Seria o mesmo que cada lápis comprado tivesse que ser cadastrado

Entrevista com Carlos Seabra, feita por Iberê Thenório, integrante da ONG Repórter Brasil

Para especialista em inclusão digital, dispositivos do projeto de lei para a segurança na internet invertem os valores republicanos e aumentam o controle do Estado sobre o cidadão, quando haveria a necessidade de promover o contrário.

Na última terça-feira (14 de novembro de 2006), foi retirado da pauta de votação do Senado o projeto de lei que regulamenta os crimes da internet. Depois de muita polêmica, ficou destacada a necessidade de maior discussão da sociedade a respeito do assunto.

No projeto de lei, cuja última redação foi dada pelo senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), estão previstas medidas como a necessidade de o usuário se cadastrar junto ao provedor de internet através do fornecimento de dados pessoais – passíveis de verificação – como data de nascimento, nome completo e endereço. A identificação do usuário teria que ser realizada a cada acesso.

A responsabilidade por esses dados ficaria a cargo dos provedores, sendo que a lei prevê pena de prisão – de dois a quatro anos – àqueles que permitirem "acesso indevido". Para o consultor jurídico do Ministério da Comunicação, Marcelo Bechara, o projeto vai de encontro à inclusão digital. Entre as questões polêmicas levantadas está a sugestão de Azeredo de responsabilizar os professores pelo o que seus alunos fizerem na internet dentro da escola.

Em reunião para discutir o assunto, realizada nesta terça-feira (14) na Câmara dos Deputados, Azeredo admitiu a possibilidade de retirar de seu projeto o item que trata da obrigatoriedade de identificação dos usuários da rede.

Para discutir as possíveis conseqüências da identificação obrigatória, contida no projeto de lei na inclusão digital, a Repórter Brasil entrevistou o pesquisador Carlos Seabra, que é diretor do Instituto de Pesquisas e Projetos Sociais e Tecnológicos (IPSO) e coordenador do Ponto de Cultura Vila Buarque e membro da coordenação do Movimento Humanismo e Democracia (MHD).

Carta Maior – Esse projeto pode atrapalhar a inclusão digital?

Carlos Seabra – Acho que isso é pouco, pois a ameaça é muito, muito maior! Atrás desse cerceamento da liberdade, através de medidas aparentemente destinadas a preservar a lei e garantir a segurança, há uma perigosa invasão da privacidade. Hoje só é possível imaginar a democracia com todos podendo vigiar os impérios de comunicação, grandes conglomerados financeiros, aparelhos do Estado... Se há leis a serem promulgadas são as que nos ajudem a controlar a excessiva falta de controle que a cidadania possui sobre tais poderes. Esse projeto de lei é uma grave inversão de valores republicanos, agravada imensamente pelo fator de amplificação que as novas tecnologias permitem.

"Uma sociedade que troca um pouco de liberdade por um pouco de ordem acabará por perder ambas, e não merece qualquer delas", disse Thomas Jefferson (1743-1826) em carta a James Madison.

CM – Que tipo de conseqüências o projeto de lei pode trazer para os infocentros e outras iniciativas semelhantes, ao exigir a identificação toda vez que alguém entrar na internet?

CS – Seria o mesmo que cada lápis comprado neste país tivesse que ser cadastrado e a identidade de seu comprador registrada, juntamente com o consumo de borrachas e papel. Afinal, não é segredo para ninguém que quase 100% dos crimes financeiros, planejamento de assaltos a bancos e centralização do tráfico de drogas usam estas ferramentas de escrita e comunicação! Num país onde não se descobre o que acontece com milhões de reais de dossiês, de privatizações – sem falar nos celulares nas cadeias – é cômico e revoltante pensar em penalizar os professores pelo que seus alunos façam! Imaginem se fossemos controlar os lápis, não seria mais fácil aos professores os abolirem das escolas para não terem problemas? Telecentros, escolas, empresas, residências, todos seriam afetados. É importantíssimo perseguir e prevenir o crime, mormente o organizado, e até os pequenos crimes. Mas quando medidas totalitárias (e ineficazes) colocam a prevenção ao crime acima das liberdades, toda a sociedade paga um preço muito maior. Basta olhar o que ocorre com a inepta política de segurança nos EUA, que, ao acabar com históricas conquistas da democracia daquele país, aumentou o que dizia querer combater, numa escalada que nos trouxe até a justificativa de campos de concentração, de julgamentos secretos e da tortura.

CM – Em pesquisa recém-divulgada, o Comitê Gestor da Internet no Brasil informa que 67% dos brasileiros nunca utilizaram a internet. O motivo deles não acessarem a rede seria, para 50,64%, não saber usar computador, enquanto 22,40% não têm habilidade com a internet. O projeto de lei poderia piorar essa situação? A iniciativa da criação dessa lei no Brasil segue alguma tendência mundial para o controle da Internet?

CS – Sem dúvida poderia piorar. Se não fosse inacreditável achar que tal lei poderia ser aprovada, ainda assim nos resta a certeza que seria mais uma das leis a "não pegar". Não pegaria porque é praticamente impossível tal controle e porque os setores organizados da sociedade, e até mesmo o que não o são, promoveriam uma desobediência civil raras vezes vista. Os grandes exemplos de controle da internet vêm atualmente do Irã, da China, da Coréia do Norte, de forma mais tosca e diretamente visível. Mas vêm mais ainda dos EUA, do Reino Unido, de forma tecnologicamente mais sofisticada, menos perceptível, com a "arapongagem" dos bytes feita por inteligência artificial, controle estatístico e lógico de ocorrência de palavras-chave etc.

CM – Qual é a melhor forma para lidar com os crimes da internet? Você acredita serem necessárias novas leis a respeito?

CS – Um projeto de lei como este tem, obviamente, seus pontos meritórios. Tem seus aspectos positivos e exige-se medidas que atendam a algumas das demandas que os legisladores procuraram atender. Mais do que novas leis, no entanto, é necessário aplicarem-se as leis que já existem. Afinal, o que temos de novo além de crimes de difamação, de pedofilia, de estelionato? O que se critica é o modo ineficaz, tosco, autoritário e perigoso de levar isso a cabo.

Concluo citando um poema de Eduardo Alves da Costa, atribuído errôneamente por muitos a Brecht, que mostra o perigo de irmos tolerando as pequenas perdas de nossa liberdade:

Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Entrevista publicada no site Repórter Brasil, e republicada nos sites Carta Maior e SaferNet Brasil, em novembro de 2006.