Conto Nublar #042: VIAGEM INTRA-ESPELHAR

Ficção

Era uma bela tarde de outono de 2415. O frio era uma marca registrada naquele dia.

As árvores carecas pelo desfolhar, davam adeus às suas últimas folhas.
Era uma cena triste, mas não de todo. Era agradável ver o bosque antes frondoso, com frutos belos e saborosos como a nos convidar a um delicioso petisco.

Agora, árvores desnudas em “avant premiére”, prenunciando mais um criogênico inverno.
Os picos dos montes já expunham um imenso gorro de neve, outros exibiam enormes placas de gelo que brilhavam qual espelhos a refletir a luz do sol que luzia entre círculos concêntricos de luzes multicores, pintando um multicolor gigantesco painel de rara beleza.

Somente os pinheiros ainda exibiam um verde musgo característico. Suas folhagens, vez por outra nos brindavam com pequenas pinhas recobertas com os primeiros flocos de neve que agora caíam, prometendo mais um natal branco. Crianças alegres e sorridentes brincavam de guerra de bolas de neve transformando cada amiguinho em seu alvo predileto a trocarem boladas no rosto.

Chegando em casa naquela tarde, recolhi as mensagens que estavam na caixa de correio. Interessante! Numa era de avanço tecnológico jamais visto, ainda se usavam o correio convencional. Era uma carta convite em um dos envelopes de plástico ecológico, de material heliodegradável.*

Uma carta curiosa. Em seu bojo, um poema de teor pró ecologia, de três estrofes, no estilo Extrato Intertrix, com uma notinha referencial, indicando ser criação de Bosco Esmeraldo como se segue:

Extrato Intertrix #013: VIAGEM INTRA-ESPELHAR

Viagem, Uma boa pedida,
Digital, endoplasmática,
Intra-espelhar, de trás pra frente.

     Viagem

     Digital,
     Intra-espelhar.

          Uma boa pedida,
          Endoplasmática,
          De trás pra frente.

Mas que mensagem mais surreal! Além disso, bucólica, cubista, transcendente. Fiquei em suspense, sem quase nada entender. Na base do cartão, um endereço eletrônico: WUP.INTRAESPELHAR.UP.
Nunca vira antes uma URL daquele tipo. Tinha que começar com “www”. Deveria ser um erro de digitação. E, por fim um aviso – Atenção! Memorize a mensagem e a lance na grama do jardim em sol a pino. A mensagem se desintegrará em 20 segundos. Sempre tive uma memória fotográfica. Ao contrário do que sugere o meu próprio nome, ela é excelente.

Intrigado, examinei o destinatário para ver se aquilo é para mim mesmo. “Destinatário:
Ao Ilmo Sr.: Dr. ACRÔMIIUS AMIN NÉSIUS. O endereço era exatamente o meu. Não havia dúvida que era para mim. Tratei de ler memorizar imediatamente. Era fácil, visto que, ao contrário do meu sugestivo nome, eu tenho uma memória fotográfica.
Entrando em casa, falei em alto som: “Ligar!”. Ouvi o clique característico do reconhecedor de voz. Prossegui: “URL!”. Em seguida ditei, sigla por sigla, nome por nome: “www..intraespelhar.com”.

O sistema deu um 'bip' característico e, no estilo Google, falou: “URL e categoria inexistentes. Você não quis dizer WUP.INTRAESPELHAR.UP? Quer tentar esta URL?”. Respondi que sim.
Abriu-se no telão uma página de exuberante beleza, utilizando uma tecnologia nunca por mim vista antes. Uma caixa de diálogo piscava, pedindo-me a palavra de login. Arrisquei “Intraespelhar”. Na mosca! Agora exigia a senha. Não me ocorreu qualquer palavra de segurança que me fizesse sentido, por mais que tentasse uma sinapse. Então resolvi pedir ajuda e falei: “Pista!”. Abriu-se um “popup” em “dropdown” e a seguinte mensagem: “Acróstico”.

Rememorei o poema que li e em segui o vi dissolver-se, como como uma porção de propano líquido ou mesmo de éter. Eureka. Devem ser as nove primeiras letras dos versos que eu lera. Assim ditei-as em voz audível: “VDIVDIUED”. Uma aviso sonoro ecoou na sala: “Errado! Você tem apenas mais duas chances.” Então repeti a mesma sequência, quase a gritar. Novamente a mensagem de erro, completando com a seguinte advertência: “Por favor! Não grite que não sou surdo! Você só tem mais uma chance.”

Só me faltava essa! Um computador humorista. Pensei e pensei e então... Eureca! Se é intraespelhar, então ser ser uma imagem virtual. Deve ser de trás pra frente. Suando frio, arrisquei: “DEUIDVIDV”. Pimba! Bem no alvo.

Descortinou-se na tela um mapa, com uma trilha secreta que me conduziria ao lugar de uma reunião que até o momento não sabia do que se trataria no dia seguinte às 6 horas da manhã, exatamente ao nascer do sol. Dissera-me ainda que na base do Monte Espelho eu encontraria a primeira pista.. Era algo no topo do Monte RORRIM NIATNUOM” e eu deveria manter o mais absoluto segredo. Eu jamais ouvira falar daquele monte. Que mistério é esse meu Deus? Querem me levar à loucura.

Naquela manhã levantei-me na ponta dos pés, para não acordar minha esposa. Desci as escadas e nem tomei café, mas coloquei em minha mochila alguns iogurtes, água mineral, biscoitos e algumas balas, para o caso de eu ter alguma hipoglicemia. Calcei um par de tênis apropriado para trilha e parte para a base do Monte Espelho. Lá chegando, escaneando o lacal em um “travelling” horizontal, descobri uma indicação de início de trilha com a inscrição “VDI”. Imediata lembrei-me o Intertrix que recebera na estranha mensagem, e imediatamente, deduzi que haveria mais duas pistas adiante, já que o referido poema tinha três estrofes.

Animado, entrei na trilha e segui adiante, atento a qualquer detalhe que me levasse a cabo aquela misteriosa missão. Depois de serpentear naquela trilha, rumo ao topo do monte, encontrei numa pedra bem camuflada pela folhagem de um arbusto, outra trinca literal “VDI”. Mais curioso e animado fiquei, pois agora tinha a certeza de encontrar a próxima pista que certamente seria “UED” Não deu outra. Ao chegar no final desta pista, enquanto girava ao redor, em busca da última pista, o piso falso do fosso onde eu pisava, cedeu e eu caí no leito de uma corredeira que me arrastou até o seio de uma caverna de água pura e cristalina, aquecida a uns 50° C.

Que delícia! Como não houvera tempo de tomar banho em casa, aquilo ali era um presente do Céu. Cheguei até esquecer do motivo que me levara até ali. Maravilhado com aquela brilhante caverna com centenas de estalactites naturalmente escupidos, cada um mais belo que o outro. Um leve aragem soprava por ali trazendo o perfume das flores silvestres que com certeza havia lá fora. Um agradável som, harmonioso, uma música atonal se fazia ouvir pelo roçar da brisa produzindo aquele agradável som de uma difusa melodia.

De repente, vejo, lá no alto duas inscrições na entrada de dois túneis, uma em cada entrada. Lamentei ter de deixar aquele aprazível banho de águas termas ricas sem cálcio e enxofre. Imediatamente fui escalando as paredes que, graças a Deus, tinha muitas falhas e brechas que foram muito úteis na escalada. Chegando ao alto lia as duas inscrições. Num túnel, estava escrito “UED” e no outro, “DEU”. Fiquei confuso, pois esperava uma inscrição apenas. E agora? Pela lógica deveria ser as últimas letras do acróstico. E como era de trás pra frente, tinha que ser “UED”, e ali esta na entrada de um dos túneis. Mas por que outra, invertida na entrada do outro túnel? Não deveria ser invertida, como num espelho?

Espere aí? Estou escalando o monte espelho e aqui vejo uma última senha em dobro, sendo uma o espelho da outra. Será? Só pode ser isto: tenho que espelhar a última dica. Então, se não estou enganado, devo entrar pela inscrição “DEU”. Nem pensei duas vezes, adentrei orientado pela inscrição que escolhi e não deu outra. Cada vez mais claro o túnel se tornava até que cheguei exatamente, às 6h 00min no local da reunião. Eu havia passado no teste seletivo. Fiquei sabendo então que o outro teste saí a 5 km abaixo, fora do monte, em frente ao Parque Temático da Cidade.
Finalmente eu iria desvendar a causa de tanto mistério.

Fui acomodado numa confortável poltrona, lembrando uma de primeira classe de avião. Uma equipe de boas vindas nos saudaram e um jovem cientista tomou a palavra.

Bem-vindo todos, em nome da CPIG – Central de Pesquisas Intergaláctica. Eu sou o chefe da equipe e estou aqui para lhes explicar o porque de tanto mistério. É mister que fosse sigilosa a missão e um rigoroso teste de candidatos foi aplicado e só aqui chegou quem passou em cada fase desses teste. Estamos num momento histórico. Estamos prestes a fazer a mais fantástica viagem de todos os tempos. Por favor, cada um segure esse capacete que está descendo sobre sua cabeça e ponha sobre ela. Ajuste agora, neste botão à altura de sua orelha direita e ajuste o foco, até que consiga ver uma pequena gaivota voando no centro do tela. Olhe bem atento para esta gaivota. O sistema está fazendo a leitura de sua íris e de sua retina. Não pisque até eu mandar, pois você está sendo escaneado para fins de decodificar todo o teu sistema cerebral. Abra a boca. Um coletor de saliva irá colher uma amostra para análise de DNA. Pronto. O capacete será removido e alçado para cima. Pronto seus dados foram cadastrados com sucesso.

A missão é a seguinte. Vocês serão transportados digitalmente desse escritório secreto nesta montanha, aqui no Município de Formosura para o de Caldas Celestes a 200 Km daqui. Mas antes de fazermos esta experiência preciso que depositem os seus celulares, equipamentos eletrônicos que em seguida um robô passará recolhendo e os guardará num escaninho pessoal. Caso guardem consigo algum objeto desses as consequências podem ser catastróficas e provavelmente não teremos como reintegrar quem não cumprir essa exigência.

Todos nós estávamos bastante curiosos e desejosos de participar daquela experiência. De tão eufórico e em suspense que eu estava, não percebi que não entregara o meu controle remoto do portão automático. Começaram a contagem regressiva e ao chegar no zero, um clarão encheu o ambiente e por instantes fiquei sem enxergar, mas tive um grande susto quando caí sentado na sala, sem qualquer mobiliários, mas um grande telão exibia uma mensagem estranha porque não conseguia entender, embora os caracteres fossem os mesmos que usamos, as palavras eram ininteligíveis. Foi aí que me lembrei da história do Monte Espelhado. Então pude ver que estava tudo escrito num plano virtual, de trás pra frente. Pude ler: bem-vindo ao Planeta Arret, Sitema solar LOS 5°, Universo Paralelo. Pondo a mão no bolso, senti o meu celular ainda ligado. Eita! Esquci de entregá-lo ao robô. E agora!

Bem-vindos à Arusomrof Edadic, que espelhado seria o mesmo que Formosura.
Entrei num computador à disposição na escrivaninha ao lado. Estava perdidamente lascado. A Cidade era idêntica em tudo à minha adorável Formosura. Só que tudo ao contrário.
Peguei um táxi e dei-lhe o meu endereço, escrito de trás pra frente, só pra ver no que ia dar. Para a minha surpresa, era exatamente igual à minha.
Minha esposa virtual me recebeu com o costumeiro sorriso de boas-vindas. Atrás delas vieram correndo os meus filhos numa alegria só. Então pensei. Deve ser o meu estresse que me fez ver tudo desse jeito. Jantei e tomei um bom banho e pensei com o meu umbigo: Tudo bem! Amanhã de manhã, quando eu acordar, tudo estará normal.

Quando despertei no horário costumeiro, fui ao banheiro aliviar a bexiga e tomar um bom banho. Enquanto escovava os meus dentes, vi, através do espelho que as inscrições da folhinha no azulejo da parede oposta estava tudo escrito de modo correto. Virei-me e estava tudo ao contrário. Que é que está acontecendo, meus Deus? Será que eu pirei? Então gritei desesperado por Rosa, minha esposa: “!Rovaf rop, etnegru Asor” Enquanto pensava dizer “Rosa! Vem cá urgente, por favor!”, o que eu ouvia era tudo ao contrário, como se fosse uma gravação às avessas.

Aquilo me deixou por demais perturbado. Não podia entender. Será que eu era o meu eu paralelo do Planeta Real ou vice versa? Comecei entrar em parafuso e, é por causa disso que acabo de relatar que estou aqui nesse divã, torrando sua paciência tentando encontrar uma resposta convincente para isso tudo. Certo, Doutor?

“!Eunitnoc. Oimôrca, otrec!”.

“Essa não” Então pirei de vez estou no pesadelo alheio. Nada faz sentido! Oh, meu Deus! O que será de mim e de minha família?”

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(*) Heliodegradável = Material supostamente existente, resistente a todo e qualquer ambiente, mas que, na presença da luz solar se dissolvia, se desintegrando em moléculas de H2O e CO2.

Alelos Esmeraldinus
Enviado por Alelos Esmeraldinus em 02/03/2012
Reeditado em 10/04/2013
Código do texto: T3530080
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