Nelson Rodrigues – Dramaturgia como Sublimação?

Por Éder de Araújo.

Estamos em 09 de dezembro, o ano é o de 1942. Na ocasião, nosso Anjo Pornográfico debuta no palco do Teatro Carlos Gomes, Rio de Janeiro, com a peça A Mulher Sem Pecado. Temas tabus nunca mais seriam abordados como outrora.

Nelson Rodrigues retratou em suas obras tudo que a “moral e os bons costumes” ocultaram da opinião pública anteriormente. Pela sua pena, foram trazidos à baila o amor proibido — condenável —, o homossexualismo, o incesto, o adultério, a depravação, a sandice, os planos do inconsciente, o delírio, o sadismo. Tudo no compasso da influência freudiana, tão recorrente na escola expressionista daqueles idos.

A sociedade de então se esborrachava com os vaudevilles e as comédias de costumes, que não proporcionavam grandes desafios à atenção dos espectadores, não havia profundidade nos temas, tampouco complexidade nos personagens. Mas foi em Vestido de Noiva, 1943, que o autor se fincou como marco na dramaturgia nacional. Sua concepção fragmentada, as constantes digressões sugeriam o caos reinante no inconsciente.

O fato é que, daí por diante, Nelson se tornou referência, estilo, gênero. Foi perfilado pela crítica com nomes como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior – a chamada Geração de 30 – a que se atribuía a tarefa de decifrar o Brasil.

E a que se deve tamanho ódio ou tamanha paixão por sua obra? Por que seu nome é sinônimo de extremo? Seria a “pornografia” o divisor das opiniões? Ou haveria uma certa identidade entre a chamada “imoralidade” de seu universo e o inconsciente coletivo, tão reprimido, mas tão latente desde sempre?

Poderíamos supor que o dramaturgo fosse um potencial psicopata e toda sua criação nada mais que o veículo por meio do qual seus “desvios psicológicos” pudessem aflorar? Uma válvula de alívio para as ebulições de seu âmago?

Todo artista encerra em si um turbilhão de inquietações, que o impulsiona a criar, a dialogar com as questões de seu tempo, seu mundo e mesmo com as aflições que não encontram guarida nas explicações naturais, mas que povoam sua mais íntima existência. Sua arte é a voz de seus pesadelos. Seria então esse o caminho da salvação para os inquietos espíritos geniais fugirem às armadilhas das frustrações, da inesgotável falta de respostas a suas angústias?

Ao longo da História, encontramos vários episódios em que grandes gênios viveram no “fio da navalha” — às vezes, vencendo seus monstros; outras tantas, porém...

Johann Sebastian Bach, órfão antes dos 10 anos, morre completamente cego.

Ludwick Von Beethoven, a quem os sons eram a magia da vida, conhece os sinais da surdez aos 31. Pensando em se matar, escreve seu testamento, mas suporta. “Foi a arte, e só a arte que me salvou!”. Aos 43, completamente surdo, vive o grande esplendor de suas composições.

No Brasil, tivemos o grande Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, que conheceu a doença degenerativa de origem incerta aos 40, e, ainda assim — ferramentas atadas aos punhos — prosseguiu resoluto em sua penosa jornada, que o levou a ser o grande escultor barroco mineiro, ou melhor, brasileiro.

Mas houve aqueles que sucumbiram às destemperanças, como o inigualável Vincent Van Gogh, que lutou contra a depressão, o isolamento, as paranóias, a loucura. Nem o carinho do irmão ou a experiência como o pastor o impediram de mutilar-se no cume do desvario e, mais tarde, do suicídio em meio ao trigal que reproduzira magistralmente na tela dias antes. E assim lembraremos ainda Jackson Pollock (acidente?), Elvis Presley, Kurt Cobain, Marilyn Monroe, Mário de Sá-Carneiro, Elis Regina e infinitos outros.

Mas o que se entende por sublimação? Para respondermos, é necessária uma ligeira passagem pelas veredas da psicanálise, introduzida por Freud.

*** Segundo sua Teoria da Motivação Sexual, a força que orienta o comportamento humano é o instinto sexual, escondido no inconsciente. Existem as chamadas Fases do Desenvolvimento Sexual, que vão dos primeiros meses de vida até aproximadamente os 5 ou 6 anos. São elas a fase oral, a fase anal e a fase genital. A passagem harmônica por esses estágios levará o indivíduo ao pleno desenvolvimento e ao equilíbrio, sendo classificado como tipo genital. Entretanto vários fatores podem provocar desequilíbrios nesse processo.

É na fase genital que ocorre o Complexo de Édipo, fundamental para o sentido de nossa vida, em que o menino desenvolve um desejo incestuoso pela mãe e vê na figura do pai um rival. Se o contato anterior com essas figuras for amável e não-traumático, se a atitude deles não for excessivamente proibitiva ou excessivamente estimulante, a formação psíquica tenderá a seguir normalmente. Mas, na presença do trauma, ocorrerá a neurose infantil, que será por certo precursora de reações similares na vida adulta. Nas meninas, o processo correspondente é chamado de Complexo de Electra.

Além dessas fases do desenvolvimento psíquico, norteadoras do comportamento futuro do indivíduo, existem aqueles “acidentes de percurso”, os traumas desencadeados nos diversos estágios de nossa vida e que poderão também gerar desvios psicológicos consideráveis ou até reforçar distúrbios nutridos na tenra idade.

Diante de tantos acometimentos fatídicos a que estamos sujeitos, surgem os Mecanismos de Defesa. Apenas citemo-los: repressão, defesa de reação, projeção, regressão, substituição, transferência e sublimação. Aqui cabe um aprofundamento por se tratar de parte do nosso objeto ensaístico. Para tanto, vejamos alguns conceitos fundamentais à compreensão do todo.

• * Eu Ideal – Representação exteriorizada, um heterônimo de nosso “eu” (Id) para a aceitação social. A chamada “máscara social”;

• * Ideal do Eu – Nossa verdadeira insígnia. O âmago de nossa psique. A maneira como realmente nos vemos, sem “idealização”;

• Objeto – Psic.: Alvo de uma pulsão, que pode ser uma pessoa, um objeto parcial, real ou fantasístico. (Houaiss);

• Pulsão – Psic.: Processo dinâmico, força ou pressão, que faz o organismo tender para uma meta, a qual suprime o estado de tensão ou excitação corporal que é a fonte do processo. (Houaiss);

• Sublimação – Muitas vezes, as pulsões estão em descompasso com os princípios éticos, morais de uma determinada sociedade, porém estão adstritas à figura do “Ideal do Eu”. A possibilidade de renunciar às gratificações puramente instintivas por outras que se perfilem com valores mais nobres é que representará esse mecanismo de defesa. Equivale a dizer que seria uma válvula de escape paras as tensões provocadas pelo policiamento dessas já citadas pulsões. Costuma ocorrer nas artes, na literatura, nas ciências, artes marciais etc.

Quando um mecanismo de defesa funciona, aplacando a tensão, provavelmente nenhum sintoma se desenvolverá. Se, no entanto, falhar, o ego terá de se multiplicar num esforço de correção, lançando mão dos outros mecanismos. É nesses casos que se costumam formar a loucura, as neuroses, as psicoses. Para a psicanálise, as psicoses constituem severa falência dos mecanismos de defesa, somados a outros primitivos. Aqueles da infância.

Assim, munidos de informações fundamentais para aduzir nosso questionamento, voltemos um pouco mais no tempo. Estamos agora em 23 de agosto de 1912, no Recife. Nelson é o quinto filho de um total de catorze.

Com quatro anos de idade, chega com a família ao Rio de Janeiro. O cenário: vizinhas gordas nas janelas, cuidando da vida alheia, das solteironas, das viúvas. Os partos e os velórios aconteciam em casa. É nessa época que uma moradora da redondeza se escandaliza ao ver o menino, Nelson, sobre sua filha, de três anos, beijando-a, feito “um tarado”. Seria já o aflorar de algumas convicções futuras?

"Tarado é toda pessoa normal pega em flagrante."

Aos oito anos, num concurso de redação na escola, provocou outro escândalo ao contar uma história de adultério, em que o marido traído matava a esposa a facadas e, em seguida, ajoelhava-se e pedia perdão. É, no mínimo, incomum um garoto nessa idade revelar tais interesses. Talvez fosse apenas algo inusitado, sem maiores recorrências posteriores.

“A fidelidade deveria ser facultativa.”

Ainda nessa fase, presenciou discussões ferozes entre seus pais. Os ciúmes do velho eram desmedidos e, certamente, infundados diante do comportamento da esposa.

“Esses rapazes de praia que as mulheres vêem na rua. Você vai-me convencer que nunca viu um que a impressionasse? Vai? Um rapaz moreno, forte, de costas grandes, assim. Você nunca beijou em pensamento um homem desses! Hem? Beijou, claro! Não tem ninguém – ninguém – tomando conta de sua imaginação!” (Olegário para a esposa Lídia. A Mulher Sem Pecado. 1941.)

A fuga desse ambiente lhe era a literatura. A literatura nacional e a universal. Mas a temática era, irremediavelmente, sempre a mesma — a morte punindo o sexo, o sexo punindo a morte.

“O assassino está aqui! É o meu cunhado! Assassino! Assassino! Assassino!” (Lígia para Paulo. A Serpente. 1979.)

Filho de dono de jornal, inicia sua carreira jornalística aos 13 anos. Teve a oportunidade de ali conhecer ilustres personagens. Entre eles, Monteiro Lobato. O jovem impressionava a todos pela facilidade de dramatizar fatos do cotidiano. Especializou-se em descrever pactos de morte entre namorados, usual na época.

“Mas não quero que você morra, nunca! Só depois de mim. Ou então, ao mesmo tempo, juntas. Eu e você enterradas no mesmo caixão.” (Teresa e Glória, lésbicas. Álbum de Família. 1946.)

Nelson ainda perderia a irmã Dorinha, aos nove meses de idade, com gastrenterite. Depois assistiria ao assassinato do irmão Jofre. O pai, em função disso, também morreria dois meses após. Isso tudo antes dos 18 anos.

As depressões o acompanharam pela vida toda. Também uma úlcera, paralela às quatro carteiras de cigarros ordinários que nunca abandonou. Mais tarde, conheceu também a tuberculose, que o levaria a diversas internações e a uma cegueira parcial e perene nos dois olhos.

Sua vida foi marcada por vários casos de amor, até que se casou com Elza Bretanha, em 1940. Posteriormente, separou-se e teve ainda outras mulheres. Mas, em 1977, volta a viver com Elza até seus últimos dias.

Elza cumpriu a vontade do amado. Escreveu, ainda em vida, seu nome ao lado dele, na lápide. Era o seguinte epitáfio: "Unidos para além da vida e da morte. É só".

Seria então a dramaturgia uma sublimação na vida do Chato Genial? E seu sucesso, uma identidade coletiva nossa com seus temas? Se for, seremos então, todos, um pouquinho desvirtuados? E, portanto, “personagens rodriguianos”, de fato, da “vida como ela é”?

Ou será que a vida apenas proporcionou farto alimento estético a preencher o universo ficcional do grande gênio da nossa dramaturgia?

Creio que devemos deixar a resposta para os psicanalistas. Aqueles que o analisaram em vida; ou não. Talvez devêssemos mesmo deixar com ele próprio.

“Eu não diria que é uma análise porque o psicanalista não existe no meu caso. A minha obra é que me salva. É possível que sem a minha obra – se eu não fosse tudo isso – eu já tivesse levado a breca. Eu podia estar na esquina rasgando dinheiro caso não tivesse essa possibilidade de expressão. Este é o meu caso.” (Trecho da entrevista concedida à revista Manchete, em agosto de 1977.)

Fontes de consulta sobre a psicanálise de Freud

*** Conceitos baseados em A Psicanálise. Cobra, Rubem Q. COBRA PAGES. O autor é Bacharel em Filosofia.

* Baseado em A Questão do Sujeito e as Identificações. Ambertín, Marta Gerez. Professora de Doutorado em Psicologia na Universidade Nacional de Buenos Aires. Tradução: Angela Lobo de Andrade.

Fontes de consulta sobre a biografia de Nelson Rodrigues

Teatro Completo de Nelson Rodrigues. Magaldi, Sábato. Editora Nova Fronteira. 2004.

Flor de obsessão: as 1000 melhores frases de Nelson Rodrigues. Companhia das Letras, São Paulo. 1997. Seleção e organização: Ruy Castro.

Revista Bravo! Edição nº 118. Editora Abril.

Site Projeto Releituras. 1996 — 2007. Organizador: Arnaldo Nogueira Júnior.

Éder de Araújo
Enviado por Éder de Araújo em 19/12/2007
Reeditado em 08/07/2008
Código do texto: T785164
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