A GAROTA DOS MORTOS (II)

A GAROTA DOS MORTOS (II)

Súbito, num gesto defensivo, meus braços se postam cruzados frente ao rosto, enquanto meu tronco verga para trás, ao modo de um boxer que se defende de um soco cruzado do rival, num ângulo de 90 graus.

Não consigo fácil livrar-me das mãos descarnadas que pressionam as falanges em torno de meu pescoço. A coisa parecer estar recolhendo-se ao corpo larvar, mas, talvez não...Está de volta agora, outra vez, em minha direção, pressionando mais, como se numa última tentativa de me fazer esmorecer, desmaiar. Minha força vinha do fato de que estava a proteger não apenas a mim, mas à minha companheira e à sua filhinha, pelas quais mantinha dedicação e simpatia.

Levanto o pé à altura do queixo da visagem impressionante, numa resposta condicionada à agressividade da entidade trajada de hostilidade, crueldade e horror. Enrijeço os músculos na tentativa de minorar os efeitos do impacto.

Surpresa: a coisa larvar talvez tenha perpassado a densidade física de meu corpo, e rapidamente se esvaiu, dissipando-se, sem que pudesse notar para onde se deslocou. Talvez para um jazigo coletivo num cemitério. Quem sabe tenham voltado para algum satélite, planeta ou meteoro que tenha se aproximado demasiado da órbita terrestre. Como vou saber??? As interrogações são muitas.

O corpo “plenus larvarum” continuou na sala, só que, enfim, parece estar domesticado. Para vencer sua investida usei o princípio do espelho universal: "Dirijo a você, em dobro, a intenção reflexa de sua imagem. Imune sou a qualquer negação de minha dignidade".

A visão da malta de olhares ameaçadores, aos poucos foi sendo substituída por um único e patético olhar. O olhar familiar da indefesa tia, vestida num roupão, de pé, no corredor de acesso à cozinha.

— “Ahh, é você tia” — exclamei ainda temeroso.

Ela grunhiu uma resposta, afastando-se em direção ao quarto, passos flutuantes, como se estivesse pisando em ovos.

Chego À cozinha ainda aturdido, ingiro um copo de água. Volto à sala onde Paula permanece imersa em algum nicho mental no mundo dos pesadelos.

— Paula, sai dessa, acabou. Você está bem. Acorda. Sussurrou algo numa dicção obscura, sentou-se no sofá. A pele excessivamente fria. Gélida mesmo. Aos poucos consegue levantar-se e caminhar até o quarto. Chegando à cama, desmaia.

Não consigo dormir. Meu ego indaga ao inconsciente excitado muitas coisas. Perguntas sem respostas. O domingo amanhece nublado. Neste, nos dias seguintes, falta clima para serem comentados os acontecimentos.

Três dias depois, ela — esquiva, arredia. Sexta-feira, ao entardecer, compramos alguns livros na Livraria da Vila, na Vila Madalena. A seguir entramos num dos bares próximos. Paula pediu um suco de laranja e um chope. Eu, água mineral e um cointreau.

— Aquela coisa aconteceu outras vezes, por que você não disse nada???

A conversa por si mesma carregada de tensão. Responde à pergunta temerosa de entrar no mérito da questão.

— Estou ansioso para ouvir sua versão dos fatos.

— Vamos falar disso depois, responde ela.

— Este não é um argumento coerente. Ficar pra depois, fala sério. Qual é a sua? Como pode sublimar esse horror? Agir como se nada houvesse acontecido. Estou saindo fora desse ambiente cataplasmado, não vou ser conivente com essa coisa mórbida.

— “Não sei ao certo o que aconteceu. Estava dormindo”, diz irritadiça.

— No sofá? Você nunca dorme lá. Por que estava nele exatamente quando a coisa ruim aconteceu??? Acha natural o transe??? Que houve realmente, você sabe, provoquei. Paula replicou agressiva:

Coisa ruim? Todos vivem em meio às coisas ruins. Pode haver algo pior do que a justiça corrupta em conluio com políticos??? Você anda pelas ruas??? Nem lê jornal, que leitura faz da TV???

Faltou perguntar: “que país é esse”??? Ela está francamente na defensiva:

— O horror, você fala em horror. Não sabe??? É onipotente, onipresente, onisciente. Está em todos os lugares, o horror é o Deus da cidade, cara. A realidade nas ruas. A violência, a fome, o sadismo da sociedade...

— A argumentação procede. Mas não justifica abrir mais espaços para que ele mais completamente se manifeste.

Paula está francamente exaltada. Confusa. Como se estivesse pressionada pelo inusitado do evento bizarro. Está a esconder coisas.

— Querendo que encare essa coisa com naturalidade, é isso??? Perguntei.

— O medo e o horror são fenômenos sociais generalizados, ela responde.

— Ora, Paula, não, por favor. tem muita gente inscrita nesses partidos, jogando nesses times dos temores escondidos. Fazendo parte dessas máfias do horror.

— Ora, digo eu, ela afrontou. Todos parecem estar entregues, sem motivação para reagir. Não querem entender.

— Ser troglodita é o normal, mais cômodo, disse eu.

Ela ficou a falar. Eu a ouvir. Seu discurso buscando não polemizar. A excitação visível, indica uma atitude coerente com a situação, a exaltação do ânimo. Estava tergiversando. Fugindo do envolvimento no mórbido evento. Temerosa de admitir participação.

— Você ouviu na TV, o refrão comemorativo da seleção brasileira tricampeã mundial de futebol júnior??? O país inteiro comemorou com muita propriedade: “Ô-Ô-Ô, o Brasil é um terror”. Você ainda não sacou??? Nesse país, quem, de alguma forma, não estiver envolvido em crimes, pedofilia, sodomia, narcotráfico, assassinato, roubo, assalto, clonagem de cartões de crédito, corrupção do colarinho branco, tal pessoa corre o risco de ser assassinada. — A excitação chegou a um clímax vexaminoso. Afirmei:

— Take it easy baby, o crime, o horror e o medo nunca vão parecer normais para ninguém. Nem mesmo para as forças que fazem deles uma estatística aterrorizante.

— Não importa, querido, a coletividade das máfias é mais forte do que a força pessoal de cada indivíduo. Elas exercem com sádico maquiavelismo, todos os tipos de pressão possíveis. Há uma crueldade fanática e determinista nos criminosos.

— Em sua tonalidade de voz também, — disse eu. Seu silêncio por não dizer o que você, é uma defesa dessa morbidez. A mediunidade doentia de sua tia, estou certo??? Desista de calar, essa coisa não tem defesa. — A força do meu desprezo mostrou minha intensa indignação. Minha reação surtiu efeito.

Passaram-se momentos sobre os quais pairou, como um Anjo do Senhor, o silêncio. A esotérica beatitude do silêncio. Paula começou a soluçar. Daí a pouco, a chorar um choro compulsivo. As lágrimas abonam, sozinhas, a contrição.

Soluçando, falou, como se cochichasse um segredo confinado, até então trancado sob sete chaves. A ponta do "iceberg" o enigma emergiu como uma catarse de dentro de seu psiquismo. Emergiu. Claro como um dia solar. Negro como as trevas saturnais:

— Acontece por vezes. Quando o fluxo da menstruação é farto e o sangue flui por mais tempo. É isso.

A voz dela, uma revelação sentida, profunda, sincera, dos acontecimentos passados:

— Não sei bem como acontece. A lua deve estar em quarto crescente. Sucede comigo desde os doze. Sinto-me tiranizada por esses miseráveis agentes do terror. Alma e corpo se revoltam. A sensação de estar sendo usada por essa maldição. Incontrolável. E continuou ela:

— Não aguento mais. A tia diz que quem entra na seita não pode sair. Há a “omertá”, a conspiração do silêncio. Ninguém fala pelo medo disseminado da ameaça pelo terror. Não quero mais, que venham através de mim.

Após longa pausa pronunciou um convicto e sonoro:

— “Não”. Nunca mais mesmo. Ajude-me a sair disso, por favor. Se é que você pode fazer alguma coisa.

— Sim, aconteça o que acontecer, não vou permitir que continue sendo vítima desse culto grotesco. É certo que não teria forças, sozinha, para manter-se distante do ritual, sob a pressão do matriarcado das tias.

Compreendo exatamente a extensão de seu apelo??? Está querendo dizer que as emanações de seu sangue menstrual estavam sendo usadas para atrair entidades astrais que abusam de pessoas e as transformam em médiuns de um culto muito antigo, supostamente desaparecido???

A Bíblia menciona muitas vezes os sacrifícios de sangue de animais e pessoas: quando Abraão é compelido pelo Anjo do Senhor a sacrificar seu filho Isaac na rocha Moriá. Ainda que esse sacrifício não se tenha consumado.

Nas principais culturas pré-colombianas, o sangue celebrava as entidades astrais. Vampiros reclamavam sangue, torturas e sofrimentos animais e humanos. Os sacerdotes que os invocavam por vezes tiravam do peito da vítima do sacrifício o coração ainda pulsando. O sangue, poderoso coagulador psíquico, exalta emoções, instintos e paixões destrutivas. Os sacerdotes representavam a vontade de sobrevivência do povaréu, principalmente em períodos de crise: escassez\ de alimentos, de água, secas, fome.

Na Odisseia homérica, Ulisses, após chegar à terra dos Cimérios, na entrada do mundo subterrâneo, degola as vítimas e derrama o sangue delas numa cova. É quando surgem, vindas do Érebo as almas dos mortos. É quando ele fica pálido de terror:

— “Vindas do fundo do Érebo, juntaram-se as almas dos mortos, anciãos experimentados na vida, delicadas donzelas de corações afligidos por penas recentes, e guerreiros feridos por lanças de bronze, vítimas de Ares... Acudiam em chusmas de todos os lados da cova, com grande clamor. Fiquei pálido de terror.” As almas reclamavam sepultura. Temiam as tribulações que as assombravam. E as que as aguardavam.

Após haver falado com a alma do oráculo tebano Tirésias, Ulisses ficou imóvel, Ulisses viu sua mãe chegar e beber do sangue negro. Após tê-lo ingerido, ela o reconheceu e falou: “Meu filho, como vieste em vida a esta bruma tenebrosa??? Esta é a lei dos mortais, logo que morrem: os nervos não mais seguram as carnes e os ossos... logo que a vida abandona a branca ossatura, a alma se dispersa como num sonho. Apressa-te a regressar quanto antes à luz. Guarda na memória todas essas coisas”.

Eu estava a despertar para a compreensão do incompreensível. Aquelas almas dos defuntos pareciam sequiosas para beber do sangue de Paula e ir, talvez, minorando suas exasperações. Talvez essas criaturas de outra dimensão a estivessem usando para melhor compreensão de si mesmas. Aterrorizadas que estavam, também elas, no astral que as consumia num lugar sem paz, pela eterna idade.

As facções místicas que governavam a Atlântida prestavam culto à entidades mefistofélicas da “Noite Antiga”. Um desses partidos ofertavam vítimas a Xotli, o “Senhor do Terror”. Os atlantes sacrificavam milhares de escravos, capturados nas regiões mais periféricas, em honra à sua perversa e sequiosa divindade.

Paula mencionou outras coisas, entre elas, um livro de circulação restrita no ambiente esotérico das tias. Tive acesso apenas ao misterioso nome:

"O Livro da Criança das Trevas

Do Jovem das Trevas

Do Adulto das Trevas

Do Idoso das Trevas"

Ficou gravado na mente devido ao inusitado da designação. Ela desabafou por longo tempo: lembranças traumatizantes, até então reprimidas, foram como que vomitadas. A situação dramática: tanto tempo vítima de extrema e violenta coação anímica, sentimentos de horror vieram à tona aos borbotões.

A verbalização da tragédia pessoal, o alívio pertinente à purgação de culpas. Ela comeu o fruto amargo por muito tempo. Verteu o ferimento de sangue. Expeliu as obscenidades que a haviam exaurido por toda uma vida. Mostrou as luas crescentes, que eu conhecia, tatuadas no pulso direito, nos seios e na parte interna da coxa esquerda.

O fanatismo gratuito do discurso anterior desapareceu. Tinha sido anistiada das suas culpas pelo Anjo do Silêncio. Em nenhum momento foi dominada pela emoção. Apesar da questão superlativamente insidiosa.

Disse que a tia estava se mudando do apartamento. Que jamais admitirá ser novamente usada pela mediunidade destrutiva dos familiares. Falou que, entre os homens, há um ritual masculino. Afirmou que sua ginecologista vai dar um jeito no excesso do fluxo de seu plasma menstrual receitando certas vitaminas.

— Fique comigo, prometa que não vai me deixar sozinha. Nunca. Por favor. Aconteça o que acontecer não serei médium dessas forças subterrâneas outra vez. Jamais. — Paula havia voltado à condição de emotividade. A expressão concentrada e os olhos espantados.

O namoro não terminou, está suspenso. Estamos de acordo em manter um certo distanciamento. Pediu a tia para levar as fotos dos parentes quando, em breve, se mudar do apartamento. O pentáculo formado pelas fotografias de seus ancestrais, foi substituído por fotografias de sua filha na parede da sala.

Quem sabe, com ou sem minha presença, ela possa conduzir a vida da forma que o poeta William Blake vaticinou: “Conduz teu carro e teu arado sobre a ossada dos mortos”. A Máfia, organização criminosa globalizada, foi fundada na Itália no século XII. A princípio para garantir a segurança pública. Lembro das denúncias do jornalista da Folha, Lucas Figueiredo, autor do livro Morcegos Negros.

Segundo esse livro, as atuais autoridades do país de Pindorama seriam responsáveis pelo escancaramento do país a todos os tipos de infiltração criminosa. As do baixo-astral defenderiam, até do além túmulo, os interesses espúrios dos herdeiros atuantes, ascendentes de clãs e “famílias”, com tradição em todo tipo de crimes. Algumas delas com mil anos de “know-how” fúnebre.

Estou a afirmar possibilidades. Paula descende de sicilianos. É possível, talvez, deduzir a presença de membros de uma quadrilha ancestral, por trás dessa manifestação astral, a representar ameaça, necrofilia e morte???

Os filmes da Babilônia atual transformaram a mente de seus moradores em habitação de demônios. Hollywood tortura seus espectadores com assombrações, chutes, pontapés, tiros, golpes baixos, corrupção, enriquecimento ilícito, tráfico, violência, ultraviolência. A insegurança penetra facilmente no subconsciente dos TV espectadores da sala de jantar, através dos olhos, ouvidos e demais sentidos.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 26/11/2023
Reeditado em 26/11/2023
Código do texto: T7940795
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