Ecos do Maio de 68 ou Reflexões de uma Geração Perdida

As reflexões sobre o Maio de 68 - onipresentes na mídia impressa e televisada ao longo desta semana - ecoam em meu pensamento, iluminando novos encadeamentos de idéias, sepultando e sedimentando antigas conclusões.

Uma delas a respeito de minha geração, a que chega agora, por esses dias, ou ao final dos trinta ou aos quarenta (e poucos) anos. Espremida entre aquela que viveu os anos sessenta na plenitude de suas contradições e esta geração de agora, em sua quase ausência de questionamentos, a minha “turma” ainda busca melhor definição.

Se os anos sessenta foram marcados pela variedade de opiniões, os setenta não lhes ficam atrás em termos de indefinição. Se nos 60s a juventude provocou e questionou seus pais, nos 70s aqueles mesmos jovens é que chegaram à paternidade, ao mercado de trabalho e ao protagonismo político, levando à descoberta de novos papéis para si próprios, novas formas de contrato familiar e social, novas filosofias e novos becos sem saída. Cá no Brasil, os anos 70 foram anos de doutrinamento político nas escolas (“Eu te amo, meu Brasil, eu te amo” nas formaturas, Educaçao Moral e Cívica, OSPB e que tais na grade curricular, planos qüinqüenais como matéria de exame), medo nas famílias e nas ruas, abertura no vivenciar da sexualidade, divórcio, drogas em abundância e só lá no fim -bem no final - uma nesga de anistia.

Lembro-me de um coleguinha de grupo escolar que, provavelmente imitando o próprio pai, criticou em termos chulos e em público, o então vice-presidente da República. Eu, tolo, por minha vez, repeti o comentário em casa – tomei um sermão duríssimo, que compreendi muito de raspão, mas cuja essência era simples: nunca exprima opiniões políticas. Tínhamos, meu amigo e eu, uns oito ou nove anos de idade.

Hoje que assistimos mais peças de teatro e intrigas políticas do que gostaríamos, já não nos assustamos mais com falhas de enredo, personagens amorais ou pequenas inverossimilhanças. Atravessamos o deserto do silêncio compulsório somente para chegar no "boquirrotismo de resultados" da imprensa brasileira, onde xingar pode, caluniar pode, desde que se mantenha o status quo.

O mesmo se diga das conquistas do feminismo, assimiladas pelo capital como tantas outras idiossincrasias modernas. Há trinta anos, no Brasil, era mais que possível, era comum um homem sustentar sozinho sua família. Com a transformação da mulher em mão-de-obra, aumentou-se a oferta de trabalhadores e reduziram-se os salários, com os resultados esperados. Hoje qual família pode prescindir do dinheirinho que mamãe traz arduamente para casa, dividido por vezes quase irmãmente com babás e empregadas domésticas?

Obviamente houve progressos com o fim dos casamentos arranjados, com a sedimentação das críticas ao machismo e à violência doméstica, com o advento da pílula e a derrocada da cultura do aborto que arrasava vidas e semeava hipocrisia. A introdução de conceitos como “planejamento familiar”, a popularização do divórcio, a aceitação social das segundas núpcias e a desmistificação progressiva da figura dos padrastos, bem como o amadurecimento das relações entre a mulher e seu corpo, a mulher e sua sexualidade, trouxeram menos preconceito na sociedade como produto final.

Mas a geração que cresceu nos 70s e adolesceu nos 80s não pôde desfrutar de toda esta abertura de pensamento como poderíamos imaginar. Debatemo-nos entre estruturas mal montadas, entre entulhos e restos de idéias arcaicas, entre o que a cultura (recebida em forma de programas de televisão, livros, HQs e música, não necessariamente nessa ordem) nos fazia intuir e tudo o que a “criação” (de nossos pais) nos mandava fazer. Não bastava ser, havia que parecer, logo só “parecíamos”, dicotomizando de maneira esquizofrênica e irrevogável o público e o privado. Fomos a primeira geração no Brasil a conviver com o uso recreacional das drogas, a primeira a congraçar-se com os homossexuais (no que se convencionou chamar de espaços GLS), mas nem por isso nos tornamos mais abertos que nossos pais. “Uma dama na sociedade, uma puta na cama”, era o slogan repetido como se fosse novidade; “vamos comer, beber e fumar que o mundo vai (se) acabar” era o mantra universitário; o sucesso e a riqueza a qualquer preço no final, tornando o homem não mais um pecador, mas um homem que “não se sente, crê que é uma engrenagem, o que é tragicamente pior” (Ernesto Sábato). Pra acabar com tudo de vez, a AIDS (que SIDA é coisa dos mais novos, na nossa época era outra doença, pré-coquetel).

Lembro-me de Freddy Mercury transformando-se lentamente de ídolo popular em leproso, “culpado” por sua sina, de Cazuza agonizando em praça pública como a querer nos lembrar que não pode haver vergonha em morrer, de Marina Lima antecipando um tempo em que reproduzir-se só com inseminação artificial – não haveria espaço para a confiança nem nas relações monogâmicas. Lembro da camisinha e do medo que nos fazia usá-la, sempre (ou pelo menos até “conhecer melhor a pessoa”, idiotice que muitos ainda cometem – um clássico).

Haviam hippies extemporâneos, comunistas chatos que resolviam todos os desafios da política mundial em mesas de bar, analistas chatos que nos olhavam bem no fundo dos olhos mesmo num evento social, punks de boutique, surfistas de verdade ou de boutique, metaleiros que juravam que o rock havia começado no Iron Maiden (ou pior, no Slayer) e outros, “de boutique”. Velhos que curtiam Led em uma sociedade que idolatrava Madonna, Michael ou Duran Duran. Moleques de dezesseis anos dirigiam impunemente pelas cidades brasileiras, trepando dentro dos carros na madrugada sem conhecer essa tal violência.

Lembro-me vivamente de um chaveiro de plástico ligado a um fio como de telefone, enrolado sobre si mesmo, que todo mundo usou por uma curta temporada. No pescoço, porque assim o fazia o personagem de Cássio Gabus Mendes em uma novela. Da Globo. No pescoço. Inauguramos a era do consumismo sem freio sem sabê-lo. “Seus problemas acabaram”, como vou viver sem ter aquilo de que nunca precisei?

Lembro-me também de tantos fumarem maconha sem saber porquê, de usar gel nos cabelos porque “todo mundo o fazia”, de usar roupas coloridas e faixas nos cabelos sem notar o quanto era brega e gay - só porque era moda. De nos alistarmos na faculdade para buscar o tão sonhado canudo, o título de “doutor” que satisfaria o sonho pequeno-burguês de nossos pais, só porque era o que todos – pelo menos os mais espertos ou centrados – faziam.

Ninguém nos contou que conseguimos (o tal canudo) porque tudo era mais fácil que na época de nossos pais. Que havia vagas demais nas faculdades, que formamos médicos demais, dentistas demais, advogados demais; e pedreiros, encanadores, eletricistas e metalúrgicos especializados de menos. Que os anos 90s trariam o ocaso paulatino da CLT e o império da informalidade. Que os juros do cheque especial e dos carões de crédito, distribuídos a roldão, nos tragariam a alma e a saúde.

Um dia então olhamos a televisão, sempre ela, onipresente, e eles estavam lá, nossos próprios irmãos mais novos, os caras-pintadas, nas ruas para defenestrar o Collor. Nós não estávamos lá. Rimos quando elle pediu verde e amarelo nas roupas e todo mundo saiu de preto (ou vice-versa, não me lembro). Isso não levaria a nada, hehe. Indignavamo-nos, mas e daí, onde já se viu cair um Presidente?

Estávamos velhos, prematura e irremediavelmente velhos. Ultrapassados pela geração imediatamente posterior, restou nos adequarmos ao mercado, pensarmos na sobrevivência, desiludirmo-nos de maneira lenta e gradual com a recessão da economia brasileira (que só recentemente acaba de ressuscitar) e constituir família. Isolados dos amigos pelo cansaço da vida diária, pelo nomadismo crescente ou pelas distâncias das grandes cidades; descrentes de nossas próprias famílias desintegradas, da política e da religião organizada; órfãos de ícones onde pudéssemos nos mirar e caminhos que trouxessem resultados concretos, passamos a viver para o dia de hoje e para o consumo de coisas que consolassem nossos egos feridos. Projetamos nossos sonhos nos filhos antes mesmo de tê-los, como tantas gerações antes de nós, mas por motivos diversos: não sabemos mais com que sonhar.

Somos a “geração perdida” como perdida foi definida, na economia, a década que nos viu adultos pela primeira vez. Carecemos urgente definir quem somos nós, como o fizeram os jovens de 68 em Paris e no mundo – de maneira precoce, ilusória, cândida e magnificamente irreal, mas verdadeira. Precisamos por uma pá de cal no cancro do hiperrelativismo filosófico, precisamos de novos espelhos, mitos e ideais, precisamos descobrir o que queremos e como o faremos antes de chegarmos à meia-idade ou à velhice, caso contrário repetiremos os erros daqueles que comandam hoje em dia o nosso país, sem olhos que não o prórpio benefício.

“Seja racional: peça o impossível”, ou coisa que o valha, gritavam as pichações em Nanterre ou na Sorbonne, durante as comunas. Anos mais tarde Renato Russo – ícone-mor da geração perdida, só perdendo em niilismo para John Lennon – dizia que “se o mundo é mesmo parecido com o que vejo, prefiro acreditar no mundo do meu jeito”, levando ao paradoxo (hilário) de Nick Hornby: “sou assim porque ouvi muita música pop ou ouço muita música pop porque sou assim?”

P.S. Espero em Deus pelo bardo que um dia virá impor algum sentido, ainda que falho, ainda que tardio, a esta geração. Procuro-o nos jogadores de futebol que buscam educar-se para o bom uso do dinheiro, nos atores e atrizes que são também autores e diretores, nos empresários bem-sucedidos que vão às Olimpíadas como atletas, nos losers mais largadões - um deles pode ser Balzac ou Villa-Lobos redivivo, nos novos candidatos a vereador que surgem com naturalidade no seio de suas comunidades, nos que acumulam empregos e funções, nos que se casam de novo (e de novo e de novo, se precisar). Porque da Academia, já sei, é bem de lá que nada virá.

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 09/05/2008
Reeditado em 10/05/2008
Código do texto: T982795