Entrevista com o poeta Laerte Magalhães

Elias Paz e Silva - Laerte, formiga na pele o poema ou nasce tranqüilo como riacho a brotar do interior?

Laerte Magalhães – Comichão de formigas é que nem fogo de monturo, nunca se acaba nem fica pouco, no corpo inteiro. Penso que nem o nascer de um riacho é tranqüilo. Talvez a poesia/musica de Gil fale um pouco do que passa pela pele no nascimento das coisas. Diz ele “morrer deve ser tão frio quanto na hora do parto”. Do frio na pele ao frio na barriga, tudo é frio e suspense.

Elias Paz e Silva - Rima, rima rica, conciliar ciência e poesia?

Laerte Magalhães – Entre uma coisa e outra, paciência. As rimas se impõem ou se depõem, ricas e/ou pobres. As dúvidas do cientista conduzem a reflexão para um lado. As inquietações do poeta, para outro. Em cada um, uma infinidade de possibilidades. Talvez este seja um traço da clivagem que reapresenta o homem pós-moderno. Se é que isto existe.

Elias Paz e Silva - A tradição oral da poesia do povão intercepta a reflexão poética ou é um veio vindo de sangues ancestrais?

Laerte Magalhães – Esta é uma pergunta instigante. Em trabalho recente, publicado numa coletânea (Comunicação – Outros olhares), pela Editora de Universidade Federal do Maranhão, eu discuto a força com que a cultura da origem se impõe como traço de resistência em cada um de nós. Esse trabalho resulta de uma entrevista que eu e outros companheiros de um núcleo de pesquisas fizemos com um nordestino que mora no Rio de Janeiro há 40 anos. É líder comunitário e tem forte sotaque carioca. No entanto, percebemos na sua argumentação sobre a questão da dengue, a presença da cultura nordestina, mais ainda, da literatura de cordel. Partindo desta experiência, devo admitir que deva muito da poesia que eu faço ao que vivenciei, no interior do Ceará, como leitor de cordéis ou como admirador dos repentes de cantadores, nas feiras livres e nos terreiros da vida. Ou, ainda, como ouvinte de rádio onde Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Ari Lobo, Nelson Gonçalves e muitos outros derramavam suas canções.

Elias Paz e Silva - Ciência e poesia, quem triunfaria?

Laerte Magalhães – Em nenhuma há triunfo, o que há são embates constantes e desafios permanentes. Um dos capítulos da minha tese tem como título “Todo ponto de chegada é, antes, um lugar de partida”. É assim que eu vejo, como nos ensina Bakhtin, somos um projeto em processo, sempre. A idéia de triunfo pode nos conduzir a sensação de vitória como realização. Na verdade, cada etapa cumprida, como o livro de poesia que lanço agora, se constitui numa estação transitória. Ou, quem sabe, mais uma fratura exposta sobre a qual podem pousar golpes de lâminas ferinas e/ou varejeiras afoitas com suas larvas incandescentes. Do mesmo modo, o livro que eu lancei ou os artigos com que tenho participado de coletâneas, em algumas oportunidades, na área da comunicação, representam segmentos de um projeto sempre inacabado. Tento conduzir cada uma das minhas atividades como se fosse a única e não estimulo disputa, embora eu perceba que, quando dedico mais tempo à pesquisa, à produção de artigos, deixo um pouco de lado a produção poética. No entanto, não é estranho que em meio a uma leitura exaustiva, pare de repente para escrever um poema de última hora.

Elias Paz e Silva - Fazer poemas é vocação, técnica, pé no chão e cabeça no céu?

Laerte Magalhães – Diz Heidegger que a origem do pensar poético é a mesma do pensar filosófico. Aliás, por falar em Heidegger, tem um trecho de um livrinho dele em que discorre sobre “Língua de tradição e língua técnica” onde ele fala de certa intimação que o pesquisador sofre ao buscar suas respostas. Ele diz o seguinte: “a energia encerrada na natureza é captada: o que é captado é transformado, o que é transformado é intensificado, o que é intensificado é armazenado, o que é armazenado é distribuído”. Penso que é mais ou menos assim que funciona: estamos atentos ao que nos oferece a natureza, a cultura, o mundo. Este estado de atenção nos possibilita perceber coisas simples, coisas aparentemente bobas e as desnaturalizá-las, tomando-as pelo seu sumo poético. Ao mesmo tempo, há a nossa disponibilidade que pode ser dada como inspiração, dom, vocação etc., mas há também o trabalho de ir aprimorando as primeiras impressões a partir de certo gosto, de certos filtros, de horizontes de expectativas, que só é possível pela técnica. Isto não quer dizer que sempre consigamos os melhores resultados. Depois de tudo processado, jogamos ao mundo, distribuímos para que os leitores tomem posse, tomem conta.

Elias Paz e Silva - Que rios brotam dentro de nós?

Laerte Magalhães – Os rios que brotam das brotas, das grotas e de muitas outras lorotas. Os rios brotam de si mesmos ou, ainda, de outros rios: Parnaíba e Poti, por exemplo, brotam na minha poesia direto das minhas memórias de infância, do rio Curu, Ceará. É porque não conseguem se sustentar entre as margens que, inquietos, os rios se vão, como digo no poema, “à margem de nós, passando”. São seus trejeitos felinos que nos espantam: ora são mansos e macios, ora são bravos e ameaçadores. Ora nos alimentam, ora nos tomam o fôlego. Por vezes são velhos monges, noutras tangem ameaças. Unem povos, separam cidades. Não é à-toa que os rios buscam o mar. Os encantamentos, as fontes, as sortes se assemelham. Lembro que certa feita comparei sua poesia com um rio que deságua no mar e prossegue em busca do céu. Citei Quintana que diz que “um bom poema sempre leva a Deus”.

Elias Paz e Silva - De Cian a Um Ponto Fora da Curva em que a vida amadureceu o poeta-professor?

Laerte Magalhães – Não há maturidade possível. Maturidade é um equívoco, uma meta, talvez inalcançável.

Há, certamente, as marcas da experiência de um tempo em cada uma destas duas âncoras que marcam a minha trajetória. Em cada um destes momentos o que emerge é a ansiedade, a dúvida, o frio na barriga de que falei anteriormente. As certezas soçobram.

Elias Paz e Silva - Fanopéia, logopéia, melopéia – é viva a tua palavra na ilustração dos sentidos soltos à vida-palavra?

Laerte Magalhães – No texto de apresentação de Cian – Sobre Todas as Coisas, Gilmar de Carvalho faz referência à musicalidade de minha poesia. Antes disto eu não tinha qualquer preocupação com este aspecto. Depois, vieram os parceiros (Gilvan Santos, Pingo de Fortaleza, Chagas Vale, Machado Júnior, Aurélio Melo) e confirmaram a percepção de Gilmar. A partir de então, passei a trabalhar mais o poema com esta possibilidade. Não me incluo entre aqueles que consideram que a poesia não deve se associar a imagens ou a musica para se expressar. Ritmo e proposições vêm por conta dos temários poéticos, da poeticidade.

Elias Paz e Silva - Balacondê, quem quiser vá se esconder? Onde o menino traquino do interior cearense se interpõe ao adulto avesso ao “nada”?

Laerte Magalhães – Pois é, por isto que antes eu falei da impossibilidade de maturação. A imaturidade da criança, sua curiosidade, suas peraltices assomam e assumem lugares, inadvertidamente. Personagens adultas devassas conflitam com personagens infantis travessas. Penso que o traço-de-união desta questão é o humor. Traço que esgarça em fronteiras e interseções que não servem para delimitar ou separar, mas para unir e confundir.

Elias Paz e Silva - Publicista, a tua arte arde nos ocasos e acasos da existência? Onde a essência de sua poesia?

Laerte Magalhães – A publicidade é uma das minhas paixões. Acredito que este é um campo em que muitas fronteiras outras se estabelecem e se apresentam: os conflitos ideológicos são sublimados pela argúcia da palavra a serviço de uma idéia. Este é um ponto também interessante, a sedução do pensamento, das idéias que aproximam os anúncios publicitários e poéticos.

Elias Paz e Silva - “Qual é o sentido de escrever poesia hoje, numa sociedade regida pela mídia e pelo mercado?”

Laerte Magalhães – Escrever poesia é inevitável em qualquer época. Não há quem resista a uma vontade poética desejando vir à tona. Não tenho pensado sobre isto, mas me parece que ninguém escreve poesia por querer. Mesmo os chamados poetas cerebrais são impelidos a escrever seus poemas a despeito de sua vontade. Escrever é, talvez, um ato mais comum. Publicizar me parece mais difícil. Embora nem sempre o que se escreve em poesia sejam experiências de vida – a poesia não fala necessariamente sobre acontecimentos de realidade, não é notícia de jornal e nem matéria de confessionário – há sempre o temor de uma exposição pública, isto é limitador, de certa maneira. Penso que um poema é muito mais um espelho para a alma do leitor do que o relato ou a revelação de um sentimento íntimo do poeta. Pode ser que o leitor não se reconheça e não goste, mas se não houver esta identificação, o restante, como a forma poética, como trabalho, técnica de elaboração e esmero com os recursos de linguagem, perde o sentido.

Elias Paz e Silva - “Dentro da tradição da poesia em língua portuguesa, com quais autores você sente mais afinidade?”

Laerte Magalhães – São muitos e diversos. Desde o angolano, Agostinho Neto, ao português, Fernando Pessoa, passando pelos brasileiros, Mário Quintana, Cecília Meireles, Murilo Mendes; os concretistas, Haroldo e Augusto de Campos, além de outros, em várias filiações como Ferreira Gular, Torquato Neto, Da Costa e Silva, Elias Paz, Mário Faustino, Carlos Drummond de Andrade, Osvald De Andrade, Rosemberg Cariry, Osvaldo Barroso, Murilo Mendes, Ledo Ivo, Cineas Santos, Paulo Machado, Gonçalves Dias, Castro Alves, Olavo Bilac, Casimiro de Abreu, Cego Aderaldo, Zé Limeira, Patativa do Assaré, Belchior, Doga, enfim, uma lista imensa, eu poderia citar. Finalizo mencionando Manuel Bandeira, que foi, na verdade, com quem tive o primeiro contato com a poesia: o poema Trem de Ferro, num destes livros de leitura, na sala de aula.

Elias Paz e Silva - “Como você definiria sua poesia?”

Laerte Magalhães – Poesia é uma destas manifestações da alma que, para mim, não tem definição exata. Pedro Lira, um poeta e ensaísta cearense diz que a poesia se sustenta no tripé “beleza, grandeza e originalidade”. Cada um destes conceitos tem uma elasticidade imensa, dá para preencher páginas e páginas de teoria. Aliás, a Teoria literária está ai para mostrar que se tem discutido a este respeito e se tem escrito obras inteiras sem esgotá-los. Outra discussão é se a poesia resultaria de inspiração ou de transpiração. Se não estou enganado, foi Cacaso quem escreveu uma vez que, “sem inspiração não há Dante que adiante”. A idéia da inspiração tem para mim uma relação muito próxima com a escrita mediúnica, com a psicografia. E eu reconheço que algumas vezes aconteceu de eu escrever um poema de primeira, o texto vem pronto. Outras, de acordar no meio da noite com um poema pedindo para ser escrito, se não levanto e não escrevo naquele momento, no dia seguinte não lembro mais. Sei que isto não ocorre somente comigo, já ouvi alguns poetas falando a este respeito. No entanto, há poemas que levo meses mexendo, refazendo e, há mesmo os que nunca consigo dar uma forma final. Alguns eu abandono definitivamente, outros continuo insistindo até hoje. Quer dizer, tanto produzo sob inspiração, digamos, quanto trabalho certos poemas à exaustão.

Elias Paz e Silva - O que a poesia tem em comum com o jornalismo?

Laerte Magalhães – Contam que os cordéis, num tempo remoto, eram utilizados por mascates e menestréis para noticiar pelas regiões interioranas o que acontecia nos centros urbanos. Fora disto, não vejo outra relação. O jornalismo adota cada vez mais fortemente o viés do trágico, do que causa comoção pelo horror ou pelo terror. Para mim esta abordagem é desprovida de poeticidade. No entanto, as revistas semanais, vez ou outra, utilizam um título como referência a uma obra literária e, por vezes, até, a versos, portanto, à poesia. Lembro, por exemplo, que a revista Veja, numa capa antológica, em que criticava o empenho pessoal de FHC para aprovar no Congresso nacional o projeto que permitia a sua reeleição, saiu com uma paráfrase de um poema do Drummond em que interpelava o presidente diante de seu duplo no espelho, após ter o referido projeto aprovado, nas palavras de Verón, uma metáfora visual como antecipação de sua continuidade no cargo de presidente. Nesta capa destaca-se o título interpelando-o “E agora, Fernando?”

Elias Paz e Silva - “Você é um poeta dionisíaco?”

Laerte Magalhães – A minha embriaguez é de outra ordem. Embora eu possa perceber em mim um lado dionisíaco, no sentido de me permitir paixões incontroláveis, percebo também um lado apolíneo. A racionalidade é um componente muito presente em algumas das minhas decisões. Talvez isto tenha a ver com a pergunta anterior que fazia relação entre a minha prática como pesquisador e a de poeta. O primeiro carece mais da racionalidade, mas não apenas dela. O segundo, da sensibilidade, mas, também, não apenas.

Elias Paz e Silva - Como você considera a atual poesia brasileira e o panorama literário piauiense?

Laerte Magalhães – Se já não dou conta do panorama piauiense, meu caro amigo, imagine do panorama brasileiro. Sem dúvida, Manoel de Barros é o poeta de outras paragens que nos chega com mais gosto. Imagino que outros existam por este Brasil imenso tão bons quanto, mas, infelizmente, não os conhecemos ainda. Noutra linha, gosto muito do trabalho poético do Arnaldo Antunes. No Piauí, além dos que citei naquela lista, há novidades de grande valor, para mim: Wanderson e o Cláudio, só para citar dois. Na referida lista, não mencionei o nome da Graça Vilhena e nem do William Soares. Também não constituem novidade, ela e ele têm livros publicados e são, como eu entendo, grandes poetas brasileiros.

Elias Paz e Silva
Enviado por Elias Paz e Silva em 29/09/2007
Reeditado em 29/10/2007
Código do texto: T673934
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