Entrevista sobre o brincar.

Entrevista sobre o brincar.

Prof. MS. João Beauclair

Publicada originalmente em

http://hipernb.blogspot.com/2004/09/brinquedos-e-brincadeiras.html

1) Hoje as crianças sabem ainda brincar?

Com certeza as crianças de hoje sabem brincar sim, só que com outras modalidades, outras formas de brincar. A interação com os multimeios, com os outros, consigo mesmo, se dá a partir do brincar: isso é inerente ao ser humano e nunca deixará de ser. O que vejo como importante é o resgate deste brincar nas relações interpessoais, sejam elas institucionais, clínicas, familiares, enfim, cotidianas. Brincar é o próprio viver, viver é aprender e aprender é como uma gostosa brincadeira. As crianças ainda sabem brincar: é preciso apenas construir um outro olhar sobre a questão e fazermos um resgate deste brincar.

2) Quais os benefícios de se utilizar o lúdico nas atividades para o desenvolvimento infantil?

A utilização do lúdico nas atividades para o desenvolvimento infantil é essencial: ao brincar, a criança amplia as possibilidades de ir além do seu próprio ser, consegue interagir consigo mesmo e com os outros, percebe que há regras para o convívio social, forma sua personalidade, enfim, vivencia sua inserção no mundo com suas complexas possibilidades. No “espaçotempo” do brincar, há a relação de apropriação e invenção, há a formatação do nosso jeito de ser, estar e agir no mundo.

3) Hoje, com a tecnologia, os brinquedos fazem praticamente tudo sozinhos. Isso é prejudicial e acaba com a criatividade da criança?

Sempre há a possibilidade da intervenção da criança sobre o brinquedo. Será que os brinquedos, de fato, fazem tudo sozinhos ou, o que se configura para todos nós são novos paradigmas para se pensar sobre o que é o brinquedo, o que é o brincar? Penso ser importante o resgate das brincadeiras, mas também acredito ser válido rever conceitos, apropriar-se do tempo que estamos vivendo, aprender a brincar com as próprias crianças.

4) As escolas já se deram conta da importância do lúdico nas atividades dentro da sala de aula? Elas oferecem espaço suficiente e adequado para

as crianças brincarem?

Apesar de todas as pesquisas de Piaget, por exemplo, e de tantos outros cientistas e educadores, infelizmente, não: as escolas não se deram conta da importância do lúdico nas atividades dentro da sala de aula. Claro que falo isso de um modo geral, pois existem muitas experiências educacionais onde o jogo e o brinquedo é foco e estratégia para aprendizagem, mas infelizmente, é exceção a regra. Também o espaço e o tempo são insuficientes e inadequados para as crianças brincarem: há uma severa separação entre o estudar e o brincar, o que é uma grande bobagem, pois com o lúdico em movimento, muitas conexões são possíveis e a aprendizagem é muito mais efetiva. A própria sala de aula ainda é, infelizmente, formatada para que o corpo, essência do lúdico, fique aprisionado entre uma carteira e uma cadeira, enfileirados, emoldurados, impossibilitados de movimento. E brincar não é só para criança: é para toda a gente e para nossa perene formação enquanto ser aprendente. Nos cursos de pós-graduação na área educacional que ministro pelo país, insiro o lúdico como estratégia de ensinagem e isso faz o diferencial pois resgata nossa possibilidade de aprender com prazer, com emoção, com amorosidade.

5) A TV e o video-game são considerados, por muitos pesquisadores, como vilões e que podem gerar crianças cada vez mais isoladas. Realmente existem somente aspectos negativos ou a TV e o video-game podem influenciar positivamente no desenvolvimento das crianças?

O que faz gerar o isolamento não é a TV nem o video-game e sim a falta do afeto, da amorosidade, da condição humana essencial da ternura, do carinho, da compaixão, da solidariedade. O que faz gerar o isolamento é o preconceito, o não respeito às diferenças de cada ser. É mais fácil considerar como vilões a TV e o video-game do que criarmos novos modos de agir com os outros, com as crianças, com os adolescentes, com os idosos. Para influenciar positivamente o desenvolvimento das crianças é preciso dar novos sentidos e significados ao nosso próprio cotidiano, é preciso “represar a pressa” e rever novos valores, re-avaliarmos nosso modo de viver, pautado no excessivo consumismo, no ter e distanciado do SER.

6) Os pais incentivam adequadamente as crianças a brincarem? Qual o papel da família neste sentido?

Talvez seja melhor refazermos a pergunta: os adultos incentivam adequadamente as crianças a brincarem? Qual o papel da estrutura familiar neste sentido? Primeiro porque o próprio modelo de família hoje é plural, pois são inúmeras e diferentes as configurações de núcleos familiares/parentais na atualidade. Cabe aos adultos encontrarem espaços e tempos para que, no seu cotidiano, n o contato com crianças e adolescentes, ocorra à magia do encontro, o privilégio de poder estar junto com o outro. O lúdico pode ser resgatado com o respeito, com a convivialidade pautada em valores mais humanos, menos egoístas. O essencial é a construção de uma nova ecologia humana, de um novo modo de cuidar das relações entre os sujeitos, principalmente das nossas relações com as crianças e os adolescentes.

7) Com a crescente violência, o espaço para as brincadeiras fica restrito aos condomínios e prédios. A criança perde em não poder se envolver e conviver mais abertamente com a comunidade ao seu redor?

Além dos espaços para as brincadeiras nos condomínios e prédios serem mal estruturados, são pouco aproveitados, pois acabam sendo espaços onde as crianças, na verdade, dão um “sossego” para os adultos que delas “cuidam” e ficam num convívio complexo com outras crianças e adolescentes, sem referenciais. O problema, na verdade, é estrutural e evidenciado numa complexa crise de valores institucionais que estamos vivenciando. Não resta dúvida que todos nós perdemos em não poder ter um maior envolvimento e convívio mais aberto com a comunidade ao nosso redor.

8) Essa questão de como lidar com o lúdico muda conforma a idade da criança e do adolescente? Em que sentido?

Infelizmente o que ocorre é que, com o passar do tempo, o lúdico de perde. Na pré-escola, ele é presente e com a continuidade da trajetória da criança nas fases seguintes, se perde pois é excluído do cotidiano da escola e vai ocorrendo uma cristalização do prazer, do sorriso, do contar histórias, da imaginação, do jogo.

9) As crianças hoje estão muito sobrecarregadas com atividades extras e não têm tempo para agir e brincar como a idade pede?

Este é um outro absurdo: crianças sobrecarregadas com atividades extras e muitas vezes sem sentido para a faixa etária de cada uma delas. O que é preciso é reeducar a própria escola, a própria família, para que saibam que há um tempo para tudo e que ser criança é uma fase mágica, bonita e que precisa ser mais bem vivenciada.

10) Quais os efeitos negativos desse distanciamento do brincar? Há um amadurecimento precoce?

A meu ver, os efeitos negativos do distanciamento do brincar é exatamente esse: um amadurecimento precoce, antecipado, um apressar de passos que definitivamente, é só complicador, pois etapas fundamentais do processo de formação da personalidade da criança são deixadas de lado, e as descobertas aceleradas, antecipadas. Isso ao longo do tempo pode gerar um conjunto de fatores que possibilitam o surgimento de inúmeras dificuldades futuras de lidar com os fatos e com os movimentos do próprio viver.

11) O que falta hoje para a educação das crianças ser mais eficaz?

Educação é sempre tema polêmico: não existe uma receita que dê conta das complexidades presentes no seu desenrolar, pois a cada dia e em cada escola e família, há uma representação sobre o que vem a ser uma boa aprendizagem, uma boa escola, uma boa aula, enfim, uma boa formação. O desafio da escola hoje, a meu ver, reside em duas questões fundamentais: uma destas questões é dar conta dos novos paradigmas de nosso tempo e dos dilemas da sociedade do conhecimento e da informação que se confirma neste início de milênio. A outra é fazer com que os quatro pilares da Educação para o século XXI, aprender a fazer, aprender a ser, aprender a aprender e aprender a conviver, propostos pela UNESCO sejam efetiva prática no cotidiano da escola, e sejam acrescidos de um outro essencial pilar: aprender a AMAR, no sentido mais humano que esta palavra pode ter.