"ESCOLA PÚBLICA...?*

Diante da má qualidade do ensino nas escolas públicas, políticos fazem promessas e especialistas culpam a eterna falta de investimentos

ANDRÉIA BAHIA

Em época de campanha eleitoral, a educação ganha status de prioridade para todos os candidatos, que passam, de uma hora para outra, a defender políticas educacionais para melhorar a qualidade da escola pública. Cristovam Buarque (PDT), candidato a presidente da República, promete dobrar o salário do professor em quatro anos, Alcides Rodrigues (PP), candidato a governador de Goiás, acabar com o analfabetismo, e seu concorrente, Demóstenes Torres (PFL), transformar todas as escolas em unidades de tempo integral. A educação nas escolas públicas ganha espaço no debate eleitoral justamente porque é ruim e há um consenso sobre essa má qualidade da escola pública no Brasil, entre leigos e especialistas em educação.

Segundo dados da Prova Brasil realizada em 2005 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do Ministério da Educação, a nota média das escolas públicas brasileiras no exame de matemática na 4ª série foi 179, o que significa que a média dos alunos não consegue ler as horas e minutos nos relógios, resolver operações de subtração com 3 algarismos e efetuar multiplicação com somente 1 algarismo.

No último Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), programa internacional de avaliação comparada que avalia o desempenho de alunos na faixa dos 15 anos, realizado em 2003, os estudantes brasileiros foram os últimos colocados nos exames de matemática, atrás do Uruguai, México e Tunísia. Na comparação entre os jovens com melhor desempenho em cada país, o Brasil também ficou em último lugar.

Os resultados do Sistema de Avaliação do Ensino Básico (Saeb), do Ministério da Educação, de 2003, aplicado a alunos da 4ª e 8ª séries do ensino fundamental e 3ª ano do ensino médio, mostram que metade dos alunos da 4ª série está no nível muito crítico ou crítico em matemática e que até a proficiência da elite brasileira está diminuindo. Cinco por cento do melhores classificados na escola pública brasileira estão entre os piores do mundo, em uma avaliação feita internacionalmente.

O Brasil cumpriu parte das metas de educação traçadas em 2000 pelas Nações Unidas no encontro Educação para Todos, colocando a maior parte das crianças na escola. Para se ter uma idéia, em 1932 o número de alunos matriculados no ensino fundamental no Brasil era de 2,127 milhões e, em 2001, passou para 35,717 milhões. Mas, nas salas de aula, esses alunos não recebem educação de qualidade. Entre 121 países, o Brasil está em 71º lugar em termos de qualidade de ensino, de acordo com o relatório global Educação para Todos, versão 2006, da Unesco. No Brasil são registrados o maior índice de repetência e o maior número de analfabetos da América Latina. Cerca de 21 milhões de brasileiros, ou 11,6 por cento da população com mais de 15 anos, são analfabetos. Um percentual maior que o do Paraguai, que é de 8,9 por cento, do Chile, que é de 4 por cento, e da Argentina e do Uruguai, de 3 por cento.

Na avaliação do professor da Universidade Federal de Goiás e doutorando em educação na Unicamp Wilson Correia, que acaba de publicar o livro Saber Ensinar..., muitos fatores não são observados nas pesquisas internacionais que colocam o Brasil em situação inferior no ranking mundial e é preciso ficar com o pé atrás frente a esses levantamentos. 'Com que interesse se divulga isso? Que métodos são usados para fazer essa avaliação? Essa avaliação contempla a necessidade real de escolarização das comunidades nas quais esses testes são aplicados ou são testes internacionais com parâmetros internacionais que não cobrem a necessidade de conhecimento das nossas comunidades?', questiona. Segundo Wilson Correia, até os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), concepção curricular que está em vigor no Brasil, é de inspiração universalista e desconsidera as peculiaridades das comunidades locais. 'Quando se toma parâmetros universalistas para avaliar o local, pode haver distorções imensas.'

Apesar de desconfiar das pesquisas nacionais e internacionais, o professor da UFG não discorda de que a escola pública brasileira seja problemática e considera que essa situação se deve ao fato de a educação ter se tornado conteúdo de discurso político. 'Efetivamente, na prática de ensino, no cotidiano da escola, aquilo que é defendido no âmbito das idéias não chega a qualificar a prática do professor.' Segundo ele, para que o ensino tenha qualidade, é preciso que o professor tenha infra-estrutura, material de trabalho de boa qualidade, condições de se qualificar profissionalmente e também um salário digno, que possibilite o sustento de seu processo de desenvolvimento. 'E essas coisas, muitas vezes, ficam a desejar.'

Mesmo com essa dificuldade, o professor percebe que o trabalho do professor na escola pública tem produzido bastante efeito. 'Das pessoas que conseguem chegar à universidade pública, a grande maioria vem de escola pública, um sinal de que o professor, mesmo sem alguns dos elementos que eu assinalei, tem conseguido fazer um bom trabalho.' Não existem parâmetros para comparar a qualidade da educação nas escolas públicas brasileiras ao longo do tempo, mas existe uma sensação generalizada de que o ensino público piorou muito nos últimos anos, e a imagem que se tem da escola pública no Brasil é muito negativa. Na opinião de Wilson Correia, se a escola pública não tem conseguido fazer frente às exigências da sociedade, não é porque ela em si não dá conta, mas porque não é aparelhada para isso. 'É preocupante o descaso com a escola pública.'

Por outro lado, existe uma tendência, que, segundo o professor, atende à sociedade de mercado, de valorizar apenas a escola privada, e há também uma onda de desqualificação sistemática do trabalho feito na escola pública. 'Nós, professores da rede pública, ficamos em uma situação difícil, porque, por um lado, temos que demonstrar que a escola sozinha não consegue fazer muita coisa no sentido de garantir cidadania para as pessoas e qualidade de vida. E, a par dessa denúncia, temos de dizer que, sistematicamente, do ponto de vista do Estado, tem havido muito pouco investimento na escola pública. No rol de tudo isso ainda temos que salvar o trabalho do professor, porque grande parte dos professores tem feito um trabalho muito bonito, e isso não é demonstrado.'

Uma das coisas que preocupa o professor em relação à qualidade do ensino é a flexibilização que houve na escola pública com a introdução do ciclo e, conseqüentemente, o relaxamento na avaliação. 'O que tenho ouvido dos professores é que os alunos estão desinteressados e não conseguem ser eficientes no aprendizado.' Mas essa dificuldade precisa, segundo o professor, ser discutida dentro de um contexto onde se deve questionar se a educação é colocada como prioridade real no país, o que as pessoas esperam da educação e se ela contribui para incrementar a vida das pessoas.

Na opinião de Wilson Correia, atribui-se à escola uma tarefa que não lhe cabe. Segundo ele, a escola pode várias coisas se estiver inserida dentro de um projeto de sociedade e atuando junto com a rede de instituições sociais, que compreende a política, a economia, a cultura. 'Não adianta querer uma escola dos meus sonhos se ao redor dessa escola eu tenho injustiça social, a corrupção política que solapa a economia do país, uma cultura que valoriza o lucro. Hoje, os bens culturais são valorizados à medida que são úteis e dão lucro, desconsiderando o saber do povo e a manifestação cultural de maior valor.' Ele afirma que a escola, nesse contexto que o professor denomina sociedade de mercado, liberal e de economia globalizada, consegue fazer muito pouco.

Para Wilson Correia, esse discurso de inclusão faz parte do sistema capitalista, 'mas a inclusão social via educação se tornou uma tarefa muito agigantada para a escola, porque é uma missão que não cabe só a ela'. Segundo ele, a escola pode contribuir, porém depositar toda a esperança de que o escolarizado vai se incluir socialmente é esperar da escola uma função que não é dela. 'A especificidade da escola é a de fazer circular, produzir e socializar o conhecimento sistematizado. E isso, ao lado de uma democratização econômica, de uma participação política efetiva e de um projeto democratizante amplo, geral e irrestrito, tem eco. Mas querer que só a escola faça inclusão social é querer muito dela, é exigir demais dos professores, é colocar no ombro do professor e da escola uma responsabilidade superpotencializada que não cabe a nenhum deles.'

A melhoria da qualidade da educação pública passa por uma série de fatores, e não apenas pelo incremento de verbas destinadas à educação, como muitos alegam. Nos últimos anos, os Estados Unidos têm aumentado o gasto com educação, mas não houve melhora no desempenho dos alunos em exames internacionais. No Brasil, argumenta-se que a melhoria da educação estaria vinculada ao aumento do salário dos professores, mas o cruzamento de dados sobre orçamento com educação de Estados e municípios brasileiros e os resultados de testes de proficiência mostram que não há relação entre gastos com educação e desempenho dos alunos.

Todavia, o professor Wilson Correia chama atenção para um aspecto da remuneração do professor que, segundo ele, interfere na qualidade do ensino. Segundo ele, a formação do professor não se restringe à formação que é de praxe. É necessário que ele participe da vida cultural do país. Mas não é o que acontece. De acordo com pesquisas, 50 por cento dos professores não vão ao teatro e quase 60 por cento lêem um livro por ano. 'A escola, para ser eficiente, tem de dar três habilidades básicas — ler, contar e escrever. Hoje, o conceito de letramento pede um pouquinho mais, é preciso saber ler, escrever, contar e usar significativamente no seu contexto comunitário. Um professor que não vai ao teatro, não sabe desfrutar de uma boa música, de um bom filme, não tem condição de ler um livro e depois debater esse livro, circular idéias, como vai transmitir para o seu aluno o gosto pela leitura, o gosto pela cultura, ou mesmo o gosto para escrever?' Essas atividades, ele ressalta, estão amarradas ao salário do professor. 'O salário mal dá para ele se manter como um ser humano e manter os filhos.' Wilson Correia ressalta que não se trata de uma visão economicista da prática docente, mas chama a atenção para o fato de a sociedade remunerar bem aqueles profissionais que são estratégicos. 'Todo mundo diz que a educação é uma área estratégica, porém o professor não está sendo bem remunerado. Isso é mais uma pontinha do iceberg do descaso com a educação.'

A qualificação dos professores também é apontada como um dos fatores que influenciam na qualidade do ensino público, e o Estado brasileiro tem investido na formação superior dos professores. Mas resta saber se a especialização feita de afogadilho, para atender a uma lei que obrigava o professor e ter licenciatura para dar aula, qualificou realmente os professores. Wilson Correia afirma categórico que não. 'Eu fui convidado para lecionar num curso de pedagogia parcelada e fiquei estarrecido, porque os alunos são pessoas extremamente cansadas, os encontros acontecem a cada 15 dias e, durante esse período, eles têm aquele monte de apostilas para ler, as salas são superlotadas, as pessoas não têm disponibilidade cognitiva, emocional, financeira e nem física para se dedicar ao estudo.'

Formação forçada -— Na opinião do professor, a qualificação do corpo docente não poderia ter sido feita com base na obrigatoriedade de uma lei. 'O profissional da educação tem que ser tratado como um profissional e, como tal, tem de ter um programa de qualificação independente de uma lei que determine um prazo.' Segundo ele, o dispositivo legal poderia trazer algum benefício, desde que não forçasse os professores que já tinham a prática de ensino, a sabedoria de sala de aula, a voltarem para a mesma. O ideal seria que se exigisse a formação superior para ingressar no magistério a partir de um determinado ano. Na opinião de Wilson Correia, o ex-ministro Paulo Renato quis, com a exigência, criar um mercado emergencial para as escolas privadas. 'Houve uma transferência brutal de recursos da esfera pública para as privadas e com ganhos altamente questionáveis em termos da qualificação do professor que vai atuar no cotidiano.'

Para Wilson Correia, para que a escola dê o salto de qualidade que os políticos prometem, é preciso que a sociedade se mobilize com forças políticas partidárias para programar projetos de educação que façam a diferença. 'Mas é necessário que pessoas que entendem de educação, forjadas no cotidiano da sala de aula, assumam estes projetos.' Segundo ele, as instâncias oficiais ouvem os especialistas que estão vendendo modelos educacionais, e não quem está na educação. 'Acredito que tem que haver o entrelaçamento da sociedade, das suas forças organizadas e as forças políticas. Fora disso, esse otimismo [com a inclusão social via educação] não passa de ilusão.'"

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*Entrevista concedida ao Jornal Opção, em Reportagens, de 27 ago. a 02 set. de 2006, http://www.jornalopcao.com.br.