Nas Torres de Vigília

Nas Torres de Vigília,

A poesia Lima de José

José Wanderson Lima Torres. É a poesia do professor de literatura, que o internauta passa a conhecer em nosso site. Não só uma "amostra grátis", mas também uma entrevista exclusiva. Prêmio FUNDAC de poesia 2003 - com o já publicado Balé de Pedra -, Wanderson Lima é autor de "Escola de Ícaro - o Exercício Necessário da Queda", 2000, e "Morfologia da Noite", 2001, além de textos críticos sobre literatura em jornais locais.

Nascido em outubro de 1975, em Valença - Piauí, Wanderson Lima é um autor consciente de sua responsabilidade literária, dialoga com a melhor tradição e busca, ainda, o aprimoramento de sua obra, construída com paradigmas bem definidos. Veja a que nível chegou o nosso "poeta", na seleção de alguns de seus vôos poéticos

ENTREVISTA

Elias Paz e Silva - Que representa para você, pessoalmente e para sua carreira literária, a vitória no concurso da Fundac e a conseqüente publicação de Balé de Pedras?

Wanderson Lima - Pessoalmente, sou cauteloso. Sei, em primeiro lugar, que “Balé de Pedras” tem suas limitações; em segundo lugar, sei que a comissão, por mais idônea que tenha sido, pode sem nenhum propósito ter se enganado: isso o tempo irá dizer, ele é o senhor dos enganos (e também dos não-enganos); acima de tudo, sei, sem querer ser arrogante, que esse livro é uma fase de minha evolução: espero poder ir mais longe. Enfim, são os leitores e o tempo que vão saber o que fazer com “Balé de Pedras”. Penso que ele não perdurará, embora, claro, no fundo eu torça contra o meu bom senso. Em relação à “carreira literária”, se a pensamos em sentido estrito, ela é praticamente impossível aqui: cadê as editoras? Quem ganha aqui dinheiro produzindo literatura? Minha carreira é de professor, escolhida estrategicamente para que eu pudesse ficar perto de minha vocação, que é ser escritor. Bem, mas aceitando, em sentido lato, a noção de carreira literária, acho que ajudou. No meio daqueles que realmente amam a literatura, o nome passa a ser mais conhecido.

EPS - Como você se insere no atual panorama da literatura brasileira de expressão piauiense? Vê-se filiado a alguma geração ou movimento literário específico?

WL - Atuo na “crítica de rodapé”, como chamavam outrora, e no ensaísmo literário numa perspectiva prioritariamente sincrônica; não tenho pretensões de historiar a literatura. Além disso, creio que esse exercício narcisista de se auto-classificar, que tomou força com o Romantismo, pode ter alguns inconvenientes. O mais grave é que as auto-classificações são muitos parciais. Quando concretistas, por exemplo, escrevem sobre a história da suposta evolução das formas poéticas fazem tudo desaguar no Concretismo. Movimentos artísiticos receberam nomes pomposos que depois viraram quase que xingamentos, como é o caso do Parnasianismo; outros, como o Impressionismo, fizeram a trajetória inversa. A mim e a alguns amigos de geração que tenho foram dadas duas denominações as quais recebo sem protestos. Herculano de Moraes chamou-nos de Milenismo e Aírton Sampaio ideou a expressão Geração Amálgama. Embora nenhum dos dois explique os motivos da escolha, creio que elas estão implícitas na própria denominação. Moraes privilegia o aspecto histórico, supondo que a virada do milênio implica mudanças na perspectiva estética; acho também que ele leva em consideração que a maior parte dos “milenistas” estreou pouco antes ou pouco depois da virada do milênio. Já Sampaio baseia-se no nome dado aos veículos que usamos (ou usávamos, já estamos parados) para divulgar nossos poemas e textos críticos: o site e revista Amálgama. Particularmente, entendo que a denominação de Sampaio - “Amálgama” - é bastante adequada, mas questiono sua noção demasiado enrijecida de “geração”. Aliás, ponho em questionamento mesmo a noção de Literatura Piauiense. Machado de Assis pertence a algo como a Literatura Carioca? Oswald de Andrade é autor da Literatura Paulista e Guimarães Rosa da Literatura Mineira? Se forem, aceito que O.G. Rego de Carvalho pertença à Literatura Piauiense. Não tenho a pretensão, neste espaço, de pôr em cheque uma noção tão consagrada, mas gostaria de lançar algumas questões incômodas ( ao menos para mim e para alguns amigos) sobre a “Literatura Piauiense”: 1º) Essa noção não existe desde o início dos tempos; ela é criada num determinado momento (séc. XIX) para cumprir algum fim ideológico (Promover uma literatura voltada para uma “essência” piauiense? Valorizar os piauienses não reconhecidos no eixo Rio-São Paulo? Ou seria um fim menos nobre? ); 2º) A partir do momento que essa noção é aceita, ela começa a produzir seus efeitos de verdades e cria um campo discursivo que é nosso mas que também nos isola. Nos recusamos, por exemplo, a estudar Gonçalves Dias porque ele nasceu ... a 100 km do território piauiense! Por outro lado, estudamos um poeta da mesma período literário de Gonçalves, porém infinitamente inferior a ele, como Lycurgo Paiva. 3º) Com o tempo, passamos a julgar a “Literatura Piauiense” como se se tratasse de um universo autotélico. 4º) Além disso, as pessoas que buscam criar um conceito de Literatura Piauiense se vêem numa aporia: se o critério usado definir a literatura piauiense for essencialista, isto é, se se define que literatura piauiense é aquela que busca representar a “essência” piauiense - a piauiensidade, como alguns chamam - , Mário Faustino e toda uma gama de poemas intimistas, metafísicos e meditativos estão fora do conceito. Por outro lado, se alguém tiver peito para usar o critério cruamente geográfico e disser que literatura piauiense é aquela feita por pessoas que nasceram no Piauí, autores como o cearense Hardi Filho, o maranhense Rubervam du Nascimento e o baiano Ranieri Ribas, entre outros, deverão ficar de fora. Muitos historiadores de nossa literatura ignoram esse problema. Dois não ignoraram: Miguel de Moura, que por coerência não incluiu Mário Faustino no seu “Literatura do Piauí” e Aírton Sampaio (parece-me que em co-autoria com Paulo Machado), que inventou a denominação “Literatura Brasileira de Expressão Piauiense” para lembrar, creio eu, que a “Literatura Piauiense” não se constitui num universo autotélico. O problema é que o próprio Sampaio, com sua classificação fundada em gerações, esquece-se disso e fala/escreve como se o “de Expressão Piauiense” fosse auto-suficiente. Somos, de fato, massacrados pela hegemonia do eixo Rio-São Paulo, mas não creio que a noção de Literatura Piauiense vá resolver alguma coisa.

EPS - Onde a confluência da ética e da estética em sua produção/vida literária?

WL - Não adianta encher de boas intenções uma forma flácida, desgastada. Veja o caso de Thiago de Mello: um péssimo poeta dono de um profundo senso humanitário. A retórica de Thiago é de péssimo gosto, seu estreito repertório de “truques” e metáforas é tão previsível quanto fim de telenovela. No meu caso, e acho que de outros escritores, essa aliança entre ética e estética é impensada, natural. Não procuro ser ético no sentido estreito do termo, não quero dar lição de moral em ninguém. Minha poesia nasce mais de rasgos epifânicos, de estranhamentos e de espantos do que de uma demanda social (como fazia Maicovski) ou da necessidade de ser porta-voz de uma boa nova (como fazia Whitman). No Piauí, por exemplo, H. Dobal é um poeta que fala costumeiramente - para usar uma expressão de Adorno - “na perspectiva de um sujeito coletivo”; isso significa dizer que no projeto estético de Dobal está colado a um compromisso ético, que, aliás, antes impulsiona sua poética do que a emperra. Minha poesia, até agora, fala de uma verdade com “v” minúsculo; só afirma hesitações; só oferece perplexidades, quando não as portas fechadas. Aliás, a minha geração é, em geral, um pouco assim: pós-utópica, cética, espiritualmente (diria com mais precisão: nietzschianamente) aristocrática ... a maioria são professores zelosos de sua função e formação, compromissados com a educação e com a literatura, mas vacinados contra rasgos condoreiros. Se você me permite a empolgação e a parcialidade, diria que o que mais admiro nessa geração, e que não é exclusivo dela, mas de toda geração que não debanda para o oportunismo hipócrita, é produzir sem pensar num telos, sem farisaísmos, sem a hipocrisia burguesa de quem dá a moeda pra dormir de consciência limpa: produzir porque é vocação, é algo que grita e que não se pode deixar de ouvir. Gostaria muito de acreditar nas palavras de Walter Benjamin, para quem a tendência de uma obra literária só pode ser correta do ponto de vista ético-político se também o for do ponto de vista estético. É pena que a história literária registre alguns casos que não corroboram com a predição de Benjamin. No entanto, não acho que devamos invalidar por completo esse pensamento benjaminiano.

EPS - Como se dá o seu processo criativo?

WL - Houve uma época em que , sob a influência de Drummond, Cabral e dos concretos, eu desdenhava da inspiração, confundindo-a com preguiça e improviso; nesta época, meu processo criativo era demorado e artificial e meus poemas eram muito cerebrais, como bem exemplifica a parte de “Balé de Pedras” intitulada “manhã-museu”. Hoje, graças à influência dos poetas da tradição hispânica, como Vicente Huidobro e Octavio Paz, além de Hilda Hilst e do português Herberto Hélder - esse, na minha opinião, o maior poeta vivo dos que escrevem em língua portuguesa - não desdenho da inspiração, embora não a coloque no mesmo pedestal dos místicos e dos surrealistas. Escrevo agora com menos freqüência, mas quando escrevo geralmente fica; o poema já saí semi-pronto. Justamente o contrário de antes, quando eu escrevia muito, aproveitava pouco e a distância entre a primeira e a última versão de um poema meu era abismal. A condenação da inspiração, tão comum entre nós, que não queremos nos despir do manto pesado do positivismo, gerou na poesia brasileira uma certa falta de fôlego, uma contenção medrosa que nem sempre corresponde à capacidade de condensar idéias e imagens, uma equivocada apologia da concisão, como se bastasse a um poema ser conciso para ser bom. Isso contribuiu para banir poetas de peso como Jorge de Lima. Não estou aqui defendendo que poemas longos e inspirados são necessariamente bons; estou apenas me contrapondo à idéia de que a qualidade estética de uma obra se subordine à extensão da mesma. Octavio Paz estava certo quando observou que chamar a inspiração de descuido, de amor pelo improviso, de facilidade e coisas como tais não passa muitas vezes de “uma transferência abusiva de certas noções da moral burguesa para o campo da estética”. Só não quero que depois dessa minha defesa da inspiração me chamem de afiliado ou apologeta da estética do gênio. Afirmar a inspiração não é afirmar que ela seja exclusividade de gênios privilegiados, nem que ela comande, que ela tome de assalto o indefeso poeta. O jogo dialético entre “transpiração” e inspiração, entre criação e representação, é inerente à criação poética.

EPS - Como crítico literário, com interessantes artigos publicados na imprensa local, como você situa a sua produção literária numa auto-análise crítica?

WL - Penso que quando se escreve algo denso e inovador, não é narcisismo comentar o processo criativo ou dar dicas para se compreender um texto, como é o caso de Mallarmé, que tentou (e em parte conseguiu) explicar-nos “Um lance de dados” (“Un Coup de dés”). Agora, um reles poeta, um quase neófito, fazer isso, paciência. Não creio que jovens poetas, como eu, devam abafar a consciência auto-crítica; ela deve ser aguçada, treinada na leitura, na tradução e na crítica de outros poetas - mas sair por aí se explicando, antes de muitos anos de experiência e de uma obra reconhecidamente de valor, é prova de um narcisismo tão barato quanto o dos atores que vão se confessar e chorar em público no Faustão aos domingos. Manoel Bandeira escreveu uma “Apresentação da Poesia Brasileira”, mas não se auto-analisou, nem sequer incluiu na antologia do final deste livro um poema seu. Esse foi mais um dos acertos exemplares de Bandeira.

EPS - Cite 10 autores indispensáveis em todos os tempos e épocas para a compreensão, percepção e degustação do fenômeno literário no Piauí, no Brasil e no mundo.

WL - O tipo de lista que você me pede é uma lista paidêutica, isto é, de autores importantes para a formação espiritual, para a educação (no caso literária) de alguém. Acho que esse tipo de lista já foi bem realizada (embora, claro, todas sejam criticáveis) e muitos nomes necessariamente se repetem: Homero, Shakespeare, Cervantes... Sugeriria a um leitor que tem interesse nestas listas que procurasse os trabalhos de Erich Auerbach (“Mimesis”), de Ezra Pound (“ABC da Literatura” e “A Arte da Poesia”),de Harold Bloom (“O Cânone Ocidental”, entre outros) e de Mário Faustino (“Artesanatos de Poesia”).

EPS - Precisa dizer algo de dentro de si ainda não dito?

WL - Certamente. Sei que há uma parte de mim que quer se dizer na expressão cinematográfica. Essa parte de mim, pelo jeito, vai morrer calada. Mas isso não me entristece: Bergman, Tarcovski, Fellini, Buñuel, Chapplin, Glauber e Korosawa já falaram por essa minha parte, disseram tudo que ela diria e muito, muito mais.

EPS - Como você define o homem-poeta em seu tempo/espaço de vida?

WL - Não comungo com a idéia de que seja necessária, como gostariam os românticos e os surrealistas, a fusão entre vida e obra, entre o homem e o poeta, daí peço-lhe licença para questionar a expressão homem-poeta.. Muitas vezes, mesmo poetas que aparentemente indiferenciam vida e obra, homem e poeta, estão apenas nos confundindo. Um caso exemplar, neste sentido, é o de Walt Whitman. Concordo com Fernando Pessoa: poetar é fingir. O lirismo sincero, ou que se diz sincero, em geral engendra má poesia. Em conversa informal, alguém que prefiro resguardar o nome disse-me, em tom de reprovação, que Rubervam du Nascimento era contraditório e jamais seria vanguardista porque fazia poesia de compromisso social, mas trabalhava em emprego federal. Perguntei então a essa pessoa, em tom de ironia, se ela queria que Rubervam parasse de poetar ou largasse o emprego e virasse mendigo para ser coerente. O poeta tem todo direito de viver a experiência do Outro, de criar personas. Com isso, no entanto, não estou querendo dizer que não haja poetas hipócritas, mas assinalo que uma coisa é projetar-se na experiência do outro e outra coisa é usar da poesia como trampolim para apresentar-se como o homem sensível, o homem culto, o homem crítico. No Piauí, essa prática trampolineira é mais que comum; vou me poupar de citar nomes porque pessoas desse naipe devem cair no esquecimento o quanto antes. Bom, mas respondendo a sua pergunta de forma objetiva, diria que o poeta é uma das testemunhas privilegiadas das crises metafísicas e das tensões sociais que vivemos, porque em geral o poeta (o artista) assume o “coração selvagem” da vida de uma forma que boa parte das pessoas não se arriscariam; os grandes poetas (os grandes artistas) são, como queria Pound, “antenas da raça”. Infelizmente, a humanidade demora a ouvi-los, ou nem os ouvem.

EPS - Quais são as suas influências/confluências estético-literárias?

WL - Esse tipo de pergunta é chata de responder porque ou você faz uma lista modesta e comete injustiças ou faz uma lista enorme e fica parecendo um esnobe. Então, para evitar esse tipo de coisa, vou tomar a liberdade de restringir a sua pergunta e indicar apenas minhas influências mais recentes, isto é, os últimos autores que tenho lido e que tenho tentado absorver algo. Em resumo, são esses: Herberto Hélder, Hilda Hilst, Nauro Machado, Emily Dinckson, Borges, Octavio Paz. Você pode estar estranhando o fato de eu não ter posto o nome de H. Dobal, já que ele é o autor de minha dissertação de mestrado, que está em fase de acabamento. A escolha de Dobal como tema de minha dissertação deu-se, entre outros motivos mais óbvios, como a excelência e a singularidade da poesia dobalina, pelo fato de eu não me identificar - o que não impede uma descomedida admiração - com pontos importantes da proposta estética desse grande poeta; assim, posso fazer um trabalho mais próximo das exigências “científicas” que a academia universitária me cobra. Não seria fácil para mim domar a paixão se eu fosse escrever sobre Hélder, ou sobre Borges, ou sobre Da Costa e Silva, que marcou profundamente minha época de estudante do antigo segundo grau.

EPS - Parece que as pessoas, comumente, não vêem da melhor forma possível o “novo” nas artes em geral. Por que isso acontece? Qual a sua opinião sobre a inovação na poesia e nas artes? Há perigos na busca constante por inovação? Você acha que esta tendência se acentuou nos últimos anos? Você considera inovadora a sua poesia?

WL - Você me faz cinco perguntas complexas. À primeira, creio que cabe múltiplas explicações, que vão desde a fobia do novo que muitas pessoas têm até a consciência de que o novo não é necessariamente o melhor. Pessoalmente, creio que uma das heranças mais nefastas deixadas pelas vanguardas foi a idéia de um progresso contínuo nas artes. Essa idéia equivocada já fora solapada por Baudelaire em sua “Exposição Universal (1855)”. Neste texto capital, entre passagens mais analíticas, Baudelaire fecha: “Transportada para a ordem da imaginação, a idéia de progresso (houve audaciosos e fanáticos em lógica que tentaram fazê-lo) se estabelece com um absurdo gigantesco, com um grotesco que beira o terrível”. Veja o que aconteceu com o Concretismo: os concretistas tentaram reconstituir a história da poesia de modo que tudo fosse desaguar neles. É neste ponto que chegamos pela via da obsessão pelo novo e pela apologia do progresso na arte: no unicismo estético que exclui autoritariamente qualquer voz dissidente. Um amigo meu de São Paulo, o poeta e crítico Rodrigo Petronio tratou dessa questão de forma desmitificadora : “Na medida em que você vive em uma sociedade totalmente regulada pelo dinheiro e a livre-concorrência, a própria defesa do novo, que a arte apresenta falsa e demagogicamente como uma atitude revolucionária, está inserida nesse mecanismo mercadológico prévio e nessa mentalidade empresarial: o artista, quando se diz radical ou qualquer bobagem do tipo, está simplesmente criando uma imagem consumível de si mesmo, e dizendo, por contraste, que os outros não são tão inovadores quanto ele e, portanto, tão dignos de freqüentar as prateleiras das livrarias e as resenhas dos jornais. De transgressão isso não tem nada”. Gosto de muitos artistas ditos vanguardistas - de cummings, de Haroldo de Campos (“Galáxias”), do cineasta M. Antonioni ...-, mas não porque eles estejam “à frente”. Augusto de Campos (ou foi Haroldo?) escreveu certa vez, num jornal, que os artistas ou são de vanguarda ou de retaguarda. Confesso que poucas vezes em minha vida vi uma classificação tão maniqueísta e excludente. Há poetas que antes de aprender o bê-a-bá já querem sair por aí revolucionando a arte poética. Aqui em nosso estado, por exemplo, há um monte de poetas que fizeram ou fazem poemas concretos sem terem absorvido 5% do programa estético do Concretismo. Veja a diferença entre estes e um artista de consciência e responsabilidade como Mário Faustino, que primeiro apreendeu a dominar as formas fixas para depois explodir com elas. Em relação à minha poesia, não vejo nada de inovador nela, ela nada acrescenta: algum ponto mais notável nela é pura imitação, não no sentindo pejorativo do termo, mas no sentido latino de imitatio, isto é, de busca de espelhar-se nos mestres. Enfim, inovar a poesia da noite para o dia é ilusão de vanguardista autoritário ou de poeta ingênuo que não leu ainda suficientemente; a maior parte dos ditos inovadores ou repete sem ter consciência ou produz aberrações, curiosidades lingüísticas e não poemas, que só se sustentam o mais das vezes à custa de uma enxurrada de teoria. Camões não envelheceu; mas a maioria dos poemas das vanguardas luso-brasileiras do século XX já estão datados. Prefiro a humildade de aprender imitando à ingenuidade de buscar ser original. O crítico russo Bahktin foi um dos pioneiros a nos ensinar que todo texto é um vasto diálogo; só mesmo muita ingenuidade leva uma pessoa a imaginar que alguém crie obras ex nihilo. Enfim, na minha visão do fenômeno poético, não interessam noções como inovação, progresso da arte e originalidade.

EPS - A poesia é útil? Para que serve a literatura num país como o Brasil, hoje, ou no mundo atual?

WL - Penso, como Aristóteles, que a poesia, como mímesis, não apenas reproduz o mundo mas o alarga, promovendo um conhecimento lúdico. Penso também, como o formalista russo Chklovski, que a poesia renova nossa percepção das coisas e dos homens (o Piauí, para mim, nunca mais será o mesmo depois de ter lido Dobal). Penso ainda, como muitos poetas pensaram, que a saúde do idioma depende em algum grau da poesia. Poderia acrescentar outras coisas: dizer que a poesia aguça o auto-conhecimento; que a poesia, como queriam alguns românticos alemães, é uma religião superior, não carcomida por dogmas e engradada por uma teologia...enfim, atire-me a primeira pedra o poeta que nunca sentiu a tentação de imitar Shelley e escrever uma Defence of Poetry. Agora, discordo dos que praticam e/ou entendem a poesia como um instrumento imediato de intervenção e admiram na poesia exatamente o que não é poético. Isso é reduzir o poético ao ideológico; é usar (frise-se bem: usar) a poesia como pretexto para guerras político-culturais. Essa é a conduta do modismo da atualidade, os estudos culturais.

EPS - No final de 2003 houve, na Bahia, o II Colóquio Internacional para discutir “A Crise na Poesia” do Brasil, Europa e outras partes do mundo. Você considera que a poesia está em crise?. Como você vê a poesia hoje?

WL - Sem dúvida. E os motivos são tantos que certamente nem nesse colóquio devem ter abordado tudo. O conflito entre os valores da poesia e os valores da sociedade racional-industrial, o fato de a poesia ter se debandado para um hermetismo formalista... enfim. A poesia hoje é quase uma seita, que busca resistir contra todo tipo de vicissitude. Apesar de tanto desestímulo, há muitos praticantes e a cena é plural, mas a maioria contenta-se com a diluição fácil, especialmente com a diluição do concretismo e do coloquialismo que vem de Bandeira e de Oswald. Fora os grandes poetas já veteranos (H. Dobal, Nauro Machado, Ferreira Gullar, Manoel de Barros, Adélia Prado, Carlos Nejar, Gerardo Melo Mourão), há alguns novos ou pouco conhecidos que eu aprecio: Contador Borges, Alckmar Luiz, Rodrigo Petronio, Cláudia Roquette-Pinto, Fabrício Carpinejar, Donizete Galvão e Cláudio Daniel. No Piauí, caso queiramos referirmos apenas aos autores entronizados nessa instituição chamada literatura piauiense, acho que o nível da poesia aumentará quando destronarmos Torquato Neto (o que não vai acontecer tão cedo) e olharmos para as heranças mais ricas e complexas de Mário Faustino e H. Dobal. Entre os autores piauienses da minha geração, creio que boas realizações se podem esperar de Adriano Lobão (entre o primeiro e o segundo livro ele deu um bom salto qualitativo) e de Ranieri Ribas (repudio a concepção estética em que se assenta seu livro de estréia, mas não posso negar que , dentro dela, o autor foi longe).

EPS - Há algum poema que te marcou ao longo da vida?

WL - Ao longo da vida, não. A coisa muda. Na infância, em Valença (PI), tomei gosto pela poesia depois de um amigo me ler o cordel “A Chegada de Lampião no Inferno”; há dois anos fui reler esse cordel mais achei-o sorrateiramente racista, o que fez vazar, para mim, boa parte do humor nele contido. Houve aqueles que marcaram a adolescência e que a gente sempre lembra: “Evocação do Recife”, de Manoel Bandeira; umas sátiras de Gregório de Matos; “Água Sexual”, de Pablo Neruda; sonetos de antologias, como os de Camões, Bocage e Da Costa e Silva até Vinícius e Flor Bela; um soneto de Góngora, enfim... Cada momento da vida temos os poemas que nos marcam. Desses poetas que me marcaram quando, aos 15 anos, vim para Teresina e ,por falta de dinheiro e de amigos, tinha de me fechar no final de semana lendo-os, muitos não me encantam mais, e um continua intacto, supremo: Camões. Hoje mesmo reli, depois de um bom tempo, com grande satisfação, o belíssimo “Sôbolos rios que vão...”, uma aula de poesia em todos os sentidos.

Elias Paz e Silva
Enviado por Elias Paz e Silva em 22/09/2007
Código do texto: T663889
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