O Resgate de Santa Bárbara

Se era uma entre (muitas) praias de areia da ilha, por que foi ela (e não uma das outras) a escolhida para abastecer de areia a Ilha (inteira)? Porque ficava na Ribeira Grande e a Ribeira Grande era a grande fonte de matéria-prima da ilha. Além do mais era a maior e a mais larga praia de todas. Com (extraordinária) capacidade de ‘recuperação’ (de areia). E era (ainda) acessível. Porque não a do Monte Verde (Areia)? Partilhava de características idênticas às de Santa Bárbara. Provavelmente, porque a do Monte Verde (Areia) ficava no coração da Cidade da Ribeira Grande enquanto Santa Bárbara ficava ali (num lugar) longe da vista (logo, longe do coração). A escolha terá sido (ainda) uma (verdadeira) bênção dos céus porque as terras à sua volta (o Sarraçaco) pouco ou nada valiam. Muito por culpa da areia (soprada) e ao ‘salgado’ do mar. Livrando-lhes daquela ‘peste,’ a extracção poderia (acreditava-se nisso) valorizá-las. Além de tudo isso, o mar (ali) era (mais) perigoso (dizia-se). Ora, se antes Santa Bárbara fornecia (quase só) areia (para as ‘camas’ das calçadas), a partir de então passaria a fornecer areia (sobretudo) para ‘fazer’ betão. A pressão da construção, iria exigir (logo e já) toneladas (industriais) de metros cúbicos de areia. Santa Bárbara forneceu a Ilha inteira (e dizem que não só) durante toda a década de oitenta e a maior parte da década seguinte. Em 1978, a extração (já) pertencia à Junta de Freguesia. Em 1985 passou para a alçada da Câmara da Ribeira Grande. Ora, enquanto não foi encontrada uma alternativa à areia de Santa Bárbara, Governo, Câmara, Junta de Freguesia e empresários da construção civil dependeram (unicamente) da areia de Santa Bárbara. Legalmente, a exploração terminou em Outubro de 1992. No entanto, teimou em prosseguir (ilegalmente) até (pelo menos) finais de 1997.

O que era aquilo ali (em baixo) em Santa Bárbara? No século passado, nos idos de cinquenta e inícios de sessenta, ainda não havia (ali) uma única casa na rua do Areal (das 15 que hoje ali se encontram). Maria da Glória Alves, 89 anos, diz: ‘Tinha 25 anos [1959-1960], quando casei é que então começaram a fazer ali casas.’ Em 1968, o investigador Eduíno Borges Garcia, quando andou a estudar as olarias do Bandejo (ali ao lado), não lhe fez (absolutamente) qualquer referência. Em 1980/81, ainda não se haviam construído (todas) as casas que hoje se vêm naquela rua. Maria Odília: ‘Moro aqui há 42/43 anos [1980/1]. Era quase tudo pedreira. Não havia estas casas todas. Depois começaram a fazer casas.’ Chegava-se lá (a Santa Bárbara) através de um estreita canada ladeada por muros de pedra solta. Ou por carreiros sobre a rocha. Tal como sucedeu ao centro da Ribeira Grande, ali também se verificou um corte (no caso da Ribeira Seca) entre os da igreja para cima e os da igreja para baixo: ‘Os patrões não gostavam de contratar gente ali de baixo. Diziam que eram muito porcos.’ Porcos? ‘Porcos no serviço que faziam [pouco apurado].’ E o ‘preconceito’ (ainda) piorou (na década de noventa) porque (alguns dali) seriam (tidos como) a parte visível do ‘polvo’ do ‘garimpo.’ Só com a abertura da praia, foi-se, aos poucos, ‘esbatendo’ a barreira social. Além de um ou outro dali que se atrevia a ir ao mar, algumas (raras) pessoas ‘lá de cima’ iam ‘lá abaixo’ ao mar de Santa Bárbara. Para lá, ia, nos anos quarenta, manhã cedo, um grupinho de senhoras a ‘lavar-se no mar.’ Mais molhar os pés e pouco mais. Por alturas da (dita) Grande Guerra foram (lá) construídas (engenhosas) casamatas (e uma posição de metralhadora no cimo do morro). É provável que (então) os militares de ‘Lisboa’ dali à volta e de Santana fossem (também) ao mar. Ou algum inglês ou americano (ligados à aviação)? E (eventualmente) alguém surfou? Quem sabe. Em pequenina, Maria da Glória Alves recorda-se (bem) de lá ir. Um testemunho ainda dos anos cinquenta ou já nos de sessenta, recordaria (décadas depois) as tardes lá passadas: ‘Nesse tempo, a areia estava ao mesmo nível dos campos de milho e fazia autênticas rampas, que desciam para o mar. Esses eram dias de festa. Toda a família saía cedo de casa e levava a sua merenda, os rapazes levavam os seus cachorros, porque afinal também faziam parte da família, enquanto as meninas levavam as suas bonecas de trapo. Só se iam embora ao final do dia, depois do pôr-do-sol. Porque este momento do dia, na altura do Verão, é de uma natureza indiscritível naquele areal.’ A miudagem (antes de os surfistas ‘cavalgarem’ as ondas) ‘deslizava’ (acima e abaixo) as enormes dunas de areia. Tal como nos Moinhos e na Areia (Monte Verde) e por toda a ilha, temia-se aquele mar: ‘aquilo era a morte.’ ‘Os rapazes’ (vi isso vezes e vezes, conta-me uma outra testemunha) eram corridos (dali até casa) à ‘frente da vassoura das mães.’ Muitos dos que acabavam de ‘jogar à bola no Sarragaço’ iam (também) dar (ali) um mergulho. Era (também) para ali que cabreiros e lavradores (tal como em outras praias) levavam os seus animais para se livrarem de ‘pragas.’ Dali saía alguma (muito pouca) areia. E (muita, muita) pedra.

E que actividades havia por ali? Diz-me um industrial (reformado): ‘Tínhamos as nossas pedreiras para lá [actual Largo do Cabouqueiro. Antes Cova da Burra]. Até Abril de 1974, a MICOL, que se mudou para a Estrada da Ribeira Grande, o José Dâmaso, que se mudou para a Chã das Gatas, e nós [Agostinho Ferreira de Medeiros ‘Requeima,’ (n. 28.01.1921 – f. 16.08.1977)]. Na década de oitenta fomos para a Boavista. Ainda ficou o Francisco ‘Tabuga.’ [Francisco Botelho Júnior (n. 1929 – f. 1993]. Que também fazia blocos de pedra e de cimento. Feitos à mão.’ Maria Odília Medeiros, uma moradora, visualiza-me aquilo ali: ‘Ali [Quase a tocar no parque de estacionamento, à esquerda onde nos encontrávamos] havia o forno da telha do Francisco Giesta, hoje é do [Luís Carlos Ferreira] Moço, mas já não faz telha. Havia ali um fundão com areia. Hoje está cheio. Ali [Um pouco à direita de onde nos encontrávamos] era a britadeira do Francisco Tabuga.’ No espaço, hoje ocupado – em grande parte -, pelo parque de estacionamento, os cabouqueiros esburacavam (na pedreira) à procura da pedra certa para calçada e calçadinha (joga). Que vendiam às empresas. Quando começaram a tirar areia dali do areal (para a construção)? ‘Meu pai foi dos primeiros. Um familiar nosso que trabalhava na Base das Lajes arranjou-nos umas tiras metálicas que se metiam na areia para o camião poder passar. Depois é que vieram os outros.’ E quando terão deixado de tirar dali areia? Legalmente acabou em Outubro de 1992. Isso (só) foi possível porque, em 1990, perante a (quase) exaustão do areal - para o final, as caterpillars já operavam com as rodas metidas dentro de água ou tinham que ir junto à barreira tirar areia lá ao fundo -, e perante a ‘feroz’ concorrência entre empresários, o preço da areia (simplesmente) ‘disparou.’ Então, para se safarem, alguns empreiteiros investiram em novas soluções: ‘No dia 21 de Fevereiro de 1990 inauguramos isso aqui em cima na Bandeirinha.’ Ou seja a areia extraída do tufo. ‘Dois ou três anos depois do Sr. Luís Franco [começou em 1992] estávamos a dragar areia do mar. O José do Couto talvez tenha começado o mesmo em 1995/96.’ Mesmo com essa ‘nova’ areia, não iria ser (nada) fácil acabar com o (lucrativo) ‘negócio’ da areia de Santa Bárbara. Ainda em Novembro de 1997, o Açoriano Oriental titulava um artigo: ‘Polícia desmantela o polvo da areia.’ A fome de areia era tanta (e tal) que houve quem arriscasse a tirar areia do Areal (Areia). Atenta, a oposição na Câmara, faz soar (com sucesso) o alarme.

Entretanto, a Ribeira Seca (e a maioria das restantes freguesia da cidade da Ribeira Grande), haviam (já) despertado para o interesse (balnear) daquela praia. Os mais velhos lembravam os mais novos de que iam (em tempos da sua juventude) ali à praia. Os manifestos eleitorais de (quase todas) as forças políticas concorrentes à Junta (já) prometiam acabar com a (extracção da) areia e fazer dali uma praia. Tanto mais que, enquanto Santa Bárbara lutava pela sua sobrevivência, a praia dos Moinhos ganhava em importância. Em 1992, realizar-se-ia (ali) de novo o ‘habitual Festival de Rock na Praia dos Moinhos, tão ao agrado da nossa população.’ Toda a gente via (e cobiçava) o sucesso da Praia dos Moinhos (muito mais pequena): ‘por que razão a gente tem de ir aos Moinhos ou às Milícias com uma praia melhor aqui?’ Enquanto a situação não se resolvia, a Ribeira Seca agia. Sobretudo o seu Presidente (e equipa). Mal parou a extração de areia pela Câmara em Outubro de 1992, gente lá de ‘cima’ da Freguesia começou (quase militantemente) a frequentá-la. Além de ir apanhar banhos de sol, viam (pelos surfistas, que nunca a abandonaram) que se podia (sem medo) ir ao mar. Foram eles (estou em crer) que arrastando amigos e conhecidos, forçaram o poder (municipal e regional) a fazer algo por Santa Bárbara. Enquanto isso, a praia ganha um aliado inesperado (e insuspeito). Que desequilibra a relação de forças a favor de Santa Bárbara. Como sofressem a concorrência desleal dos ilegais, os areeiros legais aderem (indirectamente) à causa. A partir de então, por convicção ou pressão, eleitos locais de todos os quadrantes políticos tomam medidas. Tenta-se dar uma nova cara à área. Em 1994, já com novo Presidente na Junta da Ribeira Seca, a Câmara tinha (no PDM) propostas que iriam tornar aquele espaço (num futuro muito próximo) ‘numa área de lazer.’ O mesmo Presidente (e equipa) toma a iniciativa de propor ‘melhoramentos na área envolvente ao areal de Santa Bárbara.’ E partilha o projecto com a Câmara. Denuncia-se (abertamente) os atentados ambientais (ali ocorridos). Surgem (com insistência) artigos nos jornais e há reportagens na televisão. E a praia? Em Agosto de 1996, um abaixo-assinado propunha (à Câmara) a abertura não só da praia de Santa Bárbara mas da do Monte Verde (a Areia). Para aquela época balnear. No entanto, nada se faria. Antes de abrir a praia, era necessário correr (uma vez por todas) com os ‘garimpeiros da areia’ (e com quem lucrava com eles). Em 1997, a escassos meses das eleições, a Câmara Municipal da Ribeira Grande, naturalmente desejando colher frutos, finalmente, chegaria a acordo com as ‘entidades envolvidas no processo de proibição de extracção e venda de areia.’ As acções (agora) são ‘a doer’ e começaram logo em Julho. Reeleita e livre (ou a caminho disso) da exploração ilegal, a Câmara avança para a praia. Mas ainda havia um outro obstáculo a transpor (e igualmente difícil): convencer o capitão do porto de que Santa Bárbara poderia ser uma praia como outra qualquer. Em Março de 1998, por ‘ser procurada cada vez mais por parte dos banhistas,’ urgia dar-lhe (algumas) condições. As coisas pareciam estar bem encaminhadas, já ninguém (ao que parece) tirava dali areia, até que (naquela praia ainda não vigiada mas já muito frequentada) acontece algo inevitável: um acidente mortal. Tinha 16 anos, chamava-se Rui Filipe Ferraz Lima. Morreu afogado no dia 7 de Junho de 1998. Não sabia nadar. Apesar de viver na Vila Nova a dois passos do Areal (Monte Verde), preferia ir a Santa Bárbara. Diz o pai que o filho ia lá para encontrar uma ‘rapariga’ de quem gostava. Era para estar a tomar conta de vacas, mas trocou com um amigo. Foi no Domingo da Trindade. Ainda o viram a esbracejar a tentar pedir socorro. O seu corpo ficou três dias no mar. Às 6 horas da tarde de quarta-feira, dia 10 de Junho, dia de Portugal, alguém encontrou-o morto na areia. Foi sepultado no dia seguinte. A tragédia veio nos jornais, na televisão e na rádio. As autoridades responsáveis recuaram.

Como me explicou o então vice-Presidente Filomeno Gouveia: ‘Foi antes necessário vencer a oposição de alguns capitães do porto de Ponta Delgada. Até que chegou um de ideias abertas e aberto à abertura daquela praia. Foram alguns mergulhadores da marinha pesquisar o melhor local para banhos. Descobriram que seria no local onde ainda hoje esta [presentemente há um outro ao fundo].’ Já prestes a chegar ao Verão de 1999, um vereador da oposição pressiona a Câmara. Esta responde-lhe que iria dotar (a praia) com as ‘infraestruturas,’ tais como ‘o nivelamento do espaço da entrada do recinto para servir de parque de estacionamento, construção de duches e a aquisição do barco que se prevê para breve.’ Apesar da manifesta boa intenção, não abriria em 1999, nem tão-pouco em 2000, só o faria em 2001. O seu primeiro nadador-salvador foi o surfista João Brilhante. Nada mais justo. Veterano do tempo dos aventureiros (como eles se apelidam), João Brilhante (aliás João Oliveira), diz-me: ‘mais amigos comecei a ir para Santa Bárbara antes das máquinas lá irem.’ Em S. Miguel, diz (por seu turno outro veterano) Pedro Arruda, quanto à ida aos ‘areais do Monte Verde e de Santa Bárbara era como se fôssemos à socapa. Enfrentávamos a oposição das nossas mães. Aqueles areais são perigosos. Repetiam-nos.’

Três meses após a sua abertura, Luís Noronha previa-lhe um futuro brilhante: ‘Este Areal foi desaproveitado durante muitos anos mas ainda se vai tornar num dos motivos de atracção da Ribeira Grande.’ E mais: ‘O Areal de Santa Bárbara, muitos me diziam há anos que era uma causa perdida, ou porque os interesses da extracção da areia seriam incontornáveis, ou porque seria uma praia condenada, porque o mar é mais perigoso do que em qualquer outro lado. Afinal, na mais segura piscina pode acontecer um caso alarmante, como relataram os diários do dia 19 de Julho [de 2001], desde que não se cumpram as recomendações divulgadas. Ora, uma praia que tem vigilância com o sinal de bandeiras, com nadadores salvadores, com mota de água dos bombeiros, com pranchas de surf (e respectivos surfistas) e outros meios de socorro, que seja bastante frequentada, onde muitos olhos podem detectar qualquer situação de pânico é muito mais SEGURA, do que o mesmo espaço, sem nada do que se apontou e apenas com uma indicação – praia não vigiada. Para além da segurança, tem espaços limitados para o banho, para jogos, para prática de body board e surf, de modo a ninguém se sentir incomodado. Há espaço para tudo isso, porque é uma extensão de mil metros de areia, comparados com os escassos quatrocentos da Praia das Milícias.’ Acertou em cheio. Passados 22 anos, houve mais duas mortes. Dois turistas que nadavam em zona não vigiada. Já fora da época balnear. E transformou-se de (quase) mártir a Super-Star!

Lugar das Areias (Vila de Rabo de Peixe – Ribeira Grande) (continua)

(Correio dos Açores, 22 de Outubro de 2023, p. 20)

PS: Afinal foi em 2002, pelo que eliminei: ‘Nesse mesmo ano [2001], dotou a praia dos Moinhos com um (excelente) parque de estacionamento e ‘cimentou’ o segundo troço da Ladeira da Velha.’

Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 14/01/2024
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