De grão em grão [63]

Tudo que é prazeroso é perigoso. Mas também é possível se desfrutar dos prazeres de forma segura. Cada prazer tem suas medidas de prevenção e precaução correspondentes. Quando se fala em prazeres da boca, pensa-se logo no pecado da gula. Entretanto, creio que o maior perigo encontra-se no pecado da fala.

É claro que o ato de comer, degustar, apreciar uma boa culinária é um dos maiores prazeres da vida. Come-se, não só para matar a fome e sustentar o corpo, mas também para saciar a ansiedade. Come-se para passar o tempo ou por gulodice mesmo. Comer tem um papel social, de reunir pessoas – os amigos, a família. Não tem festa sem comida. Se não comer, ainda que um petisco, um belisco, uma bebida, o encontro não tem graça. A comida faz parte da felicidade.

De fato, quando estamos com fome, ficamos infelizes, irritados, com fraqueza, de mal humor, de cara feia, sem paciência, tolerância zero. Famintos, nos sentimos sem ânimo. E depois de comer, apesar de satisfeitos e felizes, ficamos lentos, sonolentos, meio tristes, como dizem. Portanto, está comprovado que a comida está diretamente relacionada à felicidade.

Além disso, serve-se comida também para seduzir e conquistar, para convencer, para que a pessoa aceite o convite ou a compra, ou ainda que “para não ficar chato”. Oferece-se alimentos para fazer amigos, clientes ou para dar uma cantada. A comida serve ainda para conseguir “comida” em outro sentido.

Mas acabei mudando completamente de assunto. Não era sobre comida que eu queria falar, mas sobre outro prazer da boca – a fala. Já discorri em texto anterior sobre o incômodo provocado pelos faladores de plantão, gente que fala sem parar, sem se importar, sem noção nenhuma.

Eu não gosto de falar sem que o ouvinte esteja gostando. Por isso, presto muita atenção enquanto falo. Tem gente que pensa o contrário, que só precisa dar atenção ao que se ouve. Engano. Se quiser ser bem ouvido, precisa colher o feedback da plateia. A fala, assim como a comida, deve ser apreciada para ser lembrada, repetida, ter o efeito desejado. Entalar uma fala à força pode provocar também enjoo e vômito.

Chamo de “autofalantes” esses tipos que falam para si próprios, que sentem que o mais importante é falar e ser visto falando do que ser ouvido e assimilado. Isso mesmo, eu disse “autofalante” com “u” e não “alto-falante”, com “l” e hífen. Porque “altofalantes” são aqueles aparelhos que ampliam o som, os megafones. Já os batizados “autofalantes” são pessoas que falam para si mesmos (conforme o significado do prefixo “auto”).

Os autofalantes não avaliam bem o risco que correm a todo momento por falarem demais, tal como o peixe que morre pela boca.

Hélio Fuchigami
Enviado por Hélio Fuchigami em 18/12/2014
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