O mar é minha mãe e eu sou mãe do mar

Fico feliz que lembrem de mim quando olham pro mar. O primeiro nome que eu tive foi um nome de mar, mas sempre passei de olhos retos sobre ele. Como se não existisse. Como se meu nome fosse no máximo paisagem da janela de um prédio. A cidade me engolindo, a areia ficando seca, minha cabeça se envenenando. Só quando precisei de outro nome lembrei do meu nome. Quando tava com a faca em punho pra matar, quando tava soltando a mão da ferida sangrando pra deixar morrer. O mar suspira, forte, se acumula, se levanta e se revolta comigo. E continua a avançar e a engolir tudo com a garganta de maresia, as pessoas na margem, as barracas na areia, as calçadas, as ruas, os postes, os esgotos, os muros um atrás do outro um na frente do outro um cobrindo o outro. O mar quer engolir sua visão e ser completamente visto e depois irá recuar. Voltará para dentro de mim e caberá na minha mão e eu renasço dentro dele, antes de avançar novamente. Suspiro, forte, me acúmulo, me levanto, me revolto. Tenho outros nomes, muitos nomes. Me viro de costas pro mar como se agora fosse avançar não contra ele, mas junto dele. Avançar contra a cidade e sua rigidez metálica que é uma faca assassina. E vou engolir tudo com garganta de maresia, as pessoas na margem, as barracas na areia, as calçadas, as ruas, os postes, os esgotos, os muros um atrás do outro um na frente do outro um cobrindo o outro. Tudo. Tenho outros nomes, muitos nomes. O primeiro nome que me deram e a primeira pessoa que eu fui é o mar nas minhas costas, como quatro asas de anjo, protegendo meu caminho, como a mão de uma mãe me trazendo pra areia. O mar conhece a pessoa que eu fui antes de nascer. O mar também vê tudo que se estende na minha frente. O mar também conhece as pessoas que estão ao meu lado. Toca nossos pés docemente com uma onda rasa avisando que vem vindo e que é preciso ir mais pra frente. Tenho outros nomes, muitos nomes, e elos olham o mar junto comigo. Depois se viram também e se voltam contra a cidade, junto comigo. O mar precisará engolir sua visão, o mar precisará ser completamente visto. (Precisamos ter nossos nomes e nossos espaços. Avançar e recuar e avançar e existir sobre a areia e a cidade.) Depois precisaremos ficar docemente deitados. Vento que flutua o tempo, e maresia que suspira na garganta, amolece os raios do sol, diminui o som da cidade. Descanso. Existir. Forte. O mar protege os seus, meu anjo e minha mãe. Eu nasci do mar com um nome de mar e renasço no mar. Nasci na areia encarando a cidade, transportado pelas mãos da minha mãe e protegido pelas quatro asas do anjo, nos raios do tempo. Me acumulo, me levanto. Meus irmãos e minhas irmãs são filhes do mar. Lembram de mim quando olham pra ele e eu fico feliz. Descanso. Maresia no vento. Hoje tenho outros nomes, muitos nomes e todos nasceram de mim ou nasceram comigo. O primeiro nome que me deram sobre o qual passei os olhos retos tantas vezes é o nome que agora eu coloco sobre a areia, é o nome que eu decido lavar do sangue da ferida da cidade e é o nome que eu decido proteger. É um nome que não é mais uma palavra e não é mais só uma pessoa. Sou uma mãe e sou um anjo e vivo no mar. Sou mãe do mar inteiro. Suspiro. Pronuncio meu nome ao tempo. Meu nome é o Mar.

Nia Ferreira
Enviado por Nia Ferreira em 17/12/2023
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