As bases do Estado Novo (1937 - 45)

O presidente provisório Getúlio Vargas promulgou a Constituição de 1934 a contragosto, estabelecendo entre os seus dispositivos transitórios o compromisso de deixar o poder em 1937. A ideia era a de convocar eleições gerais para todos os cargos, afastando-se do poder político para que um novo ciclo democrático se estabelecesse em moldes menos personalistas.

No entanto, o clima de polarização dos anos 1930 ofereceu as condições ideais para que a centralização política permanecesse. Por um lado, tínhamos na extrema-esquerda a Aliança Nacional Libertadora (ANL), sob a liderança do ex-tenentista Luís Carlos Prestes. Boa parte do tenentismo de esquerda, desgostoso com os caminhos reformistas da Revolução de 1930, preferiu adentrar pela rota da solução mais rebelde na hora de propor transformações sociais para a realidade brasileira. Descontentes com as reformas orientadas pelo marco do liberalismo, os aliancistas queriam mais do que voto secreto, feminino ou uma justiça eleitoral “burguesa”, cujos impactos seriam limitados quando se falasse em distribuição de renda, reforma agrária ou melhoria real das condições de vida da classe trabalhadora urbana que hora se constituía rapidamente.

No outro extremo do prisma político, tínhamos a Ação Integralista Brasileira (AIB), fundada em 1932 pelo escritor modernista — estrela de segunda grandeza na Semana de Arte Moderna de 1922 — Plínio Salgado. Salgado ficara estonteado quando em visita à Itália de Benito Mussolini. Entendera que a vitalidade de uma nação dispensava o individualismo liberal consagrado pelas revoluções. Apenas a população unida em torno de símbolos comuns poderia exaltar a pátria conforme o merecimento de seus mártires. O Integralismo chegou a ter mais de cinquenta mil membros filiados no país, tornando-se um fenômeno de popularidade em sua época. Despido da verve racista do exemplo alemão, o Sigma de Plínio Salgado exaltava o somatório das gentes em direção a uma grandeza que pudesse exaltar o destino nacional. Deus, pátria e família eram lemas integralistas que dialogavam com facilidade nos meios religiosos, sobretudo os católicos. Em Minas Gerais , por exemplo, o integralismo constituíra raízes a partir de Teófilo Otoni em 1933. As células do Partido rapidamente tomaram o sul de Minas e Juiz de Fora. Quando uma cidade marcava um número razoável de filiados ganhava a condição de “bandeira Integralista”, muitas das vezes recebendo a visita em pessoa do próprio Plínio Salgado.

A exemplo do que ocorreu com o Aliancismo, os integralistas também tentaram um atrapalhado “golpe de Estado” num assalto ao Palácio da Guanabara, em 1938. Vargas e sua filha, Alzira, chegaram a trocar tiros com os autoritários integralistas, mas a ação não prosperou de nenhum modo. Bateram em retirada para que logo depois o registro da AIB fosse cassado e colocado na ilegalidade. Eram tempos em que a violência política estava no repertório do dia. Em 15 de agosto de 1937, por exemplo, treze integralistas foram mortos em uma manifestação na cidade de Campos dos Goitacases, Estado do Rio de Janeiro. Centenas de feridos foram contados após a confusão que marcou a memória local.

A Intentona Comunista de 1935 dera o pretexto que Vargas precisava para buscar apoio nos Estados a fim de alinhavar a continuidade do mandato para além das linhas constitucionais promulgadas em 1934. Em 1937, um plano integralista para a tomada do poder através da ação nos quarteis acabou sendo habilmente interpretado como obra da extinta Aliança Nacional Libertadora. Era o mote que faltava! Sem delongas, o Congresso Nacional laureou o Executivo com poderes excepcionais do estado de sítio. Os pré-candidatos à presidência, Armando Salles e José Américo de Almeida, foram logo esquecidos pelo debate público como se nunca antes tivessem ventilado qualquer desejo de assumirem a chefia máxima do presidencialismo. Todo movimento do Estado Novo que se iniciava tinha como pressuposto uma rejeição ao federalismo da Primeira República (1889–1930), o qual concedera aos Estados uma radical autonomia administrativa e orçamentária. Um Estado poderia se dar ao desfrute de contrair empréstimos internacionais sem que o governo central fosse sequer consultado. Paulatinamente, o Executivo se fortaleceu em face dos Estados e municípios, os quais passaram a ficar dependentes das diretrizes orçamentárias do governo central.

O brasilianista Thomas Skidmore observou que o período nevrálgico entre 1937 a 1943 fora marcado por um “hiato no desenvolvimento dos partidos políticos”, no sentido de que havia uma espécie de desgaste ideológico nas plataformas políticas. Todo partido político relevante acabou silenciado ou suprimido nos porões da repressão. Quem abraçava uma posição de constitucionalismo liberal perdeu em todos os níveis. Eleições livres, liberdade de expressão, justiça eleitoral e imparcialidade no Judiciário eram temas caros que rapidamente foram abandonados sem qualquer constrangimento. A concentração de poderes no Executivo revelou duas faces complementares. Em um primeiro nível, observamos uma inovação institucional. Criado em 1930, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio passou a ser vitaminado por novos institutos, responsáveis por problemas específicos. Os institutos do pinho (1941), do mate (1938) e do sal (1940) demonstravam como o Executivo avançava sobre áreas até então desconhecidas no que se referem ao controle e à fiscalização. No segundo nível, observamos a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) em 1938, instrumento não apenas do controle pessoal de Vargas como também era um ponto importante na consolidação da administração federal.

Apesar de autoritário, o Estado Novo de Vargas não carregava simpatias pelo fascismo militar, a exemplo da Itália e da Alemanha durante os anos 1930. O governo brasileiro, como nos relembra o historiador Robert M. Levine, estava recheado de burocratas civis. Houve a cerimônia de queima das bandeiras estaduais em prol da exaltação das cores nacionais do verde, amarelo, azul e branco; embora na prática tudo isso se resumisse a uma grande encenação. Como medida política para impressionar a opinião pública, Vargas chegou a emitir decreto para que as escolas de comunidades imigrantes de italianos, alemães e japoneses deixassem o idioma dos antecedentes pátrios e aderissem em definitivo ao idioma português, a grande língua oficial do Brasil. Em outro momento, Vargas se esforçou para que soldados de todas as unidades da federação se reunissem na Força Expedicionária Brasileira, em 1944. Incorporados ao Quinto Regimento Americano para libertação da Itália, Getúlio Vargas soube fazer da expedição de guerra um símbolo em nome da unidade nacional.

Homem de confiança de Getúlio, o cearense Lourival Fontes assumiu a direção do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) em 1939. Órgão responsável pela censura aos meios de comunicação e pela tentativa de unificar um sentimento de identidade nacional, o DIP desempenhou função primordial na ideologia do Estado Novo. Havia censura prévia nos jornais, uma comissão para censurar programas de rádio e filmes. O material escolar tentava difundir a ideia de que Vargas era uma espécie de “pai” da juventude. A iconografia dos livros didáticos apresentava o líder populista como defensor dos valores do patriotismo, da família e dos bons costumes. No que se refere ao cuidado com os elementos da “cultura popular”, o DIP forçava artistas à modificação de letras de sambas para que os valores do trabalhismo pudessem encontrar maior eco diante da classe operária. Esse cenário ficou claro no samba “O bonde São Januário”, composto em 1937 por Wilson Batista e Ataulfo Alves. Inicialmente pensado para exaltar a malandragem carioca em contraposição ao esforço do operário que acordava de madrugada para chegar ao centro do Rio de Janeiro, os sambistas foram obrigados à mudança da letra em 1940. No Estado Novo, as mensagens da cultura popular precisavam defender os valores necessários à sustentação do regime, a saber, o trabalho, a disciplina e o sentimento de que cada indivíduo tinha um papel a desempenhar no grande empreendimento de exaltação da Nação.

O DIP também foi prodigioso para estimular a pluralidade de interpretações sobre o Brasil pelos intelectuais, embora o grande público devesse receber uma visão unificada em torno da identidade nacional. Embora o integralismo estivesse na ilegalidade como partido político, muitos dos seus membros compuseram a base da propaganda que constituiu a ideologia do Estado Novo.

Outra base importante do Estado Novo varguista era o Ministério do Trabalho, chefiado até 1945 por Alexandre Marcondes Filho. Ressalta-se como os anos 1930 e 1940 foram prodigiosos na construção de uma legislação trabalhista que amparasse o trabalhador urbano. A ideologia era produto da ambiência urbana e industrial. Somente na década de 1960, trabalhadores rurais foram beneficiados pelas leis trabalhistas que há vinte anos já protegiam os operários urbanos. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), compilada objetivamente em 1943, sintetizava toda a lei trabalhista reunida, oferecendo ao futuro um condão para que o desenvolvimento da legislação ocorresse a contento. Inspirada diretamente nas leis trabalhistas italianas da “Carta Del Lavoro”, de Benito Mussolini, a CLT brasileira referendava uma espécie de pacto entre a classe trabalhadora e o Estado. Haveria salário mínimo, férias, 13° salário, insalubridade, auxílio doença e maternidade, mas desde que os o sindicato de representação dos trabalhadores respeitasse as normas de controle impostas pelo Ministério do Trabalho. Tratava-se de um pacto. O Estado concitava os trabalhadores à sindicalização e à participação associativa beneficiando-os com legislação protetiva, desde que o órgão se adequasse às exigências do Ministério.

O Estado Novo de Vargas soube combinar centralização de poderes no Executivo, personalismo carismático e corporativismo nas relações sindicais e trabalhistas para lançar o Brasil em um processo de modernização econômica e institucional sem precedentes. A intervenção do Estado na economia beneficiou a construção de estatais no setor de infraestrutura, sobretudo o siderúrgico e a extração de minérios. Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e Companhia Vale do Rio Doce datam do início dos anos 1940, momento no qual o Estado Novo alcançava o auge de sua vitalidade autoritária. A ditadura varguista ofereceu as bases a partir das quais o país atingiu elevados níveis de crescimento econômico até a década de 1980, quando o modelo entrou em declínio. O estudo das condições sociais, políticas e econômicas desta conjuntura histórica podem oferecer uma maior compreensão das bases institucionais em que se transcorreram os importantes anos que marcam o fim da Segunda Guerra Mundial (1945) e o início da Nova República (1985).

Já superadas duas décadas do século XXI, vivemos em meio aos escombros dos anos em que o populista gaúcho conduzia com mão de ferro o Poder Executivo.

Humberto Serrabranca Campos
Enviado por Humberto Serrabranca Campos em 02/02/2023
Código do texto: T7709847
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