CRISTAIS DO TEMPO: história da fotografia no interior do Estado de São Paulo, da última década do século XIX à primeira metade do século XX - CAPÍTULO VI (Obra em andamento)

CRISTAIS DO TEMPO: história da fotografia no interior do Estado de São Paulo, da última década do século XIX à primeira metade do século XX – CAPÍTULO VI

(Obra em andamento)

À mocoquense

RINA D’ANGELO,

amada filha do casal Lauro e Palmira D’Angelo,

hoje residente na histórica e bela SALVADOR/Bahia.

Sertões, extensas planícies, distâncias, abismos...

Estafantes jornadas a cortar campinas, densas matas, longas estradas. E eu, andarilho, atravesso ruas de cidades, vejo tantas cidades, lanço olhares sobre cada quadro-cidade-labirinto e me pergunto:

_ Eu sou rural? Eu sou urbano?

Os campos e as cidades e as escolas e os museus... As praças, a praça Major José Quintino Pereira; a rua, as ruas Campos Sales, Carmo Taliberti, Cel.Diogo, José Bonifácio... o nome, os nomes cristalizados? pergunto com Sebald e Benjamin: colocar o nome em praças, ruas, museus, escolas assegura a alguém o direito de ser lembrado? Quais foram, afinal, os indivíduos que construíram esta cidade? Não seria exatamente os que sumiram, os anônimos, a comunidade sem história; enfim, aqueles que não deixaram vestígios, rastro algum?

Atravesso o Ribeirão do Meio e alcanço a Rua 15 de Novembro. Número 278: FOTO MATHEUS, na cidade de Mococa.

“Loiro galan — pelo lar

Entra o sol, sem dizer nada,

Alegre como a toada

De uma canção popular

A´ janella brinca um par

Sob o docel da latada;

Preso, de um prego na entrada,

Põe-se o colleiro a cantar...

Pombos, pombas batem aza

Sobre o telhado da casa;

Chamam de dentro — Yayá...

Puxando-a pelas mãosinhas,

Diz-lhe o moço: Mariquinhas

Vem temperar-nos o chá...”

(CHROMOS, de B.Lopes)

D. Mariquinha (mulher do fotógrafo Francisco Matheus Filho)*:

Eu nasci em Mococa, no dia 2 de fevereiro de 1917. Eu estou com 82 anos. Eu morei na Rua Barão de Monte Santo. Eu freqüentei a escola, o Grupo Escolar Barão de Monte Santo, aqui em Mococa. Depois a gente ficou, como é que se diz? Mocinha. Ia passear na praça, no jardim, e sempre namorava. No dia da Festa de São João, dia 24 de junho, eu, com a minha avó e minha tia, nós fomos passear em Arceburgo, e lá encontrei o Francisco Matheus Filho. Nós começamos a namorar lá, em Arceburgo. Aí, ele era daqui, de Mococa mesmo. Aí nós começamos, nos encontramos lá, e continuamos aqui em Mococa... namorava, encontrava sempre, namoramos muito tempo, viu! Depois de namorar muito tempo, veio o casamento. Ele era fotógrafo, ele trabalhava numa “Foto” com o Honório Ferreira Pinto: era patrão do Chiquinho. A família era de Arceburgo também, de Arceburgo. Honório era patrão dele, você vê que nós casamos e o Chiquinho ficou bastante tempo como empregado dele, do Honório.

A data que eu me casei foi 30 de setembro de 1939. Fui ter o primeiro filho em 1940. O Chiquinho continuava a ser empregado do Honório Ferreira. Depois de bastante tempo, depois que eu tive o segundo, o terceiro filho, aí ele resolveu... o patrão resolveu vender a “Foto” pra ele... ele comprou a “Foto”... ele comprou a “Foto”. Aí, o Chiquinho construiu aqui, depois de comprada a “Foto” do Honório Ferreira, ele construiu aqui, pra por a “Foto” aqui, na Rua 15 de Novembro. Meu Deus, já faz cinqüenta anos que nós estamos aqui! Nós estamos aqui! Cinqüenta e três anos que eu moro aqui, na Rua 15 de Novembro. É onde ele trabalhava, muito. Era um fotógrafo que todo mundo gostava dele, porque era Chico Matheus. Era o melhor fotógrafo. Tinha mais um ou dois na cidade. Tinha ele e... depois não ia fazer reportagem, não. Ele não ia. As fotografias que ele tirava era tudo aqui em casa, no estúdio mesmo, em casa mesmo. Tanto que de sábado tinha os casamentos e as noivas vinham aqui, pra tirar fotografias. Tinha sábado que tinha umas seis noivas, assim, tudo esperando pra tirar retrato. Uma pra entrar e a outra pra sair. Depois entrava outra. E foi assim a vida... Nasceram os filhos, foram crescendo, foram pra escola...

Os viajantes vinham até aqui. Às vezes, o Chiquinho ia pra São Paulo, porque ele comprava muita máquina pra passar filme. Ele ia pra São Paulo, comprar as máquinas e pra tornar a revender. Tanta chapa, raio X... Os médicos compravam dele, encomendavam, pediam pra ele. E ele vinha, ele entregava pros médicos essas chapas pra tirar radiografia. Ele vendia pros médicos. Depois foi melhorando, e eles mesmos [os médicos] compravam.

A casa era junto com a “Fotografia”. Tinha muita gente. Nossa! todas as classes sociais vinham aqui. Era bastante movimentado mesmo, muita gente de classe média, da fazenda, todos vinham até aqui tirar fotografias, tanto que o Chiquinho pedia demais pra não passar cera na sala, porque muita gente pobre vinha até aqui e tinha medo de escorregar e quebrar a perna. Tiravam as fotografias. As fotografias eram tiradas em chapas de vidro, sabe? Aí, ele revelava as chapas, retocava, pra depois fazer as fotografias. Ele fazia três por quatro, de casamento, tudo retocadinhas, e fazia aqui em casa mesmo. Ele fazia as fotografias.

O horário de trabalho dele. Nossa! Ele trabalhava o dia todo. Além de trabalhar o dia todo, senta e levanta da cadeira, porque precisava retocar. Ele atendia os fregueses. Tinha empregado, mas quem tirava as fotografias mesmo era ele. Depois que tirava as fotografias, ele trabalhava, não tinha horário, viu! Oito da manhã, o dia todo ou à noite. Às vezes, duas horas da madrugada. Antes de eu morar aqui, ele levava as chapinhas pra retocar em casa, lá onde eu morava. Ele levava e ficava retocando até as duas horas da madrugada. Depois, no outro dia, ele trazia já retocadinha, pra fazer as fotografias. Aqui também ele trabalhava à noite. Sábado até às seis horas, domingo até o meio-dia, trabalhava mesmo, viu! Trabalhava mais era no sábado, porque aos sábados vinha o pessoal, vinha de carroça, de carrocinha, pra tirar fotografia, pra documento. Depois das oito horas, ele vinha e ficava aberto, porque de primeiro fechava às onze e meia pra almoçar. Daí abria meio-dia e meia.

Aí abriu uma Usina que veio pra cá, a “Usina do Limoeiro” veio pra cá, e veio muita gente nos caminhões, eles vinham de turma pra trabalhar na Usina. Eles vinham de caminhão até aqui, pra tirar fotografia, sabe. Aí aumentou, tinha muito serviço, muito mesmo. Mas tinha o meu filho mais velho, o Célio. Ele trabalhava no escritório do Brisiguelo, do Arnaldo Brisiguello. O Célio era despachante. Ele ficou seis anos no escritório de despachante; ele gostava demais de lá. Mas, com o aumento do serviço aqui, o pai dele falou: _ “Não. Você agora vai sair lá do escritório, você vai ficar aqui me ajudando.” O patrão do Célio não queria que ele saísse, de jeito nenhum:

_ “Olha, Chiquinho, se você tirar o menino daqui, pra ele trabalhar em outro lugar, nós cortamos a relação, nós não temos mais amizade.

_ “Não. O Célio vai ficar em casa, pra me ajudar.”

E ele ficou até hoje trabalhando, aí. Aperfeiçou... Começou a tirar fotografias na igreja, no civil, nos aniversários. Ia pra fora tirar fotografia, mas o Chiquinho nunca foi. As pessoas vinham mesmo aqui. O Célio foi tomando o gosto por aquela coisa, por conta dele.

Até que um dia, o pai... agora não adianta falar, porque é muito triste. Ele ficou doente, deixou a “Foto” por conta dos filhos.

O Chiquinho fez até o terceiro ano de Grupo. Ele brigava muito com a professora, deixava demais ele de castigo. Ele fez no “Barão de Monte Santo”. Ele era muito inteligente. Ele fez um violino, Nossa Senhora!

Ah! não tinha material, não tinha material, não! fazia tudo a canivete, tudo. Ele fez um violino, você precisa ver que som! Que maravilha que foi o violino! Até teve uma festa muito bonita no “Variedades”. O rapaz que tocava violino no “Teatro Variedades”, nessas festas, gostou tanto do som do violino do Chiquinho, que ele fez a canivete, que ele pediu emprestado pra tocar numa outra festa. O Chiquinho tocava violino. Tanto que tem o violino, está por aqui. Ah! Ele tocava de ouvido, de ouvido que se fala. Ah! as músicas são essas antigas, mais clássicas. Então... assim foi a vida dele.

As fotografias que ele tirava no estúdio, das famílias inteirinha que vinha aqui pra tirar fotografias, ele colocava muito aquela luz, porque clareava por cima, dava aquele como é que se diz?

Bonita, viu, ficava muito bonita. Iluminava. Você viu que clareava por cima da cabeça dos fregueses. Eu acompanhava ele, porque quando ia tirar fotografia de criança quem ficava lá pra bater o sininho era eu. Eu tinha um sininho. Sininho... chama a atenção das crianças, porque punha a criança sentada na cadeirinha ou na mesa, então eu ia lá pra ajudar ele. E ele me dava o sininho, porque... Cadê o sininho? Tá lá dentro, tá lá dentro. Então, eu desse lado de cá, fica dum lado só, porque chamando, batendo o sininho, chamava a atenção da criança, e ela olhava pra onde tava batendo o sininho. Aí, tem que bater a fotografia. O que mais tô lembrando?

O Chiquinho sempre trabalhou muito, eu ajudava ele. Eu auxiliava até no balcão, pra entregar fotografias pros fregueses. Eu ajudei ele, bastante. Às vezes, até revelar as “três por quatro” eu ajudava, porque era branco e preto, as fotografias eram branco e preto. As “três por quatro”... Ele me chamava, ele imprimia, imprimia fotografia e jogava numa banheirinha com líquido e, depois, noutra banheirinha, com água. Então, ele imprimia e jogava nessa banheirinha que tinha líquido. Aí, ele mandava eu passar a mão nas fotografias. Eu mostrava pra ele. Ele falava:

_ “Mais um pouco. Não, não tá bom! Joga mais água. Não misture as mãos!”

Muitas vezes, à noite, eu ajudava ele a fazer muitas “três por quatro” também. À noite, pra poder atender os fregueses. Aí, adiantava o serviço. Assim nós fomos indo...

O primeiro encontro foi bom, porque foi em Arceburgo. Nós nos encontramos, depois continuamos o mesmo... assim, durante a vida da gente sempre foi uma vida muito agitada, muito serviço, “muito aperto”, era uma dificuldade.

Eu perdi um menino com dois anos e três meses. Foi uma coisa horrível. Mas, enfim, levamos uma vida boa, regular... boa, melhor do que pior, sabe. Melhor... Foi sempre melhorando, progredindo, aumentando. A casa era “pequeninha”. Foi aumentando, que dizer? A gente colaborou bastante, economizou. E agora “tá na mão” do meu filho... cem por cento, ele. Eu não tenho filha. Tenho três filhos, mas o Célio é mais do que uma filha, viu! Se eu me queixar de uma coisinha, Nossa Senhora! Ele vem cinqüenta vezes me ver...

O retoque! Acho que ninguém, ninguém aprendeu o retoque, não! Tirar fotografia de casamento. Os álbuns! Você chegou a ver? Muito bonitas, né? Olha, o Chiquinho retocava as chapinhas deste tamanho, “três por quatro”, tudo de vidro. Com o lápis, assim... com a ponta do lápis, bem fininho, pra retocar. Tirava tudo quanto era ruga, tudo. Mas você precisava ver que perfeição ficava a fotografia, bem retocada. Era chapa por cabeça, por cabeça... Agora acabou tudo isso. Agora você tira instantâneo, tudo mais rápido. Naquele tempo não rendia o serviço, porque você precisava retocar a chapinha. Agora, hoje não, hoje é mais fácil. Você tira fotografia e daí uma ou duas horas vem buscar. Agora melhorou, agora o colorido são as máquinas que têm.

Isso era bom, isso era muito bonito mesmo. Mistura tudo... Volta ao passado...

Ah! Quando casamos, a gente foi morar “parede e meia”, com os pais. Ali, a gente ficou bastante tempo. Depois de muito tempo, nós compramos um terreno aqui. É. construímos a nossa casa. Ele sempre como fotógrafo. Mas fotógrafo toda vida. O Chiquinho sempre gostou muito de mecânica, viu! Ele ficava muito nas oficinas mecânicas, gostava mesmo. Comprava caminhão velho e carro velho. Pode falar isso agora, comprava carro velho, caminhão velho. Ia na oficina e reformava tudo, pra poder vender. Ele gostava. Ele construiu lá na Mocoquinha. Aqui em Mococa ele construiu uma casa. Ele era de tudo: ele era o pedreiro, ele era o eletricista, ele fazia de tudo. Não tinha... tinha água lá em cima...

Agora vou falar besteira: não tinha água lá em cima. Então, nós tínhamos um carro D.K.V. Não tinha água e ele vinha com esses latão, desse tamanho aqui. Ele vinha buscar água aqui, na minha casa, pra levar lá no alto da Mocoquinha, pra amassar os reboques. Muito sacrifício! Mecânica... Ele ia muito na mecânica, mexia muito. Ele arrumava os carros que ele comprava. Ele ia até oficina, conversava e perguntava, ou faz isso, ou faz aquilo e depois vendia. Ah, ele demorou pra vender um carro! Ele ficou tão nervoso e disse:

_ “Vou por gasolina e vou por fogo.”

É assim a vida da gente...

O Chiquinho faleceu no dia 16 de janeiro de 1989. Já faz dez anos. No fim, ele já tava doente, muito tempo. Ele quis fazer uma máquina, assim, uma mini-oficina, uma “maquininha”. Se o Célio acha que deve te mostrar, depois você vai ver. Na “maquininha” tem de tudo, tudo: furadeira... Tudo em miniatura. Ele fez, ele fez uma oficina. Tudo funcionavam... liga tudo. Ele fez, mas ficou “ruim da cabeça”. Depois que ele não tinha mais forças, ele pôs na cabeça que tava doente, que tinha isso, tinha aquilo. Foi preciso ser internado, muitas vezes.

A mini-oficina... Ainda esse alicerce, aqui. Mas, por enquanto, nós vamos deixar de estimação. Nossa, que maravilha! Porque ele não tinha estudado. Olha o que ele fez, só vendo pra acreditar! Por isso ele ficou doente. Essa maquininha...

Então vamos lá, vamos... Ah! Tem um nome isso aqui, funciona viu! Olha aqui a furadeira. Tem de tudo, liga todos e eles funcionam. Ele deixou tudo escrito, tá difícil, você vê que não dá pra ler. Assim... dá prá você ler? Tudo pequeno... Tinha a oficina completa aqui. Agora o Célio separou muitas ferramentas.

É tudo aqui, tudo aqui. Ele trabalhava mesmo. Aqui tudo ligado. Furadeira, agora separou tudo, serra circular... É, agora separamos essas ferramentas, tudo esperando o filho que mora em Ilha Solteira. Eu tenho um filho que gosta de ferramentas, essas coisas. Ele se interessa, fica pra ele. Ele vem buscar.

Assim, uma vida...

Ele não gostava de passear, de sair, de viajar, nada. Diz que ele se sentia muito bem trabalhando em casa.

NOTA:

* Depoimento colhido na data de 29/07/1999, na Rua 15 de Novembro, 278: FOTO MATHEUS, na cidade de Mococa/SP.

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

Campinas, é inverno de 2008.