou pobre e abandonado por falta de autoestima, bebida, problemas psicológicos e familiares. Porém, tanto Pelé como Dinamite tinham habilidade para não se deixar explorar por dirigentes ou técnicos.

Para nós, houve uma “inversão de valores” com o uso da imagem dos atletas. Queriam mostrar conforme a música de Chico Buarque que” vence na vida quem diz sim”? Por outro lado, os valores na socialização popular diferem dos valores adotados para os abastados. Os dois foram vitoriosos, ficaram ricos, mas continuaram humildes, fiéis aos valores do povão. Afinal, são ídolos das massas!

Não podemos nos contentar com tais possibilidades. Pelé sempre nos pareceu um sujeito determinado, perfeccionista, altivo e em busca de sucesso profissional. Ele derrubou o “Complexo de Vira-lata” (Nelson Rodrigues) do jogador brasileiro. Se fosse um animal seria um cavalo puro sangue árabe. Foi um negro vencedor. Como dizia Juca Kfouri (2022): “Pelé é sinônimo de excelência”.

Pelé participou de duas Copas do Mundo em que o Brasil venceu em 1958 e1962. Na conjuntura da década de 1950 (governo Vargas) e na década de 1960(governos JK e Jango) o país vivia sua etapa nacional-desenvolvimentista que estimulava a ascensão individual. Os grupos negros defendiam “a Democracia Racial” na crença que a mestiçagem favorecia aos pretos qualificados em busca de prestígio. Pelé refletia este avanço progressista e se conectava com o “espírito da época”.

Posteriormente, com a continuidade dos movimentos de resistência à Ditadura Militar, há uma mudança de rumo dos grupos negros, que passam a atacar a tese da mestiçagem como engodo, pois não incluía o negro pobre na mobilidade social. Passam a defender a “Identidade Afro-Brasileira”, com a tese da “Igualdade Racial”, as raças e etnias com os mesmos direitos de inclusão social. Em 1970, o Brasil é tricampeão na Copa do Mundo. O presidente da República usou a vitória na recepção aos vencedores, pois futebol e política sempre andaram juntos. Pelé, em depoimento falava do general Médici como se fosse um governante eleito pelo povo. Negou-se sempre a ceder aos argumentos daqueles que lutavam pelo fim da Ditadura. Tornou-se um antimodelo nos Anos de Chumbo. (idem, 2008)

O capitalismo atual está em decadência, mas o futebol continua um veículo de manipulação de massas. Os atletas que chegaram ao pódio da fama e da riqueza levam a mística de ídolos, cercados de mitologias que não ajudam a tirar a máscara do objeto do desejo. É inegável que Pelé projetou o nome do Brasil no mundo, nas quatro Copas que jogou, e ganhou três. Este atleta era tão determinado com a performance profissional que, em 1969, comemorava os seus mil gols no Maracanã. No Livro dos Recordes, ao final da carreira chegou a 1.283 bolas nas redes, a maior marca de todos os tempos. Já afastado do futebol no Brasil, vai jogar no Cosmos de Nova York. Ele sabia que foi contratado como jogador-padrão para projetar os americanos do norte no mundo. É o seu momento cosmopolita. Fica no exterior por dois anos (1975- 1977).

A rigor, Pelé nunca se aposentou. Optou por uma iniciativa bem-sucedida, ao associar seu nome à propaganda e publicidade. Foi sustentando a fama até se tornar um homem-marca, o que o ajudou a manter sua imagem até à sua morte. De 1995 a 1998 foi Ministro dos Esportes no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Sua gestão ministerial foi tímida e até omissa, pois nunca ousou denunciar casos de corrupção no futebol. É lembrado pela “Lei Pelé” que permitia ao jogador mudar de time por livre e espontânea vontade. Em 1970, entrou no curso de Educação Física na Unimes (Universidade Metropolitana de Santos). Em 2018 recebeu desta Universidade o título de Doutor Honoris Causa. Lançou a autobiografia “Eu sou Pelé” (1961), uma segunda, “Pelé – a autobiografia” (2006), e um livro de sua autoria “Jogando com Pelé” (1974). Outras iniciativas como filmes, inclusive nos USA, e exposições sobre sua trajetória de vida. Apareceu até em Revista em Quadrinhos com o Pelezinho, produzida por Mauricio de Souza. Para distinguir o homem comum do homem público e, talvez, para facilitar o seu cotidiano de celebridade usava duas “personas” que foram absorvidas por seus admiradores e detratores. São suas estas palavras: “Edson erra, é humano. Pelé não, é um mito, é Deus”.

As diferentes conjunturas históricas associadas às estratégias dos negros nestes períodos também apontam para uma “inversão de valores”. É só observar a palavra de ordem da “Igualdade racial” da década de 1970, em que o atleta foi tão criticado, para ver que não é mais uma bandeira dos negros. Agora querem o “Identitarismo” que é chamado de “Revolução Woke” no exterior. Faz lembrar a luta dos anos/50 e anos/60 pela “Democracia Racial”. É uma proposta de inclusão dos negros, não nega o capitalismo: lutam pelo empreendedorismo, por cotas raciais nas universidades e abertura cultural. Pelé talvez se enquadrasse nesta proposta. Mas, pelo perfil dele jamais faria uma opção explicita por nenhuma causa política.

Amin Maalouf, libanês, em seu romance “Os Desorientados” (2014) fala do ponto de vista de um emigrante que volta ao seu país de origem para rever os amigos:

“Desde que voltei ao país tento reatar laços e não acertar contas. E, aliás, que contas seriam essas? Por acaso poderia censurar Nidal por não ter mais aos 40 anos as mesmas ideias que aos 16? Ele mudou, eu mudei, o país mudou, nosso mundo não é mais o mesmo. A vanguarda de ontem ficou para trás, e a retaguarda avançou para a linha de frente”. (: 344)

ISABELA BANDERAS

Rio, 25 de janeiro de 2023.

ISABELA BANDERAS
Enviado por ISABELA BANDERAS em 25/01/2023
Código do texto: T7703800
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