Preconceito linguístico (Marcos Bagno) - Impressões

Não existe o falar errado no Brasil, o que existe é uma variedade de formas de utilizar a nossa enorme e rica língua portuguesa. O falar errado está associado a um parâmetro elitista e limitador que é a gramática normativa, que nem todos têm acesso, portanto, nem todos podem ser submetidos ao mesmo crivo. Muito do que é considerado errado, sob o ponto de vista culto, é na verdade uma inclinação natural da língua, presente intuitivamente no falar do indivíduo, derivada de arcaísmos linguísticos, e somente considerada indevida sob a perspectiva gramatical contemporânea e autoritária. Algumas dessas variedades são produtos de misturas históricas e sociais ocorridas em determinadas regiões do país, tais como as influências europeias, francesas e holandesas no Nordeste, que influenciaram tanto na escrita quanto na pronúncia. Também é importante ressaltar que a gramática normativa não acompanha a evolução da oralidade, e continua se agarrando, fielmente, a conceitos e regras obsoletos, não presentes mais no falar das pessoas.

Neste ensaio, o assunto do preconceito linguístico, delimitado pelo livro “A língua de Eulália”, de Marcos Bagno será abordado. Com foco nos argumentos apresentados pelo autor do livro, o presente texto pretende sintetizar harmoniosamente esses pontos de vista junto aos que estão em concordância com os seus, de forma a reforçar os conceitos e criar e fortalecer elos que permitam uma melhor investigação acerca dos temas propostos e de suas contradições.

Uma das argumentações mais costumeiramente alardeadas sobre o tema do falar certo e falar errado é o parâmetro delimitador destes conceitos, que é a gramática normativa. Bem, o que os linguistas e o autor do livro contra argumentam é bem simples e coerente: como pode existir um parâmetro delimitador para todos, se, de fato, esse parâmetro (a gramática normativa) não é acessível para todos? Como alguns podem ser analisados e punidos se não participam com as mesmas armas e as mesmas possibilidades de outros? O nível de desigualdade em nosso país abrange de forma grandiosa todos os setores que o compõe, e o acesso ao falar é um deles, infelizmente. Há um mito que se propaga de que temos uma língua uniforme, mas isto está longe da realidade. O agravante desta evidente ignorância, constantemente alardeada, é de que essas variedades linguísticas vão se tornando cada vez maiores e, no mesmo ritmo, vão sendo deslegitimadas, porque estão todas submetidas à veracidade e à legitimação de um conjunto de regras e normas que não pertencem, de fato, a esses lugares, nem a essas pessoas. E nosso sistema educacional é um reflexo desse autoritarismo, porque ele, apesar dos esforços progressistas de alguns, é um elemento participante deste pensamento, por isso, ele privilegia sempre aquele que já vem de uma base comum ao falar dominante, privilegiado pela elite. E este sistema educacional em vez de ensinar esse código, acaba excluindo o indivíduo que não possui o prévio conhecimento dele.

No livro, a tia Irene, personagem que representa o falar do autor, nos mostra um pouco sobre essa ideia:

Que língua é essa? Página 30

— Não é mesmo? — reitera Irene. — Mas é assim que acontece na nossa escola. Nosso sistema educacional valoriza aquelas crianças que já chegam à escola trazendo na sua bagagem linguística o português-padrão e expulsa as que não o trazem. Isso é uma grande injustiça, como disse a Vera, porque é exatamente esse português-padrão que deveria ser ensinado na escola, porque ele permite que o aluno originário das classes sociais desfavorecidas se apodere de um recurso fundamental em sua luta contra as desigualdades sociais, tão profundas em nosso país. O domínio da norma-padrão certamente não é uma fórmula mágica que vai permitir ao falante de PNP “subir na vida” automaticamente. Mas é uma forma que esse falante de PNP tem de lutar em pé de igualdade, com as mesmas armas, ao lado dos cidadãos das classes privilegiadas, para ter acesso aos bens econômicos, políticos e culturais reservados às elites dominantes. Por isso devemos brigar pela efetiva distribuição democrática da riqueza linguística, assim como devemos brigar também pela distribuição democrática de tudo mais: terras, empregos, saúde, moradia, transporte, lazer, cultura, educação... Como é fácil ver, trata-se de um problema muito amplo e complexo, que tem relação com a transformação radical do tipo de sociedade em que vivemos, e não somente com a alteração dos métodos pedagógicos do sistema educacional.

Vemos no trecho acima que a preocupação maior sobre este problema é de que este acesso limitado e dificultado acelere e aumente ainda mais nossa tão latente desigualdade, que já está presente nos fatores econômicos, sociais, culturais, e, também, linguísticos. Esse é um problema que ultrapassa a barreira teórica, metodológica, pois adentra os meandros do enraizamento sociológico da população.

Outro ponto interessante que merece ser analisado diz respeito aos chamados erros cometidos pela enorme camada sem acesso à gramática dominante. O autor nos mostra que eles só são erros quando confrontados com um padrão excludente e elitista. Porque esses mesmos erros seriam na verdade inclinações naturais da língua, que seus falantes produzem quase como uma linguagem instintiva. Vimos o exemplo do que é chamado de rotacismo, que seria uma tendência natural da língua de transformar o R e o L dos encontros consonantais. O que está querendo ser dito é que quando o falante que não teve acesso às normas gramaticais fala “broco” em vez de “bloco”, ou então “frecha” no lugar de “flecha”, ele está agindo sob uma vontade linguística natural da língua portuguesa. Por quê? Porque a língua, em seus arcaísmos, lá quando estava se formando, também trouxe exemplos muito semelhantes aos chamados “erros” cometidos por aqueles que não estão adequados à normatização. E muito do que é erro hoje já foi acerto tempos atrás. Essas evoluções que a língua teve ao longo dos anos são muito parecidas com o linguajar natural de uma grande camada da população. Eis o trecho abaixo:

Um problema sem a menor graça – Página - 44/45

Irene entrega a cada uma delas uma folha impressa. — Deem uma olhada neste quadro...

Quadro 2

LATIM FRANCÊS ESPANHOL PORTUGUÊS

ecclesia- église iglesia igreja

Blasiu- Blaise Blas Brás

plaga- plage playa praia

sclavu- esclave sclavo escravo

fluxu- flou flojo frouxo

— E então, Emília? — provoca Irene. — Não lhe parece engraçado que onde havia um L em latim (L que se conservou em francês e espanhol) surgiu um “ridículo” R em português? O que terá acontecido? Será que você e um monte de gente desavisada estão usando estas palavras sem saber que são “erradas” ou “engraçadas”?

O exemplo acima nos mostra a evolução de palavras que hoje escrevemos com R, mas que em sua origem tinham a letra L e em todas as outras variações do latim o L permaneceu, só não no português, o que evidencia uma característica inata do idioma lusitano. E reforça a ideia de que o falar “errado” é na verdade uma inclinação natural dos falantes do português, e que esse falar corrobora com uma espécie de linguagem instintiva que possuímos.

Em outro trecho podemos ver esse exemplo nos versos do maior representante da língua portuguesa: Luís Vaz de Camões.

Página 45.

“E não de agreste avena, ou frauta ruda” (canto I, verso 5)

“Doenças, frechas, e trovões ardentes” (X, 46)

“Era este Ingrês potente, e militara” (VI, 47)

“Nas ilhas de Maldiva nasce a pranta” (X, 136)

“Pruma no gorro, um pouco declinada” (II, 98)

Irene olha bem séria para suas “alunas” e pergunta: — Nós agora devíamos estar rolando no chão de tanto rir, não é? Pois acabamos de descobrir que o tão badalado Camões também “não sabia português”, era “burro” e falava “língua de índio”! — Está mesmo escrito assim, tia, lá n’Os Lusíadas? — pergunta Vera. — Pois está — responde Irene.

No caso acima, o que vemos é que os “erros” são, muitas vezes, arcaísmos da língua, ou seja, padronizações anteriormente tidas como corretas, mas que com o passar dos anos e a evolução da língua acabaram por tornar-se “erradas”. Mas somente porque não se usou mais essas formas durante os anos. Isso fica bem evidente com a utilização das palavras “frechas”, “ingrês” e “frauta”.

Outro “erro” derivado de inclinações naturais da língua é a comum transformação, nos ambientes menos prestigiados pelo falar culto, do ND em N, e do MB em M. A isso damos o nome de Assimilação, um processo evolutivo natural da língua. Nas camadas menos prestigiadas pelo falar normativo, é muito comum ouvirmos expressões como “Eu estou fazeno isso, eu estou fazeno aquilo...” As pessoas dizem também “No estamos comeno arroz e feijão...” e outras situações variadas. Isso ocorre, principalmente, devido a esses sons serem produzidos na mesma zona de articulação, no caso, de consoantes dentais, o que causa essa assimilação na hora de produzir o falar. Outro ponto de análise é o peculiar uso (ou não uso) das marcas do plural na construção das frases. Em muitos lugares fala-se da seguinte forma: “Meus olho se enche de água.”, se eliminam as marcas de plural das outras palavras na hora de falar. Em comparação com outras línguas, há, no português, realmente, uma espécie de redundância das marcas do plural. Vejamos na comparação com outras línguas. No inglês, o plural é marcado somente em uma palavra, ficando subtendido para todo o resto da frase. No francês, temos um exemplo mais interessante, pois na escrita existem essas marcas nas outras palavras da frase assim como no português, no entanto, essas sinalizações só são visíveis na escrita, porque na oralidade são eliminadas.

Portanto, os exemplos dados acima reforçam a conclusão de que existe uma espécie de “acerto comum” cometido pelas camadas com menos contato com as regras gramaticais dominantes. Esse acerto é validado pela própria evolução histórica da língua portuguesa, que comprova que existe uma tendência instintiva ao acerto da língua, pelo menos no que diz respeito ao seu desenvolvimento natural.

Uma região que sofre um grande preconceito com relação ao seu falar é o Nordeste, mas o que não se leva em consideração, muitas vezes, é o enorme contato com os franceses e os holandeses, que influenciou muito no modo de vida, nos costumes, e, evidentemente, na maneira de falar daqueles lugares. Outro fator determinante é a miséria de alguns lugares do Nordeste. Pode parecer algo que não se associa de forma imediata, mas a alimentação influencia na formação do corpo, que influencia na formação do aparelho fonador, que influencia na fala. Tudo isso, junto a outros fatores de gravidade, produziu a forma peculiar com a qual a região nordeste fala a língua.

No que diz respeito à concordância entre escrita e oralidade, há, na língua portuguesa, uma fidelidade indevida a regras que estão efetivamente em desuso. Um exemplo disso é o uso do pronome mim como sujeito de infinitivos.

Na oralidade, esse uso é comum há muito mais tempo do que imaginamos, mas a gramática normativa continua identificando como erro. Vejamos no exemplo dado no livro:

Índio, sim, com muito orgulho – páginas 180/181

- Será que esse tipo de construção existe há muito tempo ou é invenção dos brasileiros de agora? – quer saber Emília.

- Parece que a coisa não é tão recente assim, viu, Emília? – responde Irene – Vocês se lembram do romance Inocência, de Visconde de Taunay?

- Eu me lembro do filme. O livro eu não li – confessa Emília.

- Pois esse livro foi publicado em 1872, e lá a gente encontra um dos personagens dizendo para mim atalhar. E o mais interessante é que o autor, numa nota de rodapé, escreveu o seguinte... Irene lê algo escrito numa das folhas de papel que espalhou sobre a mesa: - “É este erro comum no interior de todo Brasil, e sobretudo na província de São Paulo, onde pessoas até ilustradas nele incorrem no erro com frequência”.

- Gente! Já em 1872? Então a coisa é velha mesmo... – admira-se Emília.

Com isso, podemos constatar que a gramática normativa, que determina o que é certo e errado na língua portuguesa, não está em harmonia com a utilização real da língua no seu uso cotidiano, e que ainda insiste em ultrapassadas normas, carcomidas e, hoje, quase estranhas no falar comum.

Tendo em vista os aspectos mencionados, verificamos que a gramática não é de todos e parte de um princípio norteador elitista que reduz as possibilidades dos falantes da língua, e o modo peculiar, muitas vezes entendido como “errado”, é composto de inclinações naturais da língua e também arcaísmos que caíram em desuso com o passar dos anos, o que evidencia a não atualização das normas gramaticais em seu uso real, reforçada com regras e conceitos obsoletos e ultrapassados. Com isso, voltamos ao preconceito linguístico que diz que existem formas erradas de se falar o português quando, na verdade, o que existem são variações e metamorfoses naturais sofridas pelo idioma ao longo dos tempos. Com foco nesses problemas, importantes mudanças aconteceram e acontecem no campo da educação linguística do Brasil, um dos mais significativos foi a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que em sua proposta de renovação da língua traz o tema da variação linguística, estudada como fenômeno inerente à linguagem humana.

Bruno Sousa
Enviado por Bruno Sousa em 20/03/2023
Código do texto: T7744975
Classificação de conteúdo: seguro