Entrevistando um ladrão

Prólogo:

Este é mais um texto fictício onde o autor imagina uma situação real e cotidiana. Convém não esquecer que a realidade quase sempre se baseia na ficção e vice-versa. No contexto há personagens e situações reais vivenciadas pelo autor em pretéritos diversos.

Claro que um ilícito cometido em pleno estado de necessidade não é punível e isso é cristalino na legislação penal brasileira:

Um exemplo de estado de necessidade é o furto famélico - É o furto que consiste na subtração de alimentos para matar a fome. Praticado em tais condições, caracteriza o estado de necessidade do agente, descaracterizando o crime. (art. 24, do Código Penal Brasileiro).

É evidente que eu poderia citar inúmeros exemplos do estado de necessidade, mas para o contexto que escrevi, em forma de uma entrevista, esse se me afigura o melhor.

O dia estava escuro como breu. Aquela madrugada chuvosa de uma sexta-feira 13 não prometia boas notícias no alvorecer de um sábado que seria cinzento, frio e próprio para não se fazer absolutamente nada.

No viveiro a passarinhada confusa demorou a perceber as incoerências sub-reptícias, disfarçadas em calmaria, onde a madrugada parecia uma noite sem-fim.

O casal de cachorros (Hulk e Jade) dormia abraçado e também não percebeu que, não obstante o negrume da madrugada argentada, um novo dia, sem brilho, se avizinhava carregado de dúvidas e incertezas.

Levantei-me silente. Não acendi – nunca acendo luz à noite ao me levantar. Os móveis da casa são posicionados de modo a permitirem que eu me desloque rapidamente sem nenhuma luminosidade. Esse sofrido treinamento foi doloroso e me causou contusões nos joelhos, ombros e cabeça – nenhuma lâmpada.

Pela fresta da janela observei as nuvens encorpadas, espessas, prontas a desaguarem uma chuva torrencial como o esplendor de uma tessitura instrumental orquestrada pelo silêncio matutino.

Na cambona de cobre forte (ganhara de presente de um gaúcho amigo quando o visitei na cidade de Santana do Livramento) pus água filtrada farta para uma sessão demorada de chimarrão.

O relógio da cozinha marcava 3h22min e, por medida de segurança, os sensores de barreira e de presença, assim como a cerca elétrica e as câmeras de infravermelho não deveriam ser desligados antes das 5 horas (a cerca elétrica, as câmeras e os sensores de barreira NUNCA SÃO desligados a não ser para uma necessária manutenção).

Desliguei apenas os sensores de presença! Fiz isso para descobrir o viveiro dos pássaros e verificar se tudo estava bem com os meus fiéis companheiros Hulk e Jade. A quietude era contagiante. Tudo estava bem.

Voltei para a cozinha a fim de verificar a temperatura da água para o mate sagrado nas madrugadas frias. A água do chimarrão não poderá ser fervida e a temperatura ideal é em torno de 76º C. – Nesse exato instante a Jade, mais experta do que o Hulk, pela estirpe de sua raça, latiu feroz e insistente com o cenho carregado, os olhos nigérrimos e pontuais voltados para o portão de entrada individual da Casa dos Sonhos Coloridos.

Corri para o controle de câmeras e vi um homem magro, alto, negro e malvestido com uma alavanca (pé-de-cabra) nas mãos tentando adentrar nos meus domínios.

Com o dedo indicador da mão direita nos meus lábios e um comando de voz quase inaudível pedi silêncio a minha “menina” Jade que obediente recolheu-se às patas de seu companheiro.

Munido de minha “fernandinha”, devidamente registrada na Polícia Federal sob o nº 001114614, (PUMP 586P, calibre 12, com sete tiros (cartuchos 3T) no depósito e mais um na câmara), acionei o controle remoto do portão da garagem que, silencioso, foi meu cúmplice para surpreender o meliante (que deu um grito de medo pela minha inesperada aparição do nada) em sua arriscada empreitada matutina.

Claro que se ele, por reflexo condicionado ou não, partisse para a agressão eu não teria hesitado em parti-lo ao meio e certamente estaria encrencado por ter assassinado um “pai de família”, embora esbulhador, a sangue frio, indefeso. Procurem ver alguém atingido por um tiro de 12, com cartucho 3T, quase à queima roupa, para verem no que se transforma (massa disforme) o infeliz após o disparo estrondoso. A uma distância de três metros eu disse:

– E ai companheiro? Não quebre o portão e não chamarei a polícia, mas entre comigo para conversarmos. Ato contínuo entreguei-lhe as algemas prometendo que após a conversa iria liberá-lo do infortúnio e desconforto. A ausência da tia Fátima facilitou, sobremaneira, minha sanha.

Com a canela da perna esquerda algemada ao pulso da mão direita (conseguem imaginar a inusitada forma de imobilizar alguém?) eu o acomodei diante do olhar vigilante da Jade que eventualmente causava-lhe calafrios ao mostrar-lhe as presas (dentes caninos) grandes e tão afiados quanto navalhas.

3h27min – Sorvendo meu chimarrão fumegante perguntei ao meliante:

– Qual é o seu nome, onde você mora e por que você estava tentando entrar em minha casa?

– Meu nome é Josias, mas sou conhecido por “Preto Jô”. Escondo-me nas Malvinas (referia-se ao conjunto Álvaro Gaudêncio) num barraco de madeira e papelão. Sou 155 e albergado (queria com isso dizer que era um ladrão em liberdade controlada, saindo durante o dia para trabalhar ou estudar e voltando à noite para a prisão) e em sua casa eu queria fazer “um ganho” para melhorar a bóia de minha mulher e cinco filhos.

Se o senhor não me entregar à polícia juro que nunca mais lhe farei uma visita e direi aos meus colegas para também esquecer sua casa.

Com marginal não se negocia! Nada se deve prometer a bandido! Aliás, há um belo axioma que diz: "A rico não é bom dever e a pobre não se deve prometer". Não prometi, mas perguntei sério:

Mas você não percebeu a cerca elétrica? Não viu que poderia levar um tiro, ser mordido por um cachorro valente – nesse instante olhou para a PUMP 586P e para a cadela Jade. Tremeu convulso – ou mesmo se a polícia estivesse passando no instante de sua invasão? No caso da polícia lhe flagrar em delito você não perderia o benefício do albergue?

– Sei desses riscos doutor, mas eu evito pular muros de casas que têm cercas elétricas. Sei que o choque não mata, mas o desconforto e o atordoamento da altíssima voltagem são dolorosos em demasia. Já fui mordido por cachorros e tenho pavor desses animais.

Já levei bordoadas de polícia e homens de segurança, já fui baleado, esfaqueado e continuo nessa vida porque não me deram, ainda, uma oportunidade para a necessária correção. As instituições que adotam um programa de ressocialização de presos não funcionam! Sou ladrão e vou morrer ladrão.

– Você sabe o meu nome? Sabe quem sou eu o que faço?

– Não senhor. Sou um ladrão ocasional, um descuidista, não estudo “meus ganhos”. Eu já ia desistir quando ouvi os latidos do cachorro e o senhor apareceu de repente, como um gato e sem fazer barulho.

Nada sei sobre o senhor, mas vi o muro de sua casa tão bonito e protegido que imaginei ter algo de precioso no seu quintal para mim (SIC) levar. – Ele quis dizer: “Para eu levar”. (Nota do Autor).

– Talvez fosse desnecessário dizer, mas eu falei quase sussurrando: Sou advogado e militar do Exército na reserva. Especializei-me em armas e munições; explosivos e armadilhas antipessoais; também sou investigador criminal formado pelo Exército.

Perdi totalmente a audição no ouvido esquerdo, não enxergo bem durante o dia ou sob luz intensa, mas minhas deficiências físicas foram substituídas pelos meus cachorros e equipamentos eletrônicos. A essa hora da madrugada você não deveria estar na prisão para sair no horário já preestabelecido?

– Pois é doutor... Ontem eu não fui dormir na prisão nem sei como vou dizer quando eu chegar lá – nesse instante tentou se mexer – a Jade rosnou e ele aquietando-se olhou rápido para mim que lhe apontava o cano da PUMP para sua barriga. – Já está amanhecendo o dia doutor... O senhor vai me liberar?

Nessa ocasião lembrei-me do texto que escrevi e publiquei no Recanto das Letras em 11 de julho de 2010: “A MISÉRIA HUMANA”. No prólogo daquele texto transcrevi o que se segue:

“A miséria humana não está na incerteza dos acontecimentos que ora nos elevam, ora nos rebaixam. Está inteira no coração ávido e insaciável, que incessantemente aspira a receber, que se lamenta da secura de outrem e jamais se lembra da própria aridez. Essa desgraça de aspirar a mais alto que a si mesmo, essa desgraça de não poder satisfazer-se com as mais caras alegrias, essa desgraça, digo eu, constitui a miséria humana.” (Espírito Georges - Revista Espírita de 1860).

– Não. Não vou lhe liberar. Vou lhe conduzir até o presídio para você contar a verdade. Declare-se arrependido e conte que esteve em minha casa para tentar furtar algo para alimentar sua família. Informe, ainda, que você estava indo para o presídio e que não planejou essa tentativa de invasão de domicílio. Dê um jeito! Se não quiser fazer desse modo chamarei a polícia e quando os policiais chegarem eu informarei todo o ocorrido. O que você prefere?

– Mas doutor... Isso não vai colar. Era para eu estar na prisão para o pernoite e se eu chegar hoje pela manhã certamente vai acontecer a regressão de regime. O senhor irá comigo? Juro que estou profundamente arrependido e sei, pelo seu preparo, que agora eu poderia estar morto e/ou todo mordido por essa fera que não tira os olhos de mim.

O senhor sabe que eu não abri seu portão e não invadi sua casa. Antes dessa loucura o senhor me abordou mas eu já havia desistido voluntariamente de praticar o ilícito (eu não quis informar ao meliante, mas o forte latido da cadela Jade e minha repentina intervenção forçaram essa desistência "espontânea" a que se referia o albergado).

– Ora meu caro Josias você pretendia roubar minha casa e não o fez. Isso aconteceu porque você ouviu o latido da cadela, que no momento está lhe vigiando, e em seguida a minha oportuna aparição. Por favor e para o seu bem não faça nenhum gesto brusco diante dessa cadela. Quem avisa amigo é. É fácil constatar que o ilícito doloso de entrar em minha casa só NÃO SE DEU por um empecilho que nada teve a ver com a sua vontade.

A deliberalidade ou voluntariedade, no meu entendimento, não pode ser reflexo de ações de terceiros ou de algum fato para que surta efeitos a lhe beneficiar. Hoje vou lhe dar uma ajuda.

Mensalmente distribuo seis cestas básicas a seis famílias carentes: sendo duas em Catolé de José Ferreira, duas em Santa Rosa e duas que residem no “Buraco da Jia” – ocorre que uma das famílias, em Santa Rosa, mudou de residência e ninguém soube me informar o novo endereço. Há uma cesta básica sobrando.

Essa cesta básica (que resolvi doá-la ao ladrão ocasional) certamente resolverá, momentaneamente, as necessidades de sua família. Também vou lhe dar carona até o presídio e só voltarei quando você entrar.

Naquela ocasião, como se compreendesse não mais existir perigo de uma possível agressão por parte do ladrão, parecendo sentir uma sutil Energia Vital, a cadela Jade desviou os olhos pontuais do quase invasor e olhando nos meus olhos transmitiu-me uma paz, compreensão e ternura nunca dantes sentida.

Meu animal de estimação parecia estar me agradecendo por não ter apertado o gatilho e ainda ajudado a mitigar a fome dos familiares do albergado Josias.

OBSERVAÇÃO: Definição de energia vital - Energia ou força (suposta real, ou imaginada figuradamente) própria aos seres vivos (esp. aos animais e, mais ainda, aos seres humanos), associada exclusivamente aos fenômenos da vida e diferente dos tipos de energia do mundo inanimado. (A ideia de uma energia vital é característica do vitalismo.).

NOTA DO AUTOR:

É importante a distinção entre os institutos da desistência voluntária e do arrependimento eficaz, vejamos:

Haverá desistência voluntária, quando o agente iniciar a prática dos atos executórios, porém, por vontade própria deixar de praticá-los, interrompendo, assim, a ação, não importando o que o motivou, seja por medo, por arrependimento, ou por qualquer outro fato, desde que tal paralisação não se dê por intervenção de outrem. Já, o arrependimento eficaz ocorrerá quando o agente praticar os atos executórios até o final, impedindo, porém, que o resultado se concretize.

Nesse sentido é a redação do artigo 15 do Código Penal:

Art. 15 - O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.

Se, no caso em concreto, houver constatação da ocorrência de um dos dois institutos em comento, haverá a exclusão da punibilidade do agente, sendo que esse apenas responderá pelos atos que efetivamente praticou.

Para que o crime seja enquadrado nas regras do artigo 15 do Código Penal, o agente não precisa agir com espontaneidade, todavia, sua desistência ou arrependimento deve ocorrer de maneira voluntária. Isso quer dizer que o agente deve, por sua própria vontade, desistir de cometer o crime ou de obter o resultado final.

Há divergências quanto à natureza jurídica da desistência voluntária e do arrependimento eficaz, haja vista que parte dos doutrinadores defendem que tanto a desistência quanto o arrependimento dão margem a atipicidade de conduta, sustentando que se o agente desiste de praticar o crime ou se arrepende eficazmente, por vontade própria, ocorre a atipicidade.

No entanto, outros estudiosos entendem tratarem-se, ambos os institutos, de causas extintivas da punibilidade, tendo como argumento o fato de que, nesses casos, a extinção da punibilidade serve como motivação para a desistência do cometimento do crime ou para o impedimento do resultado advindo dele.

Vale observar, por fim, que não comete nenhum crime aquele que desiste de praticá-lo antes mesmo do início dos atos executórios, mesmo que tenha pactuado e ajustado anteriormente com outrem.

EM RESUMO

No crime de homicídio por exemplo, pode ocorrer tanto a desistência voluntária quanto o arrependimento eficaz (no "inter criminis" pode ocorrer alguns casos no crime de homicídio em que ocorrem a desistência ou o arrependimento).

No arrependimento eficaz o agente salva a vítima socorrendo-a e garantindo assistência médica, capaz de impedir a morte. Na desistência voluntária o agente não desfere o golpe de misericórdia abandonando a vítima, que vem a se salvar por suas próprias forças ou pela intervenção de terceiros.

É possível ocorrer desistência voluntária no crime de estupro, quando o agente depois de ter dominado a vítima deixa de consumar o crime diante da promessa da vítima de não contar nada a ninguém conforme decisão TACRIM/SP.

Também, de acordo com decisões desse tribunal é possível desistência voluntária até no crime de roubo, quando o agente subtrai um carro com emprego de arma e o abandona uma quadra adiante.

Neste último caso, há razões de política criminal para a decisão, porque no crime de roubo, a consumação se dá com a subtração da coisa, e sua permanência mesmo que por breves instantes na esfera de disponibilidade do agente.