O sentido do ser humano

O ser humano é breve como um espirro, e julga que sua vida na Terra deva ter algum sentido, algum propósito especial. Mas basta observar que o universo, em toda a sua incalculável dimensão, nas formações das estrelas, na sustentação das galáxias, na propagação da luz e nas forças que regem a gravidade, a estabilidade das reações atômicas e subatômicas e suas transformações, do que menos necessita esse universo é do ser humano. Frente ao universo inteiro o ser humano não é nada: de nada lhe é útil, de nada lhe atrapalha o curso. Pense no universo sem o ser humano – o universo permaneceria o mesmo, sem alterações: estrelas nasceriam, sustentariam planetas à sua volta, e morreriam, e outras estrelas surgiriam; os elementos se uniriam, fariam suas reações químicas, e se separariam, seguindo um curso de transformação como tem sido e continuará a ser. Não é possível para o ser humano encontrar, em um universo que existe há tempo infinitamente superior ao próprio ser humano, um sentido para as coisas exteriores a si tampouco para si mesmo.

É inútil que o ser humano busque alguma espécie de justiça, de bondade, de virtude, ou de qualquer moralidade que seja, para si ou para o que estiver à sua volta: seu espaço de tempo como vivente, como participante consciente deste universo, é muito curto para que possa alcançar a compreensão de algum sentido para o universo ou para si mesmo. Com isso, o sentido de todas as coisas não pode jamais partir do próprio ser humano – jamais pode ser algo humano –, mas sim de todo o universo, de tudo o que une o universo. Para o homem isso é inalcançável. Ao ser humano não cabe o universo, deve desistir do universo. Ao ser humano cabe apenas seu breve papel de participante do universo.

De onde vem, contudo, essa vaidade humana?

Da consciência humana. Tudo o que é vivo tem consciência, mas a consciência humana faz com que o ser humano se sinta acima de toda a criatura viva à sua volta: sua filosofia, sua ciência, sua tecnologia o envaidecem e o fazem sentir acima da natureza. Pobre vaidade humana. Não é o ser humano que sustenta as leis do universo. O ser humano não criou os átomos, não criou a gravidade, não criou as ondas de energia, nem a duração das reações químicas dos elementos que sustenta toda a duração do que existe, não controla as rotações dos planetas nem das galáxias. O ser humano não pode nem sustentar a si mesmo.

Mas, então, de onde vem, portanto, a consciência?

A consciência, na verdade, não passa do resultado orgânico complexo das interpretações possibilitadas pelo cérebro frente ao que o organismo sente frente ao mundo à sua volta e frente a si próprio, durante sua existência. Ao que o ser humano vê, escuta, cheira, toca, saboreia, sente enfim, responde conforme sua organização natural. As células organizadas para perceber as dimensões do que existe transmitem às células interpretativas do cérebro o que foi possível perceber; as células do cérebro, por sua vez, sintetizam a informação e a retransmite a todo o organismo. Portanto, o organismo como um todo, desde as sensações até a consciência, que é a interpretação e a retransmissão das sensações, tudo isso nada mais é do que a permanência das relações estáveis entre as células de todo o organismo. As células, em seu lugar, são compostas de moléculas que se interagem, necessitando de várias reações para poderem se manter estáveis, necessitando de outras moléculas, como as proteínas, por exemplo. Portanto as células não passam de relações estáveis entre as moléculas que permitem sua interação. E as moléculas não passam de relações estáveis entre os átomos que permitem sua interação. E os átomos não passam de relações estáveis de outras partículas ainda menores que permitem sua interação. Essas partículas também só são possíveis graças a outras relações estáveis. E assim é com todo o universo.

A vida, portanto, e a vida humana, no caso, não passam de um conceito: vida é o arranjo estável de moléculas que se organizaram em células, e não-vida é o arranjo estável de moléculas que não se organizaram em células. E o que é a morte, em um organismo? Apenas mais um conceito. A morte do organismo é a desestabilização das relações químicas das células do organismo, impossibilitando a continuação de suas relações: cessam-se as estabilidades das relações, cessa o organismo; cessa o organismo, cessa a vida; cessa a vida, cessa a consciência.

O que se pode concluir também é que quão mais complexo é um organismo mais frágil é a manutenção estável das relações: o ser humano não deixa de viver porque seus prótons se desestabilizaram, mas sim porque as relações entre suas células se desestabilizaram – é mais fácil uma célula se desestabilizar do que uma molécula, e é mais fácil uma molécula se desestabilizar do que um átomo, e este frente suas partículas, e estas frente ao que as permite existir. Deste modo, o que persiste no universo, ou seja, o que é mais estável é o que há de mais simples, mais bruto, mais primitivo, mais original, mais elementar, e é exatamente este fator elementar que existe em última análise em todas as coisas que existem no universo: é o que se pode dizer que está em tudo e que sempre permanece, sustentando tudo – eis o que permite a existência de todas as coisas e a percepção da existência do que existe.

Retornando ao ser humano. Seus pensamentos, suas emoções, suas crenças, sua moralidade, tudo não passa de relações químicas a níveis infinitesimais – daí parecer invisível, inexplicável, particular a cada ser que sente. O amor é subatômico, poderia se afirmar, em última análise. Toda consciência é subatômica, tudo é químico, poderia se afirmar em última análise.

Mas o que permite esta atração química dos elementos e de suas partículas? Estaria o elemento fundamental de todas as partículas constantemente atraindo tudo de volta a si, em um ciclo harmonioso e ininterrupto?

Neste ciclo misterioso o homem foi possível existir. Mas o homem é inquieto, vaidoso, pretensioso. As galáxias e a matéria que interage entre elas, apesar de toda sua grandeza, não são arrogantes, só participam da lei do universo. A lei do universo é imparcial, impessoal, sem sentimento algum, porque o universo não é humano, é desumano. Por isso a vida dos seres humanos na terra parece injusta, imoral, descompensada, desesperançosa. Mas isso é vaidade humana: não há justiça, não há moralidade, não há compensação, não há esperança alguma porque a natureza não é humana, o universo não é humano, não é regido por leis humanas de justiça ou de bondade. O universo é o que é, o universo reina.

Por que o ser humano ousaria ser especial sendo tão insignificante? Já que ter uma consciência aparentemente única no universo é a única coisa que torna o ser humano único no universo, a maior consciência que o ser humano deveria ter é simplesmente a gratidão. O que há no universo apenas participa do universo: o mesmo deveria fazer o ser humano, apenas participar, é este o convite do universo ao ser humano. Não adianta ao ser humano suas vãs preocupações. Então, eis que, se há um propósito para o ser humano este propósito só pode ser o propósito do universo que cabe ao ser humano, que é viver e morrer, sem preocupação e com gratidão.

Vitor Pereira Jr
Enviado por Vitor Pereira Jr em 09/03/2008
Reeditado em 12/10/2017
Código do texto: T894191
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