A Materialidade do Sonho e a Morte

“Noite pariu hediondo Lote, Sorte negra

e Morte, pariu Sono e pariu a grei de Sonhos.”

( HESÍODO, séc. VIII a.C.)

O sonho está ligado ao corpo. Existem correntes científicas que afirmam o sonho como reflexo da atividade cerebral.

Pensando nesse argumento podemos detectar que ao sonharmos com uma queda, pode-se suspender a perna do corpo material como reflexo ou proteção, passamos nesse momento, do sonho para o corpo físico. Da mesma forma que um sonho de erotismo pode levar ao gozo do corpo presente. O corpo tem conexão com o sonho.

O sonho é nossa forma de descansar o corpo e a mente. Nesse momento de desligamento abre-se uma porta para um imaginário que não ordenamos e não entendemos completamente. O sonho pode fazer parte de um mistério que nos remete a algo superior e incógnito.

O sonho é caótico e singular. Pode-se sonhar com situações e lugares parecidos. Um sonho pode ser quase igual a outro sonhado anteriormente, porém algo sempre difere, mesmo que por um detalhe.

Nos sonhos estamos alheios ao tempo e ao espaço, não totalmente, mas de alguma forma. Pensa-se na morte como esse alheamento temporal e espacial, sendo o sonho um submundo de imagens e linguagens que, por muitas vezes, lembramos somente de traços e fragmentos. O sonho leva-nos para o desconhecido onde talvez, travamos contato com algo para além do inconsciente, por mais que esse influencie no que sonhamos.

As pessoas quando se encontram no estágio do sonho o sentem como realidade. No sonho sentimos a matéria do nosso corpo, os objetos e sensações corpóreas em contato com outras pessoas e outros seres.

O sonho é uma explicação da alma fora da matéria e sentindo esta última como realidade. Tateamos no sonho, estamos no sonho como corporalmente. O sonho nos engana, acreditamos nele porque vamos com os sentidos do corpo. Transportamos o corpo para o sonho.

“(...) Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro do meu leito? Parece-me agora que não é com olhos adormecidos que contemplo este papel; que esta cabeça que eu mexo não está dormente; que é com desígnio e propósito deliberado que estendo esta mão e que a sinto: o que ocorre no sono não parece ser tão claro nem tão distinto quanto tudo isso. Mas, pensando cuidadosamente nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões. (...)”

(DESCARTES, 1637)

Quando pensamos na morte, em deixar a materialidade, uns acreditam que só vamos com a alma, outros que a alma morre com o corpo. Porém levamos o corpo para o sonho. Porque não o levaríamos para a morte? Como o sonho projeta o corpo com seus sentidos para outra realidade, porque não essa alma não projetaria o corpo para a eternidade? Podemos ser outras pessoas no sonho, podemos ter outras formas, por que não depois da morte? Os sonhos nos preparam um pouco para a morte. A realidade do sonho é outra como outra realidade teremos depois de morrer. Mas e se pudéssemos projetar para ela o nosso corpo, ou um corpo, o sentindo da mesma forma de que quando sonhamos?

O sonho é uma realidade desconhecida como a própria morte. Pouco sabemos sobre o que vamos sonhar e como vamos nos portar em um sonho. Ninguém planeja um sonho, o sonho não é uma continuidade do dia anterior. O mundo onírico é atemporal e não segue uma lógica. Pode ser influenciado por alguma situação vivida mas muitas das vezes, foge ao nosso controle.

O desejo está presente no sonho. Continuaríamos desejantes depois da morte? O sonho pode ser um elo de ligação entre a vida e a morte? É um mundo misterioso como a morte e, quem sabe, pode nos ajudar a compreendê-la se pensarmos nos traços e rastros do sonho como uma janela para um outro tipo de existência pós-morte. Pode ser que quem nos criou queira nos levar de corpo e alma. Não esse corpo que carregamos, mas sim, uma projeção do mesmo ou com alguma outra forma corpórea.

GARCIA, Rafael. O sonho acabou? Revista Galileu, n. 145, agosto, 2003

DESCARTES, René. Discurso do metodo; Meditações ; Objeções e respostas ; As paixões da alma ; Cartas. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Trad. J.A.A. Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1991