As Cerejas
As Cerejas
Tinha talvez os meus 14 ou 15 anos quando me passou pela cabeça e de acordo com um grupo de colegas, irmos roubar cerejas.
Estava na altura a estudar no ESA, (Externato de Sto. Antonio), no Fundão.
Como alguns devem saber, e outros tambem certamente que não, o Fundão fica situado nas faldas da Serra da Guardunha, bem frente à Serra da Estrela, no outro lado dum dos mais férteis vales do nosso pequeno mas nobre País, o Vale do Zêzere.
É nas encostas da Serra da Guardunha que se encontram plantados não só os maiores, como os de melhor qualidade pomares de cerejeiras de Portugal.
Na altura eram apenas conhecidas e apreciadas no nosso País, mas hoje o seu reconhecimento ultrapassa as fronteiras e são reconhecidas a nível Mundial.
Se a fruta que normalmente comemos em casa nos delicia, acreditem que quando colhida e comida directamente da árvore, tem um gosto especial.
Em fins de Abril, começam a aparecer as primeiras cerejas, as denominadas cerodias, mas é em Maio que elas atingem o apogeu do seu gosto.
Em Maio aqui em Portugal, as manhãs já são grandes, o que quer dizer que o Sol nasce bem cedo.
Tambem o mês de Maio, era um mês bastante especial para os estudantes na altura, pois normalmente era no mês de Junho que começavam os primeiros exames.
Tinhamos um costume, juntar-nos em grupo e irmos estudar bem cedo para a estrada.
Hoje pode parecer, e é, uma estupidez, mas na altura, os veículos que nelas circulavam eram tão raros que podiam passar talvez quando muito uns 5 ou 6 por hora, e menos ainda, às 6 ou 7 da manhã como era o caso.
Ainda o Sol não havia nascido e já nós rumavamos a caminho do então Seminário Menor do Fundão, portanto a caminho da Serra em direcção a Alpedrinha.
Mesmo em frente ao Seminario, fica Alcongosta, e é a partir daí que as cerejeiras surgem em grande quantidade.
Foi então um dia após o estudo da noite que me surgiu a ideia; porque não na manhã seguinte levantarmo-nos ainda um pouco mais cedo que de costume e sairmos ainda de noite para irmos às cerejas ?
Tive o acordo de mais três colégas e assim fizemos...
Ainda era noite fechada quando chegamos junto ao Seminário, e entrámos pelo campo fora a caminho do cerejal.
Saltamos o muro que circundava a estrada e aí vamos nós em direcção às cerejeiras.
Cada um subiu a uma pois eram várias as que havia no local.
Estavamos a tomar o nosso especialíssimo pequeno almoço, quando apanhamos um valente susto.
---Vamos a eles, hoje é que não escapam – ouvimos dizer do fundo do pomar.
Saltamos para o chão e ó pernas para que vos quero, toca a fugir, pois alem de gente a correr e a gritar, tambem ouviamos o ladrar dum cão.
Mas corremos para o lugar errado, em vez de irmos para o lado da estrada por onde vieramos, corremos no sentido da que dá acesso a Alcongosta, e ficamos “tramados”, pois tinhamos na nossa frente um muro bem mais alto, e quando chegamos ao cimo do mesmo, no lusco-fusco, que já nos deixava ver um pouco melhor, constatámos que do outro lado a altura era considerável.
Atraz de nós estava o cão, um pouco mais longe as vozes de quem nos perceguiam.
Entraramos num beco sem saida... estavamos apanhados !!!
Olhando para o cão, fiz uma descoberta assombrosa, eu conhecia o animal, pois brincava com ele quasi todos os dias...
Era um corpulento Serra da Estrela, e pertencia a uma das minhas maiores amigas no Colégio, a quem acompanhava amiude.
Seria mesmo ele ?
Tambem ele me reconhecera pois havia deixado de ladrar.
Eu a medo e surpreendido disse :
---Calma Leão, sou eu amigo...
Mas, como o seguro morreu de velho, pensei em não descer, tanto mais que se aproximavam os perseguidores de duas pernas.
O Leão dava ao rabo satisfeito por me ver, mas e os outros que não tinham o rabo a abanar viriam com disposição para nos receberem da mesma maneira ?
Quando chegaram por baixo do muro, o primeiro a surgir foi um homem bastante corpulento e com um grande pau na mão... bolas,
Estava o caldo entornado...
Logo de seguida um rapazito dos seus 9 ou 10 anos, e a minha amiga e coléga Sara... mais atraz vinha tambem uma mulher, que adivinhava viria com cara de má.
A Sara quando me viu desatou às gargalhadas, o que foi bom pois desanuviou um pouco o ambiente.
O Pai olhou para ela com cara de poucos amigos e ela às gargalhadas disse que nós eramos colegas dela e ela nos tinha dito que quando por ali passassemos podiamos comer cerejas à vontade, o que era aliás mentira, mas nunca julgara que nós o fizessemos tão cedo.
Lá descemos nós embora ainda a medo, e foi então que soubemos que durante a noite, por ser habital ficava alguem de atalaia, pois havia quem fosse assaltar as cerejeiras.
Não era o nosso caso pois colher para comer, não era “pecado”, e podiamos fazê-lo sempre que quizessemos, ficando para o efeito autorizados.
Claro que tinhamos de mostrar o nosso agradecimento, e como tal combinamos ajudar a caçar os larápios.
Até me fazia jeito, pois sabia que a Sara tinha um fraquinho por mim e assim estaria com ela mais amiude nesse fim de semana.
Eu tinha namorada, a Graça, mas ela estava na Covilhã... e como era só nesse fim de semana !
Assim e com autorização de meus Pais, fiquei no Fundão não indo a casa à Covilhã como era habitual todas as Sextas-Feira à tarde. e fiz parte do grupo de guarda ao pomar.
Junto comigo ficou tambem um outro coléga de que não me recordo já o nome, pois perdeu-se no tempo, mas que sabia ser de Alijó.
Bem queria eu ter ficado com a Sara por companhia no meu turno, mas o Pai achou por bem ser ele a fazer-me companhia... ratice de Pai.
Quem ganhou com a troca foi o meu coléga que ficou em casa com ela e se descaiu dizendo que eu namorava, o que talvez até tenha feito prepositadamente, embora me tenha dito ter sido um descuido.
Tambem não me aborreci muito pois embora fosse muito amigo dela, ninguem me faria esquecer a Graça, por muito "gira" que fosse.
Ela tambem não devia ter uma grande paixão, pois aproveitou a troca com bastante à vontade.
Nesse fim de semana, não tivemos sorte na nossa caçada, pois ninguem apareceu por lá a tentar roubar as cerejas, mas foi uma maravilha pois passamos um bem diferente do habitual, dormimos no celeiro e comemos como lordes a comida maravilhosa que só quem um dia teve o previlégio de a provar, nunca mais a vai esquecer... a boa comida caseira beirã com os seus famosos enchidos e legumes inegualáveis, e claro, enchemos a barriga de cerejas, grandes rijas e bem vermelhas.
No Domingo á noite tivemos que voltar ao Colégio, mas não fomos sózinhos, os Pais da Sara levaram-nos de carroça, atrelada ao macho, e como recompensa da nossa “ajuda”, dois cestos de cerejas e mais legumes que fizeram de nós heróis não só na cozinha, mas tambem da D. Mariazinha, a esposa do nosso Director, Dr. Filipe Meneses.
A partir daí, nunca mais tivemos receio de ir comer umas cerejas, desde que nos apetecesse e apenas por precaução, pediamos autorização aos donos dos pomares, nunca nos tendo sido negado faze-lo.
Os ladrões, soubemos mais tarde, foram apanhados alguns dias depois num outro pomar nas imediações, e depois de levarem uma valente coça, entregues à Policia no Fundão para onde foram levados amarrados com cordas.
Anos mais tarde, junto ao monumento a Nossa Senhora, na estrada do Fundão para o Souto da Casa, e as Minas da Panasqueira, vi uma cerejeira carregada, carregada de cerejas.
Parei o carro para as mostrar a meus filhos ainda pequenos então.
Diriji-me á casa que ali havia junto e pedi, mesmo que para isso tivesse que pagar alguma coisa, que os deixassem colher algumas.
O casal de velhotes que me receberam, ao saber que eu ali vivera uns anos atraz, fizeram aquilo que é apanagio das gentes da nossa terra, não nos deixaram ir embora sem que com eles jantassemos, sem que com eles partilhassemos o que de melhor podiam dar, mas acima de tudo o que mais nos soube bem, foi o sermos acolhidos daquela maneira sã e pura como só as gentes do meu País, por vezes tão maltratado, sabem receber, e nos fazem sentir em casa mesmo estando longe dela.
No Portugal profundo, a nossa casa, é a casa do nosso amigo mesmo que esse amigo, seja o caminhante que por ali passou nesse dia.
É por atitudes como estas, que sinto um grande orgulho, de ser Português.
Antonio Freire
02 / 2005