Contos nublares #098: MERGULHO NO PASSADO

MERGULHO NO PASSADO

Contos nublares #098

O clima aqui em Brasília está muito seco. Escaldante, tangendo os 32ºC e cerca de 60% de umidade relativa do ar.

Parece que meu amigo Vento Sul tirou umas férias. Seu primo WNW (Oeste-noroeste) deu o ar da graça, soprando a 6Km/h. Aliviou um pouco o calor, trouxe um pouco de chuvisco e só. No céu, muitas nuvens surfando na estratosfera, algumas muito carregadas. Certamente essas não eram para nós.

Hoje, uma canção não me sai da cabeça. “VENDI OS BOIS”. Interpretada pelos Incríveis, conta a história de um fazendeiro envolvido com a festa de casamento do seu filho moço. Isto me trouxe uma nostalgia saudável, saudade dos anos 60's. Quanto romantismo, lirismo sentia naquela época. Uma canção singela que traduzia exatamente o que ocorria nas fazendas nessas ocasiões.

Onoreste (assim apelidei aquele amigo, primo de Vento Sul) fez-me o convite num gesto quase imperceptível e não me fiz de rogado. Em poucos atmos chegamos aos estratos. Na superfície imprimia-se um ar de bem-estar, pois uma suave brisa afagava as faces dos transeuntes. Aos poucos, alcançamos o topo de um enorme cúmulo-nimbo. Deixo-me levar por meus pensamentos e estes me levam aos anos de minha adolescência. A música é dita tônica do momento.

Chego em Barbalha, encravada em um dos vales da Chapada do Araripe, ao Sul do Ceará. Nessa época aprendia os primeiros acordes no violão. Meu colega Émerson Nunes deu-me algumas folhas duplicatas de seu método de violão, adquirido no seminário quando lá estivera. Eu, muito empolgado pois tenho como amigos colegas de sala de aula, amigo de infância, todos componentes do mais famoso conjunto musical da região, OS ÁGUIAS. Era uma espécie de 'cover' de OS BEATLES. Seu nome a princípio era ”The Eagles”. Como já havia uma banda internacional com esse nome, passaram a utilizar o traduzido.

As tertúlias eram animadas, ora por eles, ora pelo conjunto mais conservador, de visual da velha guarda. Não me lembro do seu nome. Eram muito bons, mesmo. Não perdia uma festa animada pelos Águias. Começavam e terminavam as festas aos acordes de DE MIM PARA VOCÊ (FROM ME TO YOU – The Beatles). Guardo boas lembranças dessa época. Excelentes momentos e nem me apercebia que os eram.

Falando inicialmente nos Incríveis, lembro que seu nome original era The Clevers. Interessante é que não sabíamos e nos dividíamos entre os fãs destes ou daqueles, sendo eles os mesmos.

_ O que você está fazendo aí nessa radiola, menino! Tocando e voltando assim a agulha vai findar arranhando esse LP. _ comentou meu pai.

_ Estou estudando, Pai!

_ Estudando? Desde quando ouvir música é estudar?

_ Senta aí, Pai! Essas músicas são dos Beatles. Eles cantam em inglês. Como não sei o que eles estão dizendo ao cantar, estou tentando entender e transcrever para o caderno o que eu acho que eles estão dizendo. Depois vou ao dicionário e procuro pelos nomes mais prováveis e busco o significado. Daí, não fico feito papagaio cantando sem saber o que eles dizem de fato.

_ Muito bem, meu filho! Mas não já existem as versões dessas músicas em português, não?

_ Tem sim, Pai. Mas não é a mesma coisa. Em inglês, dizem uma coisa e em português, outra completamente diferente. Quer ver?

_ Quero sim.

_ Veja essa música de Renato e Seu Blue Caps – FECHE OS OLHOS. No original é ALL MY LOVING e não significa "Feche os Olhos", mas "Todo o Meu Amor". Começa tudo igual, mas no segundo verso muda tudo.

_ Como assim?

_ Preste atenção! Renato e Seus Blue Caps dizem: “Feche os olhos e sinta um beijinho agora de alguém que não vive sem você...” Já, os Beatles cantam assim: “Feche os olhos e eu te beijarei e amanhã sentirei saudade de você. Lembre-se que eu sempre serei verdadeiro...” E por aí vai.

_ Mas, no frigir dos ovos dará no mesmo.

_ Nem tanto pai! Versão nem sempre é tradução. Muitas vezes não dirá coisa com coisa. Mas eu prefiro curtir no original sabendo exatamente o que eles estão dizendo. E assim, de quebra, vou aprendendo a falar inglês.

E foi assim que comecei aprender a falar inglês, francês, espanhol e italiano. Qual traça a “comer” os dicionários. Confesso que não é um bom método, mas valeu a pena. Hoje falo apenas o inglês, espanhol e um pouco de francês. Do italiano apenas leio e gosto de ouvir suas belas canções. Atualmente vivemos um momento em que encontramos muitos cursos disponíveis de didática excelente. Mas no meu tempo não existia nada disso. Era cada um por si.

Aproveitando aquela manhã de janeiro de 1966, um vento nordeste trazendo forte tromba d'água parecia dizer-me que era hora de regressar. As nuvens pareciam de puro breu. Senti-me ser elevado até o topo daquele cúmulo-nimbo, de volta a 2014. Enquanto enxugava uma lágrima de saudade, dei por mim, de volta à minha varanda. O sol já se recolhera ao seu tálamo. Uma chuva suave cai lá fora e adeus calor. Volta à amenidade das agradáveis e refrescantes noites brasilianas.

Alelos Esmeraldinus
Enviado por Alelos Esmeraldinus em 12/02/2014
Reeditado em 13/02/2014
Código do texto: T4688778
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