EXISTENCIALISMO E PSICANÁLISE (LUCY IN THE SKY WITH DIAMOND) (II)

EXISTENCIALISMO E PSICANÁLISE

(LUCY IN THE SKY WITH DIAMOND) (II)

EM BUSCA de uma trilha que me levasse à uma certa autonomia, à construção de minha dependência em relação a mim mesmo. Quem sou, para onde vou, são perguntas comuns a todo ser humano. Independente de classe social ou estrato cultural. Na tentativa de simplificar minha compreensão de mim, me defini como sendo minha própria Terra. Disciplinado pela influência exercida pela matriarca que me pariu, e pelo marido que a assumiu.

A MULHER a quem eu deveria chamar de mãe, me soterrou por sob estratos, ou camadas, como se eu fosse um fóssil por baixo de várias unidades de rochas que representam, metaforicamente, as idades dela, no decorrer de suas várias e sucessivas formações ego lógicas. A geologia do ego dela se foi formando nos estratos de suas muitas gestações, as que se confirmaram com os partos dos filhos, também as que foram derivadas de abortos.

COMPARO A formação fetal e o seu desenvolvimento até o parto, com o ambiente de formação da Terra. As camadas ego (geo)lógicas que se distinguem umas das outras pelas características físicas de conteúdo fóssil fetal. A evolução e suas intercorrências. Capítulos de desenvolvimento que contam tanto a história da Terra quanto a história do feto. O mistério do surgimento da vida, seu desenvolvimento. A mulher em questão vivia esse mistério cada vez que engravidava.

EM CADA gravidez ela crescia em importância. Sentia-se doadora de vida. Partícipe da formação da terraplena do planeta. Sentia que era ela a povoar o território familiar. Considerava-se o próprio mistério da criação em curso. Dessa forma ela afirmava sua utilidade enquanto mulher, enquanto deusa doadora de vida. Vida familiar, social planetária. Ninguém poderia questioná-la. Julgava-se a dona da cocada preta de todas as razões e motivações. Simplesmente uma divindade.

QUEM PODERIA, com razão, questionar uma deidade onipotente, onisciente, onipresente??? Uma mulher-deusa a povoar o mundo familiar de incertezas e adversidades??? Essa, a loucura da mulher que eu tinha de chamar de mãe. Eu ousava questionar sua onipotência. Ao tentar mostrar que a filiação precisava de recursos para alimentação, vestimenta e educação, ela se exaltava com minha argumentação e ameaçava esbofetear-me, quando não o fazia, literalmente. Seu rosto e corpo transmutavam-se em ameaças e fúria.

ELA VIA que estava a me roubar oportunidades futuras, mas era esse seu objetivo: criar uma oferenda sacrificial à deusa oculta em suas entranhas de trevas, em seu coração de profundo negrume ancestral. Sem uma justificativa e subterfúgio, como poderia ela legitimar a abissal ambição de se tornar a empoderada rainha do lar??? Ela se tornava cada dia mais forte, mais assertiva, assustadora e unânime. O marido em nada a questionava. Havia se tornado um pequeno borra-botas. Ela se julgava uma gigante, em meio aqueles acanhados avestruzes aos quais dava saída pelo portal dos frequentes nascimentos, após nove meses de gestação. Por vezes antes, em casos de aborto.

EU ERA o único que lhe contestava. E pagava um alto preço em espancamentos por isso. O marido, um cafajeste inútil, imprestável, exceto para fazer valer seu totalitarismo de matriarca vingativa. Sua ira incontrolável se manifestava contra o mundo familiar dela, que a havia feito passar fome, que não permitira que ela fosse a bailarina lépida, despachada, nos palcos dos balés que ela sonhara ser. Ela se vingava dos bullyings sofridos em família e na escola. Dizia ter cursado até o segundo ginasial.

O MARIDO era o provedor do lugar do lar que servia para ela parir, comer, dormir, defecar, reinar e vomitar filhos da barriga, após as contrações uterinas que os faziam sair pela vagina. Filhos para Jesus criar. Quanto mais provações e necessidades, mais ela se achava necessária no papel de mãe no espaço do larbirinto. Nele, a realidade criada roubava meu tempo de criança em meus estudos e do jovem que não teria como fazer um cursinho pré-vestibular, ou ter qualidade de vida para estudar.

ELA, ESSA mulher saída do inferno de contexto familiar onde deve ter sofrido abuso sexual dos irmãos, de vizinhos, de parentes próximos com acesso à sua intimidade de criança carente de recursos, desprovida de afeto e proteção pelos seus. Ela se vingava parindo filhos para depreciá-los frente à falta de recursos do marido. Ela, uma deusa toda poderosa, empoderada pelos períodos de gestação nos quais estava a entrar em contato com as forças de criação da natureza por ela representada. Ela, que se rebelava da condição de sodomizada por aquele fiozinho de pintainho do marido.

BENZA DEUS!!! E eu no vórtice desse redemoinho familiar, sem que ninguém pudesse fazer nada para me ajudar a sair do caldeirão fervente de traumas, complexos e recalques dessa bruxaria de necessidades rituais, do que se costuma chamar de família nordestina, marca registrada das vidas secas brasileiras. Mas, tal qual afirma o ditado popular: “Deus escreve certo por linhas tortas”.

EU TINHA o capital da Fé. E PENSAVA: “Se existe mesmo um Deus, ele não vai para sempre me desamparar. Um dito ressoava em minha cabeça infanto-juvenil: “faz por ti e te ajudarei”. Eu, ingênuo, acreditava em muitas coisas milagrosas. Em coisas que só mesmo eu imaginava poder superar e, futuramente, controlar. Eu sobrevivi. Inacreditável, mas eu sobrevivi a essa realidade desumana sem me prostituir nem permitir me cooptar pela cultura sodomita vigente nesse país de indigentes. No momento, com um líder fascista totalitário prestes a Jair pra cadeia.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 10/05/2024
Reeditado em 16/05/2024
Código do texto: T8060193
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