Areais

Na área (e arredores) da cidade da Ribeira Grande? Dois, os maiores da Ilha, e outros dois (talvez três, muito mais) pequenos. Os maiores, gêmeos siameses, seriam (ao longo da História geológica) separados pelos biscoitos do Bandejo e da Cova da Burra. Ainda assim, em ocasiões muito raras, voltam a ser (apenas por alguns dias ou até menos do que isso) um só areal. E os dois (mais) pequenos? Do lado nascente do Morro, ficam as Prainhas (de Santana). Primas de Santa Bárbara. A nascente da Areia fica a (minúscula) priminha Poças. Uma parente (recente e) inesperada. Há um terceiro, um areal com seixos, na Ribeirinha, a Prainha (acessível apenas pelo calhau). O areal do litoral da Cidade é a Areia. Conhecido (também) por Areal, Areal da Conceição, Areal da Ribeira Grande (para distinguir do da Ribeira Seca) ou por Monte Verde. O outro, o maior da ilha, estende-se entre o biscoito da Cova da Burra e o promontório (do Morro). É o (hoje celebérrimo) Areal de Santa Bárbara (que – por um triz -, não desaparecia na década de noventa). É também conhecido por Areal da Ribeira Seca. Que outras mais praias (de areia) existem no Concelho? A poente: o Calhau da Furna (nas Calhetas) que na década de noventa (à custa da areia de Santa Bárbara) quase foi areal. A nascente: os areais do Porto Formoso (Moinhos, porto de pesca, Areia do Meio e do Cabo); o Calhau da Areia (areal do porto de pesca na Maia) e a praia da Viola (de seixos e areia) (Lomba da Maia/Maia). Que, em anos, é calhau.

Como via a Ribeira Grande (no seu todo) os seus areais? Como (potenciais) locais de lazer, a Câmara ignorou-os (totalmente) no Plano de Urbanização de 1960. Porém, já para finais daquela década e inícios da seguinte, a atitude começaria (gradualmente) a mudar. Ainda assim, de forma (bastante) ambígua. Pois que, enquanto olhava quase só por obrigação para a Areia e Prainhas (Santa Bárbara era apenas uma ‘mina’ de areia), já olhava com interesse crescente para a Praia dos Moinhos. De um modo geral, quer a Câmara quer a população, via os (seus) areais (todos eles) com (muito, mas muito) respeitinho. Na Ribeira Grande (sede), por a costa ser baixa (ao alcance do mar) e de areão, temia-se (como o Diabo teme a Cruz) a sua força destruidora. Que lhe arrancava pedaços e engolia casas. Via (por isso) o mar com muita desconfiança. Que se saiba, a Areia (e o Areal de Santa Bárbara), não terão sido portos como ainda o são os areais do Porto Formoso (onde se deve incluir o dos Moinhos) e o da Maia. Ainda que – no início do povoamento – possam eventualmente ter cumprido – pontualmente ou não – essa função. Não há registo (que saiba) de a terra ter sido (alguma vez) pilhada por piratas. Todavia, o medo (dessa possibilidade) teimava. Bem como o ‘medo’ dos espíritos (bons ou ruins). Mal soavam as trindades, a Areia era (só) deles. Contava-se (muito a medo) na Conceição (onde fica a maior parte da Areia) que de sete em sete anos, D. Sebastião, montado no seu cavalo - acompanhado por outros mais cavaleiros -, subia e descia a rua de São Sebastião. Corriam-se (então) cortinas e postigos. Acautelavam-se as crianças. Ai de quem fosse apanhado a espreitar! Era esperar coisas ruins. Antes de voltar ao mar, D. Sebastião ‘enterrava’ a espada (mesmo) no meio dos quatro cantos (intersecção da rua Direita com a de São Sebastião). Era (ainda) na Areia que aos Sábados à noite (com a presença do Demónio) as ‘feiticeiras’ e ‘bruxos’ iam ‘dançar’ à roda de fogueiras. Areia que - além de separada da irmã Santa Bárbara -, ainda é cortada por três linhas de água (foz da ribeira Grande, foz da levada dos moinhos e foz da ribeira Seca). O mar era a última morada do que de mais sagrado se partia: imagens. Como? Atirando-as (literalmente ou por palavras) ao mar. Ou do que se temia. Certas ‘poções’ dos curandeiros, só ‘faziam efeito,’ se fossem (ritualmente) atiradas (de costas voltadas) ao mar. Mas era também de tudo o mais que não prestava (lixo). A Areia era (além do mais) o território dos (mais) pobres da Ribeira Grande, dos que viviam no Curral, na rua do Saco, na rua da Praia, na Vila Nova, no Bandejo. Território cuja fronteira se situava (sobretudo) na rua Direita (território dos Senhores da terra). Havia no Areal (além das três linhas de água) outros espaços (de fronteiras porosas). Ali e nos calhaus vizinhos, pescava-se (algum) peixe ou apanhava-se marisco. Ou partia-se a pedra para calçadas e casas. Os lavradores ‘iam aí dar de beber água salgada a gueixos, vacas, bois, cabras e cavalos.’ Para serem saudáveis, faltava-lhes o sal. As lavadeiras estendiam lá a secar (sobre a areia ou em pedras próximas) a roupa (a sua e a das senhoras da rua Direita). Que haviam lavado na água da vala dos moinhos ou na da ribeira. Daí se retirava a areia (muito pouca) para as calçadas (isso mais de meados do século XX para cá).

E a relação dos da rua Direita para cima com a Areia? Ainda de mais medo. Ainda na década de sessenta e mesmo depois, querendo meter medo aos mais afoitos, pais, avós (da rua Direita para cima) repetiam como (se fosse) um mantra que aquele mar era um mar de ‘morte certa.’ Contavam casos (escabrosos) de mortes, de cadáveres meio comidos por peixes, etc... Aquele areal (e o de Santa Bárbara) era (e é) perigoso, pois, exigia (como ainda hoje exige) um (bom) domínio das ‘manhas’ (entenda-se correntes) do mar da Areia. Manhas (bem conhecidas por quem morava por ali) mas que (os de fora dali) só décadas mais tarde, graças aos surfistas, pioneiros dos anos oitenta (os aventureiros), iriam conhecer. Apesar das ameaças, os mais destemidos, não faziam caso dos pais. A atração pelo mar era irresistível. Das Poças faziam-se travessias (ida e volta) a nado ao Bandejo, no final poente do Areal. Ia-se descansando. Parava-se. Um grande esticão. Quem não aguentasse a tirada (dupla) regressava (envergonhado ou com uma boa desculpa) a pé. No percurso, de quase um quilómetro de areia e mais uns bons metros da pedreira das Poças Velhas, havia tempo para uns mergulhos. Ainda nesses idos de sessenta, apesar do forte apego da Ribeira Grande às (suas mais do que tudo) Poças, já havia quem quisesse (sem deixar as Poças também) ir à Areia e aos areais. Se a moda já chegara a algumas praias do Sul da Ilha, por que não haveria de chegar ali? Os da rua Direita para baixo estavam sempre no areal. Tanto mais (ainda) que era um sítio ‘discreto.’ Podia lá fazer-se o que era vedado fazer nas Poças. A chegada à terra de ‘parteiras’ continentais, com mentes abertas, deu outro empurrão. Por ser pouco frequentada, aproveitavam-na para (e para deleite dos mirones) fazer (às escondidas) (lá ao fundo) ‘topless.’ E estudantes (no Continente e em outro locais) de férias. Que vinham com hábitos de praia de areia. Para alguns jovens da Ribeira Grande e alguns (seus) conhecidos de Ponta Delgada (e de outros pontos da Ilha), ainda no tempo em que o aeroporto da Ilha era o de Santana, por haver ali uma praia mais discreta (por ficar mais afastada de casa, longe dos olhares paternos) e (porventura, um pouco mais segura), por vezes, preferiam-na a Santa Bárbara (onde raramente iam) e à Areia (onde já iam). Porque não tinham transporte, iam a pé a Santana. O areal de Santana (Prainhas), ‘há mais de 60 anos (…) era frequentado maioritariamente pelo pessoal que trabalhava no aeroporto e alguns grupos familiares de Rabo de Peixe. Além destes, mas muito menos frequente, aparecia lá alguém das famílias que passavam férias em Santana.’ É a essa luz que se entenderá o pedido de apoio feito à Câmara de 13 de Maio de 1970 pela Junta de Rabo de Peixe: construir uma ou duas barracas e melhorar o acesso àquela praia. O que a Câmara acedeu. Terá sido (ainda antes da praia dos Moinhos) a primeira praia (de areia) concelhia a ter barracas? Se chegou (alguma vez) a tê-las, terá sido por pouco tempo. Ainda na década de setenta, já lá só havia areia e mar. E era frequentada, ‘além de nós,’ pelos ‘seminaristas em férias.’

A partir de 1974, acentuar-se-ia a tendência de inícios da década. A frequência às praias de areia cresceu a olhos vistos. A muralha social, separando os da rua Direita para cima dos de ‘lá de baixo,’ que (graças à frequência das Poças) (já) havia aberto brechas na década de sessenta, na de setenta em diante, haveria de provocar novo rombo. Deu-se, no ponto (exacto) em que a rua de São Sebastião toca o Areal (entre a rua da Praia e o Monte Verde). Porquê? A escola e o futebol forjaram (sólidas) amizades entre os de cima e os de baixo da Ribeira Grande. Além disso, Abril de 74 destapou a tampa dos (apertados) usos e costumes (em todo o lado e aqui também). A televisão, introduzida aqui em Agosto de 1975, ajudaria a ver (em directo) outros mundos. A juventude da Ilha (quase sem atrasos em relação ao que se faz lá fora) adopta novos hábitos. Sobretudo as raparigas, até então, muito ‘resguardadas.’ É a época das boîtes. Da (maior) frequência aos cafés. Que entram na política (em todas as barricadas). Dos encontros nas praias até ao pôr de sol. Das conversas (noite dentro) no jardim. Jovens (nacionais e estrangeiros) escolhem o areal para acampar. Isso tudo ainda (muito) à mistura com o que vinha de trás. Em 1971, talvez por se considerar haver (ou em breve ir haver) um número ‘razoável’ de frequentadores da Areia, o novo Presidente (Fernando Monteiro) propôs ‘por ser a via de ligação à praia da Ribeira Grande de maior importância e de mais fácil acesso,’ o ‘arranjo (da) zona denominada Moinho da rua do Infante.’ Com o propósito ‘de criar condições de limpeza à mesma zona e do futuro estacionamento de automóveis dos utentes da referida praia.’ A Câmara prometeu verba para a obra. Nessa mesma vereação, propôs ainda melhorias no acesso à praia dos Moinhos (no Porto Formoso). Já no tempo do Presidente Artur Martins, em 1978, seriam ali construídos dois balneários. Em 1979, planeava-se (ainda) um acesso pela Ladeira da Velha (o que me leva a crer que a proposta de 1971 – em parte ou na totalidade -, não fora materializada). Também se planeava, ainda em 1979, a construção de um parque de estacionamento para servir ‘aquela zona balnear.’ Por essa altura, a praia dos Moinhos (já) era procurada por gente vinda de toda a parte da Ilha. Seria a primeira praia de areia do Concelho a abrir-se (decididamente) à nova moda.

O que se passava (então) no resto da Ilha de S. Miguel? Já (bem dentro) da década de sessenta, em Vila Franca do Campo, ‘ (…). na praia de Água d’Alto algumas famílias, poucas, tinham a sua barraca de madeira que era colocada no início do verão e retirada no fim. Onde se trocava de roupa, poucas famílias tinham, talvez meia dúzia e a minha era uma delas.’ A disponibilização ao público por parte das autarquias (Câmaras ou Juntas) de barracas, balneários e de vigilantes, contribui para uma (assinalável) melhoria (e aumento) na procura da praia de areia. Qual terá sido a primeira praia (de areia) da Ilha a estar sob alçada Municipal? Pelo que consegui saber, terá sido a do Pópulo (praia Pequena) (logo na abertura) da década de sessenta. Já lá existiam (então) barracas e balneários. O que trouxe aos areais (da ilha e da Ribeira Grande) a década de oitenta? Uma volta (dir-se-ia) de (quase) 180 graus. Na Ilha, as praias do Pópulo, das Milícias, de Água de Alto, da Vinha da Areia e (até) a dos Mosteiros, ganham fama. A praia dos Moinhos é (então) a praia da Ribeira Grande (e de muita gente da Ilha). O hábito (generalizado) do campismo e o aumento do parque automóvel, torna-as (mais) acessíveis. Que acontece à Areia e ao Areal de Santa Bárbara? Sob a pressão da construção, o Areal transforma-se no epicentro da exploração industrial de areia destinada à Ilha inteira. A Areia (por seu turno) conhece (por pouco tempo) as suas primeiras (e básicas) benfeitorias. Porém, apesar de ser cada vez mais frequentada, a Areia ficaria (pouco depois, basicamente) entregue a si própria até inícios do século XXI. Mas é então que a Ribeira Grande passa (finalmente) a Cidade. E entram em cena os ecologistas (das ondas: surfistas; dos trilhos: Amigos dos Açores; do campismo: Escuteiros). Vou (tentar) ver (a seguir) a sua (possível) influência na evolução da História dos areais da Ribeira Grande.

Areia (Cidade da Ribeira Grande) (continua) (Correio dos Açores, 22 de Setembro de 2023)

Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 13/01/2024
Código do texto: T7975591
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