Monte Verde

Por falar no modo como a Ribeira Grande se abriu (foi abrindo) para o mar. Se na década de trinta, dera um (leve) empurrão, na de quarenta, deu um (valente) safanão. Não tanto pelo que se materializou, mas pelas ideias que semeou. Abanão (inicial) (em grande parte) dado pelos ‘soldados de Lisboa’ aquartelados na (antiga) Fábrica do Álcool (no Cabo da Vila) e no aeródromo de Santana (base aérea n.º 4). De 1941 a 1945, o litoral da Ribeira Grande adquiriu (uma extraordinária) importância estratégica (como nunca antes vira nem nunca mais haveria de ver). São construídas - do areal de Santa Bárbara ao Miradouro de Santa Iria -, só para referir esse troço da costa, casamatas e posições de metralhadores. Era preciso proteger (a todo o custo) o porto de mar (em Ponta Delgada) e o aeródromo (na Ribeira Grande). Tanto quanto (até ao momento) pude verificar, não se terá adiantado (do ponto de vista material) um só milímetro à via litoral, nem (tão-pouco) terão sido acrescentadas (quaisquer) comodidades (de monta) às Poças e, no entanto, esse é o ponto onde quero chegar, os jovens militares (soldados ou oficiais) (mais tarde os funcionários do aeródromo) trazem (consigo) novos hábitos e (além da ida aos dois cafés, às tascas, ao Teatro, ao jardim Municipal e às festas religiosas de verão) frequentam (também, com regularidade) o mar. São jovens continentais habituados (nas suas terras de origem) aos banhos no mar ou nos rios. Alguns (até) fotografam-no. Não só vão às Poças, mas (talvez, seja essa a novidade) vão aos areais (do de Santana ao do Monte Verde). Apesar de (ao que se diz, o que ainda não confirmei) alguns terem aí perdido a vida. É (pela mesma ordem de ideias) provável que (também) o fizessem no Calhau da Furna, nos Poceirões, no porto das Calhetas e na praia de banhos de Rabo de Peixe.

Ligado (a partir de certa altura) ao primeiro aspecto, há a questão da Cidade. Como sempre acontecia em ocasiões que vinham a calhar, e essa seria uma delas, (re)apareceu (ainda que de forma inorgânica) um novo impulso para fazer da Ribeira Grande Cidade. Chegam (a esse respeito) ecos (talvez apenas fragmentos) dessa intenção, a dois jornais de Ponta Delgada (o Correio dos Açores e o Diário dos Açores). O sonho não morrera com o malogro de 1852, longe disso, por exemplo, na edição de A Razão, de Abril, Jorge Gamboa exclamava (todo esperançado) ‘Ah! … Se todos os ribeiragrandenses quisessem!...’ Porque era ‘muito superior a muitas cidades de Portugal continental.’ Em 1947, voltaria a repeti-lo. Aquela aspiração de ser Cidade, seria ‘falada’ pelos dois cafés (de então) da Ribeira Grande: o Central e o Peixoto. A esse respeito, destacam-se (claramente) duas ‘posições.’ Herdeiras de 1852, da primeira tentativa conhecida. Sendo ambas favoráveis à criação da cidade, divergiam, porém, quanto ao momento (adequado) para tal acontecer. Uns, essa era (e seria sempre) a posição de Jorge Gamboa, defendiam que só o deveria ser após a resolução de (algumas) carências (tidos por estruturais); outros, não negando essas carências, achavam (no entanto) que se fosse já Cidade essas carências teriam mais hipóteses de serem resolvidas (posição do Padre Edmundo Pacheco na década de setenta). Ambas, no entanto, coincidiam (ou acabariam por coincidir) num ponto: a importância (vital) da via Litoral (avenida marginal). Cuja construção, segundo o modernismo da década de quarenta, se justificaria (serviu para justificara a de Ponta Delgada) pelo movimento automóvel. Naquela década de quarenta, a ideia (sonho) da via litoral (que na década anterior) deveria ir da canada das Feiticeiras (rua José Dâmaso) ao Largo de Santo André, iria (a partir de então) estender-se a poente. Numa das propostas (já) conhecidas, pretende-se (doravante) ligar o largo de Santo André ao Bandejo. Por que razão a Ribeira Grande queria uma via litoral? Seria (apenas) vaidade de uma candidata a cidade? Por essa altura, a cidade de Ponta Delgada construía a sua primeira via litoral. Aumentara (na Ribeira Grande) o trânsito automóvel? Esperava-se que isso viesse (em breve) a acontecer? Não esquecer o aeródromo de Santana (que passara a ser operado pela SATA). Sem fugir às questões anteriores, estou em crer que (além daquelas) existiriam (ainda) outras. Quais? Por exemplo, razões económicas. Como atrair o turismo sem olhar para o mar? Também (por) razões estéticas e sanitárias. Quem (porventura) sobrevoasse a Ribeira, veria o seu lado mais negro (e degradado). Além disso, seria uma medida de protecção. A orla marítima da Ribeira Grande - dizem os especialistas -, é geologicamente frágil. A este propósito, é (re)ler as Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso. Ou ‘As Crónicas (…),’ de Frei Agostinho de Monte Alverne. A solução – acreditava-se -, passaria por retirar a população do litoral e realojá-la (como o foram fazendo desde a década de trinta) em locais (considerados) mais seguros (e próprios. Leia-se, para não afrontar a sensibilidade burguesa).

De certo modo, falar do projecto (ideias) para uma via litoral na Ribeira Grande, passa (também) a querer dizer que se pretendia elevar a Vila a Cidade. Neste período a Câmara conheceu dois Presidentes: o Dr. Lucindo Rebelo Machado (n. 2.04. 1905 RG f. 19.11.1970 RG) (Presidente: 1941 e 1946 a 1949) ‘fuseiro’ da Matriz e o picoense de São Roque Dr. Luciano Machado Soares (n. 25.06.1902 – Pico - f. 15.12. 1977 PDL) (Presidente: 1942-1945). Findara (entretanto) a II Guerra. Os militares ‘de Lisboa’ haviam regressado a casa. No entanto, alguns (pelo casamento) permaneceram na Ribeira Grande. Na Presidência do Dr. Lucindo realizou-se a ‘1.ª Conferência de Administração Pública. A 6.ª Sessão realizada no sábado último [31 de Julho de 1948], na Câmara da Ribeira Grande.’ O que foi (eventualmente) dito aí de interesse para perceber a transformação (litoral) urbana da Ribeira Grande? Uma ‘Estrada [da] beira-mar, que ligará a rua dos Mercados [rua do Estrela] com o Largo de S. Pedro, da Ribeira Seca.’ Trata-se (atente-se) de um (outro) traçado. Seria (antes) a retoma do projecto do prolongamento da rua do Estrela de finais de 1899. Que estaria (então) a aguardar a elaboração do seu ante-plano urbanístico. O que se passou? Vamos ao início do processo, dando a palavra ao Presidente Lucindo: ‘A repartição superior de urbanização, depois de obter o assentimento desta Câmara, nomeou o arquitecto João [António] de Aguiar [n.1906- f. 1974] para a elaboração do ante-plano de urbanização (…).’ E depois? ‘Porém, caso extraordinário [assim o qualifica, indignado, o Presidente Lucindo], o referido arquitecto, vem, posteriormente, a Ponta Delgada [Em 1944 apresentara o ante-projecto de Ponta Delgada. Que foi aprovado em 1946], ignorando aquela nomeação (….).’ Continue-se a seguir: ‘e, quando foi informado dela, respondeu que só depois de outros trabalhos a realizar em África, poderia desempenhar-se daquela missão (…).’ Como explicar que Aguiar tenha sido retirado (é esse o termo) da Ribeira Grande mantido em Ponta Delgada? Não há documento que o diga ‘preto no branco,’ no entanto, uma coisa é certa, Aguiar não o fez sem ordens superiores. Por que razão os superiores hierárquicos de Aguiar (Ministro, no mínimo) o fizeram? Pior, sem se dar cavaco à Ribeira Grande. Eis uma explicação possível. Apesar de a Ribeira Grande ser a melhor Vila do Distrito (e uma das melhores do País), a Cidade de Ponta Delgada era a capital do Distrito. Fazia ou não sentido que o Estado Novo a tratasse em primeiro lugar? Fazia ou não todo o sentido que a Ribeira Grande viesse a seguir? Sim. E o Ministro do Estado Novo – a quem ‘a reclamação’ foi apresentada -, deu (pelo conseguinte) novas instruções a Aguiar? E a Ribeira Grande ter-se-ia de contentar com o jovem arquitecto Quintanilha. Saído há pouco da Faculdade. Até melhor prova, é admissível pensar assim? É. Tanto poderá ter sido assim que intelectuais, comerciantes, Câmara e Governo Central, se uniram para que isso acontecesse. Em 1946, Carreiro da Costa (para dar mais força ao argumento), exagerara (a meu ver) a situação: ‘Ponta Delgada, ainda hoje, afora as artérias mais recentes, não é mais do que um amontoado de casas dispostas segundo arruamentos tortuosos e praças de acanhadas dimensões, sem molduras apropriadas, nem exposição conveniente.’

Enquanto as obras avançavam no litoral de Ponta Delgada, o processo parara (por completo) na Ribeira Grande. O Dr. Manuel Barbosa (n. 17.12.1905 PDL — f., 27.06. 1991 - São Brás de Alportel), que fora colega do Dr. Lucindo no Liceu, é uma das vozes a quem Pereira da Silva pede opinião. Este, quanto ao ‘ponto de vista urbano,’ (já em Fevereiro de 1949) sugere (sem adiantar pormenores do seu traçado) ‘a construção de uma avenida litoral, que reactivasse a indústria da construção civil e atraísse aqui mais forasteiros, especialmente na quadra do verão.’ Pede (o mesmo) ao Conde de Caminha, D. Lopo de Sousa Coutinho (n. 25-05-1891 – São Jorge de Arroios – Cidade de Lisboa – f. 18-01-1976 – Lisboa). Em Setembro de 1949, na parte que interessa a este meu trabalho, aliando turismo e praia, Caminha adianta (para beneficiar a praia) razões de atracção de forasteiros: ‘Aproveitem a época de divertimentos e bar na praia de banhos e verão como nestes meses – em que o calor é horrível na cidade e em que muitos almejariam um passeio até esta Vila, que tem fama de ser mais fresca – conseguiriam ter um turismo que, apesar de caseiro, sempre deixaria interesse a muitos, e sobretudo aos que o soubessem industrializar.’

Segue-se, naquele mesmo mês de Setembro, um desentendimento (público) entre o Presidente Lucindo e Jorge Gamboa. ‘Casa que não há pão, todos ralham e ninguém tem razão?’ Tudo começa numa edição especial dedicada pelo Correio dos Açores à Ribeira Grande. E (provavelmente) pelo teor de uma caixa (na primeira página): ‘à brilhante actividade dos munícipes que ciosamente se orgulham da sua Vila-Cidade.’ Jorge, é possível supô-lo, porque havia muito a fazer e nada ou muito pouco entretanto fora feito, além disso, estava tudo quieto, aproveita a (excelente) ocasião para tentar acordar o ‘orgulho da Vila Cidade.’ Até isso acontecer, a Ribeira Grande não seria digna de ser Cidade nem (sequer) mesmo (fosse o que isso fosse) ser Vila-Cidade. Não é meigo, bate forte: ‘Para que sejas digna do teu passado e digna do cognome que te querem dar, tens de despertar da agonia lenta em que caíste. (...) se não o fizeres, todos aqueles que agora generosamente te enlevam a alma com o nome de VILA-CIDADE, passarão dolorosamente a magoar-te alcunhando-te de CIDADE-ALDEIA.’ No início do mês seguinte, no Diário dos Açores, D. Lopo Coutinho (conciliador) propõe uma saída para a questão. O título que dá (diz quase tudo): ‘Pode a Vila da Ribeira Grande vir a ser Vila-Cidade? Pode, se o Povo do concelho, num grito uníssono disser: - Nós Queremos…’ Trata-se de um plano (radical) para transformar a Vila numa (verdadeira) Cidade. Além do plano, sugere (tão ou mais importante) fontes (possíveis) de financiamento. Diga-se que Lopo era (igualmente) empreiteiro. Vou apenas retirar o que diz respeito à via litoral. Após (diversas e muito interessantes) propostas, volta-se para o litoral. É original, coloca em paralelo o traçado da via e a praia de banhos: ‘Depois, debruçando-se sobre o mar, como uma linda estrada de turismo que então seria, iria com jeitos de cobra que o mar lhe daria até ao Palheiro e dali até alcançar a estrada actual para as Furnas. A lindíssima praia em que terminaria este Parque [Monte Verde: do Bandejo à Vila Nova], procurar-se-ia que a Capitania e a Junta dos Portos cuidassem dela, de forma a torna-la uma praia de banhos. Praia para adultos e praia para crianças na foz da Ribeira.’ Que aconteceu (entretanto) à Ribeira Grande? Foi (então) cidade? Não. Seria improvável que o tivesse (então) sido. Não são conhecidos (quaisquer casos de Vilas feitas Cidade no período salazarista. E a via-litoral? Teria de esperar que Ponta Delgada acabasse a sua? Terá chegado a sua vez na década seguinte? Não. O Estado Novo investia na (nova) Praça Velho Cabral (e áreas adjacentes)? É provável. Apesar de (então) a Ribeira Grande não ter alcançado os seus objectivos, no entanto, enraizaram-se hábitos de ida ao mar. E (importante) não se desistiu da ideia de vir a ser cidade nem de ter uma via litoral.

Museu Municipal da Ribeira Grande (cidade da Ribeira Grande) (continua) (Correio dos Açores,18 de Agosto de 2023)

Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 12/01/2024
Código do texto: T7974872
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