Qual é a interpretação que podemos fazer da metáfora bíblica que fala da expulsão do casal humano do paraíso? Simplesmente que ele deixou que seu Desejo de Receber se tornasse dominante. O conhecimento do bem e do mal, aqui entendido como a Luz do Criador, é o egoísmo falando mais alto e sugerindo que ao reter a Luz só para si, eles se tornariam iguais ao Criador.

O Desejo de Receber é inerente ao ser humano e a todas as criaturas do universo. Faz parte do fenômeno da vida. O Desejo de Compartilhar também, mas este não flui tão naturalmente quando o de Receber. Enquanto o de Receber é uma característica de todo organismo que existe no mundo, o de Compartilhar é algo que se desenvolve à medida que a experiência existencial se consolida e nós sentimos a necessidade de retransmitir a energia que recebemos. O melhor exemplo, como já dissemos, é a maternidade e a paternidade. A transmissão da vida é um desejo que já vem inscrito no nosso próprio DNA. Podemos até renunciar a ele em razão do nosso direito de escolha, mas isso decorre pura e simplesmente do nosso livre arbítrio.  

O desejo de compartilhar é imprescindível para o nosso desenvolvimento espiritual. Se ele não for exercido, a Luz que recebemos é bloqueada e a energia não flui. Esgota-se no próprio indivíduo e morre com ele. O espírito de uma pessoa assim, após a morte, continua aderido à forma material que o hospedou. Porque espírito é energia que a própria vida psíquica do indivíduo produz durante a sua existência. Enquanto não encontra um canal para fluir, essa energia continua procurando organismos para se hospedar. Essa é a razão dos fenômenos mediúnicos e espirituais relatados pela prática do espiritismo.

O Desejo de Receber, na nossa vida diária, é um processo orgânico e psíquico que se constrói com muitas páginas. Podemos chamá-la de dinheiro, poder, reconhecimento, fama, prazer sexual, paz de espírito etc. Mas todas essas páginas tem só um nome: Ego. Esse Desejo pode atuar como uma droga. Quem a toma e faz dela um prazer constante, vicia. E todos nós sabemos o quanto é difícil dominar um vício depois que ele se instala em nosso sistema neurológico.  

Esse desejo está inserto na própria vida e nós não temos como descartá-lo. Só podemos conviver com ele e controlá-lo, para que ele não torne a nossa Alma demasiadamente cascuda, impedindo-a de refletir a Luz Infinita do Criador.

Isso porque nós temos o livre arbítrio de escolher entre o Desejo egoísta de reter a Luz só para si e o Desejo de compartilhá-la, dando-lhe livre fluxo para que ela se espalhe pelo mundo como Deus faz com a Dele. Mitigar o Desejo de Receber em proveito do Desejo de Compartilhar não significa renunciar a ele. Pelo contrário, esse desejo deve ser ativo e constante, crescente e vigoroso. Mas o de Compartilhar precisa ter medidas de entusiasmo ainda mais vigorosas. É que a Luz Infinita tem essa propriedade: quanto mais se a compartilha mais ela energiza a nossa Alma, pois ela é como um dínamo que se recarrega na medida em que os equipamentos que rodam com sua energia são usados.

Assim, o Desejo de Receber deve ser exercido com vigor e muita vontade. É uma ambição boa. Toda ambição é boa, e só se torna prejudicial para a nossa Alma quando fazemos dela um objetivo em si mesmo, ou seja, um exercício de gratificação do Ego. Por isso é preciso tomar um certo cuidado com ele. Ele deve alimentar o nosso Ego, mas não podemos deixar que ele se torne o próprio Ego. Isso porque o prazer que ele produz tem efeitos transitórios que se esgotam no momento da recepção. Quer dizer, quando ansiamos por obter alguma coisa que muito desejamos, o pico do prazer ocorre quando o desejo se realiza. Mas depois o sentimento vai se arrefecendo aos poucos até a nossa neurologia não o sentir mais. Por isso se diz que prazer maior do que receber alguma coisa é o de conquistá-la.

Essa é a razão de, muitas vezes, pessoas muito bem sucedidas, que chegam ao auge da riqueza ou da fama, perderem a alegria de viver. Algumas tentam reencontrá-lo nas drogas, no álcool, no desregramento sexual e outras formas transitórias de prazer que acabam provocando mais dor e sofrimento. É o esgotamento do Desejo de Receber pela própria saciedade dele.

Já o Desejo de Compartilhar nunca se esgota em si mesmo. Ele flui eternamente como um rio, simplesmente porque ele é diferente do mero cumprimento de uma obrigação. Ele é uma escolha que fazemos.

Um exemplo: trabalhar duro para alimentar a família é uma ótima forma de compartilhar, mas não é suficiente e nem a mais eficiente para fazer circular a Energia do Criador. É que essa é uma obrigação que se assume pelo simples fato de termos procriado. Não é anseio de uma Alma que fez a opção de servir de Parceiro do Criador, transmitindo a sua Energia.

Compartilhar é uma função biológica. Todo organismo a possui. Ser honesto também não é uma escolha; é uma obrigação. As chamadas virtudes teologais - caridade, alegria, paz, paciência, bondade, longanimidade, benignidade, mansidão, fidelidade, modéstia, continência, castidade – estão mais para a categoria de um código de moral do que para o Desejo de Compartilhar.

Essa é uma sensível diferença entre as doutrinas religiosas do Ocidente e os fundamentos mais caros da Cabala e da Maçonaria. O homem realmente virtuoso não se preocupa com filantropia. Ele compartilha a sua Luz. Não doa apenas para satisfazer o desejo egocêntrico de obter reconhecimento.  Ele irradia sua Luz sem perguntar para onde vão os seus raios e quem dela se beneficia. Como se diz na Maçonaria, ele levanta templos à virtude e cava masmorras ao vício.

 

        Templos à virtude e masmorras ao vício

 

Por isso se diz que a Maçonaria não é nem uma religião nem uma entidade filantrópica. O maçom não faz filantropia, embora seu coração esteja sempre disposto a ajudar quem dele necessita. A Maçonaria é uma sociedade teosófica que procura promover o desenvolvimento espiritual dos seus membros através do estudo e da prática do bem sem olhar a quem. Em seus postulados, a busca da Luz Infinita do Criador é instrumentalizada em símbolos e rituais que procuram conectar a Alma dos Irmãos com essa Luz, para que eles a recebam em abundância e possam fazê-la circular com prodigalidade. É isso que entendemos por “levantar templos à virtude e cavar masmorras ao vício.”

          Essa é a razão de entendermos que o cerne do ensinamento que informa o catecismo maçônico vem da Cabala filosófica, temperada com elementos do cristianismo, uma vez que a Maçonaria é uma organização típica do Ocidente e como tal não poderia desprezar a cultura do ambiente onde nasceu e prosperou. Mas quem conhece, de fato, a Maçonaria, e está bem informado sobre o conteúdo e o verdadeiro significado dos temas tratados no catecismo maçônico, não terá dúvidas da enorme influência que a doutrina cabalista exerce sobre ela.

         Toda a estrutura simbólica da Loja maçônica é preparada para transmitir ao iniciado maçom a idéia de que ele ali está em busca de Luz. É o que se diz quando um recipiendário é iniciado: que ele bate à porta do Templo à procura de Luz. Pergunta-se como ele pode conceber uma tal pretensão e o Irmão que o conduz responde que se trata de uma pessoa pura e de bons costumes. E assim, depois de submetido a um ritual dentro da mandala mágica que é a Loja (uma espécie de traçado simbólico da Árvore da Vida), a venda com qual ele entrou na Loja é retirada ele e recebe a Luz na presença dos agora, seus Irmãos.[1]

 

         Cabala, Maçonaria e Alquimia

 

       Pretendemos ter desvelado aqui a profunda correlação entre a filosofia da Cabala e o simbolismo da prática maçônica moderna. A simbologia maçônica vê em cada iniciando uma pedra bruta que deve ser desbastada. Essa ideia não é mais que um simulacro da intuição cabalista que sustenta que em toda massa física presente no universo existe uma centelha da Luz Infinita do Criador. E, principalmente em nossas Almas, essa centelha brilha num grau maior, porque, nesse caso, trata-se de uma concentração de Energia acumulada em milhões de anos de experiência de vida, desde que a primeira célula viva despontou no caldo primacial do universo.

         Mas os maçons sabem que esse não é um trabalho que possa ser feito sem o apoio de uma certa mística. Por que da mesma forma que na Cabala é preciso uma reunião de espíritos concentrados no estudo da Torá para capturar a Luz que ela encerra, é preciso também que o obreiro da Arte Real siga uma orientação adequada para não se perder no labirinto de símbolos e alegorias que constituem a prática maçônica.

       É preciso entender adequadamente o significado dessa mística, pois senão o neófito correrá o risco de ficar eternamente repetindo gestos, passos, invocações e palavras de passe sem jamais entender o seu verdadeiro espírito. E acabará dando mais importância aos detalhes técnicos do ritual do que ao seu verdadeiro conteúdo espiritual. Isso será mero condicionamento e nunca aquisição de gnose, ou verdadeiro conhecimento, ou seja, Luz.

         Essa é razão de a marcha do maçom em busca da Luz, dentro da mandala mágica que é o desenho da Loja, ser sempre uma marcha do Ocidente em direção ao Oriente. O simbolismo dessa orientação é evidente. O Ocidente é o mundo materializado do homem que vive somente para a satisfação dos sentidos, ou seja, para o Desejo de Receber só para si, e o Oriente simboliza o território espiritualizado de onde vêm toda manifestação de espiritualidade. Isso porque no Oriente nasceram todas as religiões, todos os grandes profetas, os fundadores de seitas, os criadores de doutrinas espiritualistas, os mais famosos taumaturgos. E é também o caminho que a Luz do Sol percorre na sua viagem sobre a terra, fato esse que dá um sentido pragmático à essa visão. 

          Essa simbologia nos indica também que no plano mais sutil do nosso psiquismo, a marcha do espírito humano é também uma jornada que vai do Ocidente para o Oriente, sendo esse o sentido que pode ser comparado a uma caminhada de fora para dentro de si mesmo, da matéria para o espírito.

       Por essa razão a Maçonaria também integra uma farta simbologia ligada à alquimia, pois era essa prática que buscava descobrir, em operações de laboratório, como isolar a Luz que existe dentro de um metal considerado bruto, para transformá-lo em um metal precioso. Quer dizer: a alquimia era, mais que uma operação prática, uma experiência espiritual, razão pela qual a própria palavra onde ela se realizava recebeu o nome de laboratório, que quer dizer “lugar onde se ora e se trabalha (labor- oratório).

       Essa era a simbologia do magistério alquímico que visava a transformação do chumbo em ouro. Na verdade, como afirmam vários pesquisadores, a própria alquimia nada mais é do que uma derivação da prática cabalista, e o compartilhamento de várias fórmulas e símbolos, mostram, de forma insofismável, essa relação.[2]

   

Excerto do capitulo 10 do livro "Estrela Flamejante"- Introdução à Cabala Fillosófica- no Prelo


[1] Na imagem, a planta de uma Loja maçônica, com os seus respectivos oficiais. Note-se a disposição dos lugares, que são distribuídos de uma forma semelhante às sefirot da Árvore da Vida cabalística. Para mais informações sobre esse assunto ver a nossa obra Cabala e Maçonaria, citada.

[2] Vide, a esse respeito, Bernard Rogers. Descobrindo a Alquimia. São Paulo, Círculo do Livro, 1994 e Serge Hutin. História da Alquimia. São Paulo, Cultrix, 1987.