Mídia e infância

"mídia e infância - 4 de julho de 2010 (sic)

Cachinhos Dourados e o Lobo Mau

Choro em rede nacional e o papel de vilã-mirim abrem espaço para discussão sobre as consequências da atuação infantil na TV

Que eles são fofinhos, espontâneos e fazem a gente dar boas risadas ninguém nega. Eles estão presentes em comerciais, publicidade, filmes e novelas. Isso mesmo. Os pequenos - crianças brasileiras que se destacam seja pela espontaneidade, simpatia ou pela carinha bonita - sempre estiveram presentes na TV brasileira como atores, garotos-propaganda ou apresentadores-mirins.

E a bola da vez é a pequena Maísa da Silva, a estrelinha que brilha todas as manhãs na tela do SBT. Além de dançar e cantar, é apresentadora de um programa de TV. Maísa, hoje com oito anos, leva vida de gente grande, seja na rotina de sua “profissão” ou nas polêmicas que, no ano passado, se apropriaram de um nome tão angelical.

Os cabelos com cachos e as roupinhas que parecem de boneca fazem com que Maísa desperte a lembrança de outra menina que fez sucesso nos anos 1930. A americana Shirley Temple, apresentadora da TV Fox e da Paramount, até ganhou uma mini-estatueta simbólica em 1935, por sua contribuição ao cinema.

Maísa começou cedo na telinha. Com três anos já se apresentava no palco de Raul Gil, na Band, onde sua grande desenvoltura chamou a atenção da concorrência. Hoje alegra as manhãs sabáticas de Silvio Santos apresentando, sozinha, o programa Sábado Animado. Em 2008, também estreou aos domingos à tarde, participando no programa do patrão no quadro “Pergunte pra Maísa”, arrancando gargalhadas do histérico público predominantemente feminino.

No entanto, alguns programas exibidos no mês de maio de 2009 mostraram que a brincadeira extrapolou os limites. No dia 10 de maio, Maísa foi trancada em uma mala e se assustou. Depois chorou assustada quando Silvio Santos trouxe ao palco um menino mascarado, mesmo depois de Maísa confessar ao patrão que tinha medo. No domingo seguinte, dia 17, a menina ficou chateada ao ser provocada por Silvio Santos lembrando-a do choro do domingo anterior, e ao sair correndo bateu a cabeça na câmera e chorou mais uma vez.

O choro de Maísa em rede nacional culminou na mobilização da justiça, especialistas e público, que passaram a questionar como as emissoras têm explorado a imagem desses pequeninos para alcançar audiência.

Uma multidão de órgãos fiscalizadores – o Ministério das Comunicações, o Ministério da Justiça, o Ministério Público Federal, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e o Juizado da Infância e da Juventude de Osasco – denunciou o SBT. A emissora foi acusada, entre outras coisas, de exploração de trabalho infantil. O resultado não poderia ser diferente: na mesma semana jornais debatiam acaloradamente o assunto e revistas e sites de entidades relacionadas com os direitos da criança e do adolescente questionavam o papel da criança na TV[1].

Mas por que a Maísa?

Outros rostinhos prodígios também já foram vistos em programas como os de Raul Gil e o do Gugu, que tinham assistentes de palco mirins. Assim como o programa da Xuxa (e de seus Paquitos e Paquitas), por exemplo, que nunca foi questionado por apresentar um batalhão de dançarinos, cantores ou piadistas todos os domingos.

“A presença de crianças na mídia não vai terminar e a tendência é até o crescimento da participação delas na TV”, explica Luisa Naves, produtora do programa infantil TVX, transmitido há 10 anos pela emissora mineira TV Horizonte.

“A criança deve receber apoio, tanto da emissora como dos pais. Ela deve ter alguém que a oriente na rotina diária, afinal, ela tem até um script para seguir. Mesmo os apresentadores maiores de 15 anos precisam de acompanhamento”, esclarece. A exposição que um meio de comunicação como a TV gera e o fator de tornar-se uma figura pública tão cedo também são ressaltados por Luisa.

O que será que torna, então, o caso Maísa tão especial e com tanta repercussão da mídia?

O abuso ou exploração infantil sempre estiveram presentes na sociedade. Contudo, as tarjas pretas e as entrevistas ou declarações sem mostrar o rosto da criança ou do adolescente amenizam os efeitos. Mas no caso da Maísa, que aconteceu em um domingo, considerado horário familiar e nobre da televisão brasileira, a repercussão do caso de abuso foi muito maior porque ela, com medo e chateada, chorou.

Para o filósofo, pedagogo e doutor em educação Wilson Correia, as acusações feitas ao SBT estão corretas e despertam uma visão mais crítica sobre o tema. “A Maísa exemplificaria o caso de exploração infantil que se dá pela visibilidade”, explica. “Os outros casos de exploração infantil, crianças que vivem nas ruas, por exemplo, caracterizam-se pela invisibilidade: poucos conseguem enxergar e tomar medidas de redução de danos a esses seres humanos que o próprio mundo adulto colocou no mundo.”

Outras Maísas

Outra personagem que vem ganhando espaço na telinha brasileira é a menina Klara Castanho, atriz da novela Viver a vida, da Rede Globo. A garotinha interpreta Rafaela, uma criança conhecida por suas habilidades de mentir, persuadir e incomodar os adultos ao seu redor. Nas palavras da psiquiatra Ana Olmos, psicanalista infantil, toda criança pode ocasionalmente mentir, mas a personagem da novela o faz “de maneira extremamente consciente e adulta”, afirma.

Quando Rafaela começou a cometer as “maldades” na novela, a Globo foi convocada para uma audiência sobre as características da personagem. “A emissora prometeu reavaliar o caso, mas por enquanto pouco mudou e o que se vê preocupa”, afirma Ana. A psicanalista, que também é membro do Conselho de Acompanhamento da Programação de Rádio e TV da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, explica que o fato da Klara, como criança, gostar de dramaturgia, não tem problema. “Agora no caso da personagem Rafaela, mais fatores agravam o caso”, pondera. “O problema é que Rafaela mente e suborna os adultos e não sofre nenhuma consequência ou não é descoberta, o que não acontece na vida real, onde nós sofremos as consequências de nossos atos.” Ana completa apontando que, algumas crianças, quando assistem a essas cenas, não conseguem reconhecer que aqueles fatos não são reais. “As crianças telespectadoras recebem todas essas informações, o que é um mau alimento pedagógico.”

As polêmicas envolvendo crianças em novelas já são conhecidas, como ocorreu também em “Laços de Família”, por exemplo, quando a Justiça proibiu a participação de menores nas cenas de violência[2]. Fora da telinha, o Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedca), enviou uma representação ao Conselho Tutelar de Niterói e à primeira vara da Infância e Adolescência do Rio de Janeiro recomendando a proibição da menina Júlia Lira, de 7 anos, de assumir o posto de rainha da bateria da escola de Samba Viradouro.

O presidente do Cedca, Carlos Nicodemus, em entrevista à revista Época[3] afirmou que o conselho era contra a participação de crianças no Carnaval. "Somos contra a colocação nesse posto. Isto é fomentar a sexualidade de crianças e adolescentes. O que se pretende [nesses casos] é colocar uma criança num posto que tem alto apelo sexual e que é objeto de negociação no universo do Carnaval", defendeu. Vale complementar que o reinado anterior era da atriz Juliana Paes. Mesmo assim, o parecer foi favorável, e a 1ª Vara da Infância, Juventude e Idosos do Rio autorizou a participação da rainha-mirim, com o total apoio da mídia.

De quem é a culpa?

“A responsabilidade pela exposição que acontece no SBT passa pela família, que permite o trabalho; pela emissora, que emprega a criança; e termina na sociedade, que assiste o conteúdo sem nenhum questionamento”, observa a conselheira do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), psicóloga Malu Moura.

O problema vai além da exposição da menina Maísa ou mesmo do polêmico papel interpretado por Klara. “Não consideramos o fato de que a emissora que contrata deve oferecer os requisitos básicos para a participação das crianças na mídia televisiva”, adverte a jornalista e autora Bia Rosemberg, que foi coordenadora da programação infantil da TV cultura por 20 anos.

Produtora de programas como Castelo Rá-Tim-Bum e responsável por conseguir os direitos de transmissão da Vila Sésamo para o Brasil, Bia entende que não se deve apontar um culpado, mas cuidar para que o ambiente de trabalho das crianças seja positivo. “Algumas emissoras conseguem criar situações favoráveis e convenientes para o crescimento da criança e o desenvolvimento do talento dela. Algumas crianças adoram isso. Elas são feitas pra trabalhar na TV e se dão muito bem”, analisa.

Já a psicanalista Ana Olmos aposta na participação da própria sociedade e de entidades para que cenas vexatórias envolvendo crianças não sejam vistas. “A sociedade deveria boicotar os anunciantes dos programas que expõem as crianças de forma negativa ou que patrocinam programação que afronte os direitos humanos”, sugere.

No entanto, o educador Wilson Correia compreende que apresentar um único culpado seria uma postura reducionista. Para ele, o que deveria ser discutido é a própria mentalidade que rege a sociedade. “Que modelo de sociedade é este no qual a centralização do lucro, do ganho e da competitividade leva à relativização dos valores humanos? Por que o materialismo egoísta faz com que até os nossos filhos sejam instrumentalizados em nome do bem-estar material?”, critica.

Às Maísas e Rafaelas de todo o Brasil, deseja-se sorte; aos pais dos artistas-mirins, prudência; às emissoras, humanidade; e a nós, público, mais consciência."

Autoria:

Jornalista Liane Pires

Fonte:

http://www.canaldaimprensa.com.br/leitura.asp?id=0053