O Homem contra o Leviatã : Uma crítica ao Estado

Introdução

Em certas épocas da história da humanidade, as religiões detinham o poder mais forte que se é possível adquirir neste mundo: o conhecimento. Em boa parte da civilização ocidental, tal monópolio do conhecimento não mais ocorre, ao menos não centrado nos poderes clericais; a informação agora tende a circular livremente, e ninguém mais pode freá-la ou detê-la, embora hajam tentativas substanciais neste sentido. Apesar da livre circulação de conhecimento em nossa sociedade, não temos bebido das águas mais profundas desta fonte, o que traz distorção e estagnação de certa parcela da sabedoria humana. É preciso questionar e investigar a fundo os fundamentos de algumas doutrinas que têm, atualmente, tomado um certo aspecto ‘dogmático’, assim como foi o Geocentrismo durante séculos. No questionamento de tais doutrinas científicas, objetivamos sempre chegar a conclusão de que são realmente verdadeiras ou falsas, postulados ou dogmas; estas conclusões se alcançam por meio do método crítico de investigação.

Uma doutrina que vem tomando o aspecto ‘dogmático’ entre nossa civilização global é a de que toda sociedade humana necessita de um Estado para se governar e organizar, e de que esta é a melhor e mais organizada forma de estrutura de poder. A principal preocupação e meta deste texto é, exatamente, o Estado, seu papel e sua eficiência em cumprir este papel. Após feita a análise de tais problemas, chegar-se-á a duas possíveis conclusões: o Estado é necessário, e portanto bom, ou o inverso disto. No processo entre o questionamento e a conclusão, segue-se uma necessidade moral de demonstrar alternativas plausíveis de solução aos sistemas estatais ou sistemas alternativos a estes; sem tais demonstrações o texto perderia seu aspecto de conhecimento construtivo para tornar-se mero rolo compressor de teorias e práticas, o que seria um desperdício de papel, tinta e tempo. Portanto, traremos luz a seguir, aos principais conceitos e mostraremos suas aplicabilidades e necessidades para o ser humano, e sempre que os conceitos não trouxerem aplicabilidades de valor significativo, apresentaremos novos conceitos que as tenham; o principal conceito a ser analisado destarte é o de Estado.

Parte I – O Estado Ideal : Prática e teoria

No campo da filosofia política existem muitos autores clássicos e consagrados que definiram a idéia de Estado e como este deveria funcionar, entre estes podemos citar Weber, Platão, Maquiavel, Confúcio, Henry D. Thoreau, Thomas More, Marx, Thomas Hobbes e muitos outros; no entanto, cumprem os fins deste texto apenas os conceitos construídos por More, Platão e Hobbes, pois constituem as bases teóricas do Estado na civilização ocidental.

O Estado Ideal de Platão, um dos primeiros sistemas políticos apresentados em teoria à civilização ocidental, tem alguns princípios básicos de funcionamento, conforme o autor os expõe no decorrer do texto da “República”; tais princípios são:

• Platão encontra a sua justificativa para a instituição do Estado nos mesmos conceitos sociais que viriam formar o célebre pensamento de seu discípulo, Aristóteles: "O homem é um animal social"; o homem necessita do auxílio moral e físico de outros homens para subsistir, ou, ao menos assim subsiste melhor.

• Uma vez instituído o Estado, este deve necessáriamente ser dividido em classes, ou seja, deve haver desigualdade social para o funcionamento da máquina estatal.

• Cada classe deve cuidar de um setor da máquina, por exemplo, os filósofos a dirigem, os artesãos e camponeses cuidam da economia e da agricultura, os guerreiros da defesa, etc.

O primeiro princípio está totalmente correto: o homem necessita do homem para sua sobrevivência. No entanto, a organização dos homens não precisa ser dividida em classes que têm entre si hierarquia, e muito menos necessita da escravidão, a qual Platão mostra-se favorável; é óbvio que a classe dos escravos não gostaria de participar de um Estado no qual não seriam livres, e o Estado de Platão sem escravos não se sustenta, pois estes são sua base. O próprio Platão prova na dialética do Livro I da República que o Governador ou Chefe de Estado deve preocupar-se principalmente com o bem estar de seus súditos, ou seja, o maior súdito do Estado é o chefe, e este recebe um salário para cumprir suas funções, pois sem este salário não as cumpriria de bom grado. Como podem então os escravos trabalharem com eficiência e para o bem comum se seu próprio bem está comprometido? O Estado platônico é, portanto, insustentável em seus alicerces.

Outra concepção de Estado nos traz Thomas Hobbes em seu "Leviatã", de fato uma concepção mais elaborada e evoluída. Esta concepção está no capítulo XVII do livro, e se baseia numa interpretação diferente da frase aristotélica, a de que os homens sozinhos no mundo se destruíriam. O Estado é então, a instituição que restringe as paixões do homem, e os força por meio de castigos, ao cumprimento de pactos e respeito às “leis naturais” . Continua Hobbes, no mesmo capítulo, expondo duas situações: os homens antes e depois do Estado. Antes do Estado, escreve, as famílias saqueavam-se mútuamente, o que era visto como demonstração de força e honra. No entanto, após instituído seu Estado, os mesmos saques e demonstrações de força continuam, mas agora com exércitos exponencialmente maiores, ou seja; a formação do Estado não garante a segurança individual, não torna o homem melhor moralmente, e nem mesmo cumpre as chamadas leis naturais que Hobbes propôs (justiça, eqüidade, modéstia e piedade). O próprio texto do Leviatã explica a razão pela qual a existência ou inexistência de seu Estado não importa: “O homem só encontra felicidade na comparação com outros homens e só pode tirar prazer do que é iminente”. Como são os homens os componentes do Estado, este tende a se tornar cada vez mais distante das suas funções de proteção e garantia dos direitos humanos para retornar ao estado de “caos” que havia antes do seu nascimento. O homem individual deve, ainda, ceder seu direito para outro ou outros homens para que estes possam agir em seu nome; tal medida é perigosa pois ofende o verdadeiro Direito Natural, que será explicado posteriormente. Logo, o Estado de Hobbes foi feito para cumprir e fazer valer funções que jamais irá cumprir; é um simples aglomerado de homens em guerra contra si mesmos, exatamente como a situação que o autor propõe antes da fundação do Estado.

O Estado de Thomas More, na Utopia, baseia-se em pressupostos extremamente bem elaborados, como por exemplo, a abolição da propriedade privada (para que haja igualdade entre todos), um sistema de mérito e punição com uma ética bastante refinada (no qual a escravidão também está incluída), a abolição do acúmulo de bens para uso interno, a monarquia, e a defesa a partir de um exército mercenário. Outra suposição bastante interessante é a de que todos os cidadãos concordam a princípio, com as leis da Utopia, mas aqueles que não concordam têm o direito de se retirarem da ilha de forma pacífica.

A definição de um Estado ideal em More se fundamenta na Economia, ao contrário das definições anteriormente apresentadas, que têm bases em sistemas políticos e morais. Portanto, devemos analisar se o Estado de More seria sustentável em sua Economia, a partir da comparação com o mundo real.

O primeiro ponto do qual trata More é a abolição da propriedade privada, que é impraticável, pois, se todos os cidadãos se abstessem de suas propriedades, esta ainda se concentraria nas mãos do rei (a Utopia é um sistema monárquico), formando a estrutura absolutista de poder do Leviatã, préviamente discutida e refutada como de bom valor para a humanidade.

Outro ponto do qual trata a Utopia é a abolição de um sistema econômico interno fundamentado no dinheiro. Se os bens de produção pertencessem a todos, e também os fatores, não haveria desigualdade social, e um sistema econômico sem desigualdade social não se sustenta, pois esta sociedade viveria apenas consumindo os insumos básicos para a sobrevivência, sem fomentar a ganância que por sua vez leva ao desenvolvimento tecnológico, e por sua vez uma sociedade com baixo desenvolvimento tecnológico seria facilmente dominada ou destruida por invasores. “E quanto à defesa pelo exército mercenário?” Um exército mercenário, como uma organização militar, não se arriscaria a defender uma nação sem condições de render-lhes um alto pagamento, pois só teriam a perder: não seria um contrato seguro, pois o preço das commodities sem tecnologia agregada que a sociedade da Utopia exportasse teria um preço baixo e insuficiente para o pagamento das tropas mercenárias. Não seria também possível a aprimoração tecnológica para exportar mais bens, e assim poder pagar pela defesa, pois não há ganância nem desejos ilimitados que causam o funcionamento da economia nesta sociedade. O futuro da Utopia de More no mundo moderno seria ser anexada a uma nação mais poderosa e desenvolvida.

Finda a análise econômica do sistema da Utopia, resta ainda um ponto importante a tratar: A análise do Direito nesta sociedade. As leis na Utopia são baseadas, conforme conta o estrangeiro que foi à ilha, são baseadas na mais elevada ética. No entanto, deve-se analisar que a moral e a ética são subjetivas nas diferentes sociedades, e um cidadão pode ser punido por conceitos morais que não aceita; logo, leis não podem ser totalmente baseadas na moral e na ética, mas no Direito Natural, o que não ocorre na Utopia, fato que leva a conseqüência da dominação ideológica por um ‘grupo ou pessoa que representa os cidadãos’ determinando o que é bom ou mal. Ainda poderíamos provar os males que um regime escravista, mesmo que temporário, causa à economia de um Estado, através da comparação entre o Norte e o Sul dos EUA no século XVIII.

Os principais sistemas Estatais são, portanto, impraticáveis, e trazem a própria contradição dentro da sua teoria: não servem para o propósito ao qual foram criados, e isto é facilmente observado em muitos países subdesenvolvidos e desenvolvidos; a diferença entre estes é que, como diz o lema democrata norte-americano: “O melhor Estado é aquele que menos governa”. Nos países desenvolvidos, o laissez faire é mais forte. Qual seria então a solução para o falho sistema do Estado? Este será o tópico abordado a seguir.

Parte II – O sistema político ideal para a humanidade

Diferentemente dos autores e obras já apresentados acima, irei fundamentar o sistema político ideal no respeito ao Direito Natural, do qual o direito maior é o direito à vida, sem o qual não existe nenhum outro. Segundo a definição de Hobbes, o Direito Natural é “a liberdade que cada homem tem de usar livremente o próprio poder para a conservação da vida e, portanto, para fazer tudo aquilo que o juízo e a razão considerem como os meios idôneos para a consecução desse fim” . Segundo Aristóteles, o Direito Natural é definido da seguinte forma: " assim como fogo que queima em todas as partes, o homem é natural como a natureza e por isso todos tem direito à defesa". Os sistemas Estatais não respeitam a liberdade nem a vida, pois fazem uso de exércitos, constituições e contratos que não são aceitos por todos os cidadãos; muitos nem mesmo os conhecem. Outro desrespeito ao Direito Natural é o fato de que, uma pessoa nascendo em determinado Estado, mesmo sem em nada concordar com as instituições deste, é obrigada a seguí-las, mesmo que isso viole o princípio da defesa da própria vida. Um sistema político ideal seria, portanto, aquele que respeitasse ao máximo a individualidade de cada ser. Faço, neste momento, as palavras de Henry D. Thoreau em seu livro “Desobediência Civil” as minhas : “Desejo imediatamente é um governo melhor, e não o fim do governo. Quando cada homem expressar o tipo de governo capaz de conquistar seu respeito, estaremos nos aproximando de conseguir formar tal governo”.

Se alguns homens formassem uma sociedade, através de um contrato social, decidindo se juntarem e cumprirem funções para a sua sobrevivência, prosperidade e segurança, sem a necessidade de um poder (o problema mais difícil de se resolver, pois o homem tem uma tendência natural em se organizar em hierarquias, tal qual muitas espécies de animais), os próprios desejos e necessidades do homem se incubiriam de realizar o progresso para o bem de todos. Não haveria, como propõe Hobbes, a necessidade do extermínio de um grupo pelo outro, mas apenas uma competição que levaria ao desenvolvimento de todos. Este é um sistema sustentável, pois daria espaço à ganância, à segurança e à vida. E mesmo as pessoas que não quisessem seguir determinado tipo de sistema, poderiam abandoná-lo, assim como os habitantes insatisfeitos com a Utopia, e seriam respeitados como vizinhos.

Mas há ainda um problema grave, que é o da transição entre estes dois sistemas. Como ocorreria, já que o Estado jamais largaria mão de seu poder? É o que trataremos na próxima parte deste texto.

Parte III – Conclusão: A morte do Leviatã

Pode parecer complexo, mas a destruição do sistema estatal está simplesmente no fato de que ele não se sustenta sem sua própria propriedade. Se todos os cidadãos deixassem de pagar seus impostos, a estrutura do Leviatã iria sofrer um colapso irreparável, abrindo espaço para a instituição de um sistema mais evoluído e justo. Sofrendo o impacto do não-pagamento dos impostos, o Estado iria, no mínimo, tentar subornar seus escravos – e assim os defino, pois não necessáriamente concordaram com a forma como o Estado age, mas são obrigados a aceitá-la – mas é preciso atentar, pois nenhum Estado jamais será bom, nem mesmo os ideais mais sublimes, mostrados anteriormente. Para destruir a máquina do Estado, é preciso apenas a conscientização de que este é ruim desde o princípio, pois, como demonstrado, não serve para os fins aos quais se propõe. A solução seria, no entanto um sistema não-estatal que valorizasse ao máximo a individualidade de cada ser humano e o valor que cada um tem igualmente dentro da humanidade. O sistema teórico que mais se aproxima desta definição é o anarquismo, de forma corretamente interpretada.

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Referências Bibliográficas

DURANT, Will, História da Filosofia - A Vida e as Idéias dos Grandes Filósofos, Editora Nacional

THOREAU, Henry David, A Desobediência Civil e Outros Escritos, Martin Claret

MORE, Thomas, A Utopia, Martin Claret

HOBBES, Thomas, O Leviatã, Martin Claret