ZUENIR VENTURA - 1968

[Entrevista concedida à Revista Època no início do ano. Publico aqui uma versão editada da mesma]

Sobre a mesa do autor, os livros que servem de referência para o novo trabalho vão desde 1968: o ano que abalou o mundo, do pesquisador americano Mark Kurlansky, até a antologia do Planeta Diário. A caixa 1968 terminou? deve chegar às livrarias entre março e abril [NR – já lançada, vide foto abaixo] pela Editora Planeta e trará, além do livro original 1968: o ano que não terminou, o segundo livro, com a interrogação que dá nome ao box e entrevistas de Fernando Henrique Cardoso, Fernando Gabeira e José Dirceu, entre outros.


ÉPOCA - Fale sobre 1968?
Ventura
- Foi um ano muito especial. À medida que passa o tempo, você tem certeza de que foi um momento especial. Um momento de uma sintonia mágica, misteriosa, que fez as coisas acontecerem ao mesmo tempo em países de regimes diferentes. Aconteceu na Tchecoslováquia, na Polônia, no Japão, na Alemanha, na França e no Brasil, com algumas características únicas. Foi um movimento planetário. Eu diria hoje um movimento globalizante. Acho que foi a primeira manifestação da globalização antes mesmo de a globalização existir. É um mistério na história, ninguém conseguiu responder até hoje como começou, por que começou naquele ano. Estou aqui com um livro sobre o período (1968: o ano que abalou o mundo) que começa dizendo: nunca houve um ano como 1968 e é improvável que volte a haver. A resposta a essa questão, por que aconteceu naquele momento, ninguém dá. Os sociólogos dizem vai precisar de vários anos, muitos anos, para que se entenda exatamente o que aconteceu.

ÉPOCA - Os protestos contra a ditadura, o vanguardismo estético e a irreverência comportamental transformaram mesmo o mundo?
Ventura
- Do ponto de vista político, essa geração, essa garotada, queria mudar o mundo, achava que se podia mudar tudo através da ruptura, da revolução. Acreditavam que podiam fazer a revolução política. A ironia da história é que eles não fizeram a revolução política, mas acabaram fazendo uma revolução cultural. Realmente eles mudaram os costumes, mudaram os hábitos, mudaram a maneira de pensar, a maneira de ser, os valores. Quando você olha para hoje, muitas das conquistas da modernidade foram gestadas ou nasceram em 68. Movimentos como o ecológico, o feminista, o gay, o negro, nasceram em 68 ou adquiriram uma importância muito grande nesse momento. Do ponto de vista do comportamento, o legado de 1968 é inegável. Claro que isso está associado, por exemplo, ao avanço da ciência. Uma dessas conquistas mais significativas é a da pílula anticoncepcional, que não nasceu em 1968, mas que se expandiu pelos campi das universidades neste ano. E ela foi muito responsável pela revolução sexual, que durou até pelo menos a chegada da Aids, que foi uma espécie de contra-revolução.

ÉPOCA - Que balanço pode ser feito de positivo e negativo?
Ventura
- Há hoje duas maneiras de ver 1968, a apologética, de dizer que foi tudo maravilhoso, que evidentemente a gente sabe que não; e outra maneira, de rejeitar 1968 com a mesma radicalidade com que o movimento surgiu. Na França, o Sarkozy disse que ia acabar com o projeto de 1968, mas tem no governo o que eles chamam de herdeiros de 68. Então não dá para você ver de uma maneira maniqueísta, como se via o mundo naquela época. O mundo estava dividido entre o bem e o mal, "nós estamos do lado do bem e quem não estiver do nosso lado está do lado do mal". Essa herança de 68 é vista de um jeito apologético e você encontra argumentos para mostrar que muita coisa boa aconteceu, como por exemplo a valorização das minorias, a preocupação com o outro, os movimentos coletivos, a generosidade, a entrega a uma causa a ponto de você arriscar a vida por ela, a ética na política, a paixão pela causa pública. Os valores de 68 são inestimáveis até hoje. Mas por outro lado houve o que chamo de degeneração de 68, um desvirtuamento de algumas coisas que naquele momento eram positivas. As drogas, por exemplo, naquele momento acreditava-se que eram um instrumento de ampliação dos horizontes, de conhecimento, de avanço da mente. Hoje as drogas são um instrumento de morte, servem para matar. Acreditava-se numa violência edificante, revolucionária, uma violência do bem. Hoje se sabe que a violência não é um valor em si. Você tinha o voluntarismo, o "quem sabe faz a hora", essa coisa onipotente, uma certa arrogância e um certo autoritarismo. Isso hoje não tem mais sentido. Esse balanço tem que ser feito não à maneira de 68, que é do mal e do bem, do maniqueísmo. A ambigüidade hoje é uma categoria que deve ser levada em consideração, coisa que naquela época era considerada um defeito.

ÉPOCA - Quais foram as diferenças e semelhanças entre o movimento brasileiro e o que aconteceu no exterior?
Ventura
- No Brasil, há características parecidas com a da França, tanto que os militares achavam que o movimento era comandado de fora, que era comunista. Mal sabiam eles que o movimento era anti-comunista, anti-capitalista, era uma rebeldia anárquica. Tinha uma característica própria porque aqui se lutava contra uma ditadura, coisa que não acontecia na França. Aqui você tinha um inimigo de carne e osso, concreto, que era muito violento, que enfrentava com tanques, gás lacrimogênio.

ÉPOCA - Você concorda que a única herança é de caráter social?
Ventura
- Não só social como cultural também. Desde você poder usar o corte de cabelo que quiser - e estou falando de cabelo porque o cabelo era muito importante: o musical mais famoso se chamava "Hair" - desde você poder mostrar as pernas, usar mini-saia. De poder ter liberdade de escolher seu parceiro, se é uma mulher ou se é um homem. Não acho que seja só social, é sobretudo comportamental. Todas as conquistas de hoje, no vestir, no se comportar sexualmente, foram conquistas de 68.

ÉPOCA - Do ponto de vista político, o que mudou?
Ventura
- Houve mudanças, por exemplo, na esquerda. Depois de 68, a esquerda que era atrelada a Moscou, ao Partido Comunista, mudou. Não vamos esquecer que Moscou foi contra 68, que era uma espécie de desobediência aos dogmas do comunismo porque tinha uma dose de anarquismo. A esquerda se atualizou depois de 68. Eles rejeitavam Moscou, rejeitavam tanto o capitalismo quanto o comunismo. Essa relação autoritária na política e nos partidos teve um vento anárquico.

ÉPOCA - Era uma reação contra qualquer poder estabelecido...
Ventura
- Exatamente, contra qualquer poder. Era tudo contra o poder, não só político, mas contra o poder do marido sobre a mulher; o poder do professor sobre o aluno; do médico sobre o paciente. E o comunismo naquele momento era, para eles, um poder tão nocivo quanto o poder capitalista. A rejeição ao poder era uma das marcas. Isso acabou tendo reflexo tanto na esquerda quanto na direita.

ÉPOCA - As pessoas perderam a esperança depois dos anos 60. Será que não houve um recuo para preocupações puramente pessoais?
Ventura
- Os jovens hoje não querem saber de política mesmo. Como você vai convencer um menino desses que a política é importante se a política para ele é Brasília, Renan Calheiros, mensalão, essa coisa apodrecida que está aí? Eles estão interessados no bem-estar pessoal, neles mesmos. Contribui muito para isso a internet. Ali ele conversa com o mundo, tem a sensação de que pode fazer tudo sem sair por aí. Em qualquer conversa com o jovem, você percebe que ele está muito mais interessado nele mesmo, em seu prazer, do que no outro. Aquela característica de 68, de entrega, com assembléias e discussões coletivas, acabou. Você tem hoje um individualismo. Você tem hoje o mais poderoso instrumento de comunicação que o mundo já teve, que é a internet, e isso não serve para agregar. Serve muito para manifestar seus gostos, preferências, até para protestar, mas aquilo ali não é nunca transformado em ação, não tem conseqüência.



Caixa com os Livros de Zuenir Ventura.


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