Viagem

Dia 1

A asfixia desesperada dos prelúdios.

Várias vezes quis sair correndo de mim e pular no ninho eterno dos braços e peito e ombros de qualquer coração querido. Em verdade, qualquer coração conhecido e brasileiro. Pensei em como nossos pais são nossa raiz, uma fortaleza que lê-se ipsis literis a solução de todos os problemas da vida ‘inda que estes não tenham em si solução além da aceitação resignada e sem Ato.

Pensei em como os laços que criamos com aqueles que amamos transcendem a relação social entre dois entes sociais e é acima de tudo um entrelaçar de duas almas que escolheram para si caminharem como uma Unidade de confiança recíproca, transparência, liberdade e conforto. E que esses laços não se criam no primeiro trocar de palavras e experiências com outrem no compartilhar de um jantar: ou se criam, mas precisam pra isso de uma abstração fluente.

Descobri que o plano da redenção humana em 39 horas de solidão errante pelo planeta todo não faz-se seguir planos de imersão consciente no inconsciente mas que resume-se na plena existência pacífica em um estado de presença. E a música conecta com Deus e liberta de todos os males da matéria e do categorizar solúvel da mente.

Deito agora sozinha em meu quarto compartilhado comigo e a infinitude do meu espírito inquieto que transcende os limites cúbicos e ocupam toda a eternidade do meu coração.

Meus ouvidos deglutem um incessante zumbido das altitudes onde o céu torna-se relevo mamelonar sobre tatuagens de luz em qualquer corpo que se estende no limite do olhar.

Observo, como aventureira que usa do corpo para contemplar em silêncio os sentires, o inteiro domínio corpóreo por esse sentir inquieto, de sutil ferocidade intrépida, que habita cada instante do meu Ser: a asfixia desesperada dos prelúdios.

Não tenho com quem dialogar se não comigo mesma. Na cama ao lado não há ninguém a repousar, detrás da tela deste gigante tecnológico não há ninguém a velar com os olhos pelos arabescos que nascem de meus dedos que traduzem olhares que traduzem o vociferar silencioso dos pensares.

Integralmente entrego-te ao Divino Existir.

Cerro os olhos e encerro os escritos.

Dia 2

Feeling (about) at home.

O repouso conecta ao Divino. Talvez, durante nossas horas de estádio em um lugar que jamais saberemos, em um tempo que jamais existiu e existindo em uma condição incompreensível de Tudo e Nada, estamos gozando de uma imersão completa em qualquer estado, coisa ou condição que costumam chamar de Deus. Talvez seja essa a diária tangível redenção humana, doce sutil néctar de etérea resolução de todas as dores.

Acordei de um sonho como em outro sonho ainda maior. Torporosa na sobriedade de todos os sentidos excitados. Vivendo o onírico vivo viver.

Quando encontrei olhos que já havia dantes encontrado, já os podia um pouco mais habitá-los. Sentia-os um pouco mais meus, como tudo aquilo que tomamos como nossa propriedade tão somente por travarmos com qualquer este Ser íntima relação de coexistência próxima -a independer da harmonia ou desarmonia desta.

Tenho olhos. Tenho sentires. Tenho a experiência caminhando (sem pressa, a degustar de cada átimo de gosto e cor e forma) em prelúdio do seu interlúdio.

Perco aos poucos o medo devastador do pronunciar palavra em língua que não é minha. Do observar com alma fraterna olhos que não são meus. Observo os primeiros laivos da compreensão da não obrigatoriedade de se estar sempre ativo para se estar presente.

Basta existir para se ser completo.

Basta estar para se ser parte.

As casas são todas de qualquer cor que pode-se sem equívoco asseverar habitarem o espectro das cores quentes.

Salmão laranja vermelho goiaba.

Todas os nomes impronunciáveis de uma compreensão incompreensível.

Disseram-me que é aqui a cidade das cores.

(um adendo escrito a posteriori: cidade vermelha)

E também a cidade da felicidade.

Não há mesmo muito de distinto entre os corações sorridentes que cruzo por aqui, d'aqueles admirados em prévias caminhadas.

Um menino me olha e sorri. Já vi esse menino tantas outras vezes antes. Em todos os meninos que já me olharam e sorriram.

Já houve um assalto com mãos armadas de violência. E, talvez para reiterar o sentimento de sentir-se em casa: fora a vítima uma nata-carioca.

(Não pense que pretendi com os dizeres qualquer coisa de cômico ou trágico. Apenas uma despretensiosa observação do fluir das coincidências universais)

Falar não é preciso.

Dialogar é preciso.

Mais um outro ponto que não distancia-nos apesar de tantas águas e histórias de distância: o hospital e a saúde funcionam com mesma carência de recurso e excesso de vidas.

Dia 3 (actually wrote at day 4)

Feeling (completely) at home

O tempo também escorre por aqui. Talvez não com o desespero das metrópoles, mas com algum senso da existência delas em pontos muitos, bem marcados do mundo.

(Nesse instante reparo, mais uma vez, em como o ar é constantemente rasgado pelo cheiro do cominho)

Pensei em falar sobre o peculiar resultado de sentires de sentir-se, e estar, vagando a sós pelas ruas vermelhas sem qualquer certeza de se estar caminhando com destino certo. Pensei, mas não o quero. Não quero falar sobre a feira de frutas e frutos da terra, das pequenas ruelas cruzadas constantemente por nenhuma gente, da felicidade infinita que brota d'alma ao cruzar olhar n'outro olhar c'alma habita.

Não quero, mas acabei falando.

Grande mal dos poetas que fantasiam o que pensam e falam sem pronúncia.

Poderia dizer eu sobre cobras, palácios majestosos d'infinitas cores e formas, dissolução de tempo espaço em mergulho n'águas de história viva e concreta das feiras de comércio árabe no beijo das três águas, sobre o sabor do cominho que paira ad-aeternum nas narinas e sobre o grito quieto do estômago que aperta-se em si mesmo no velho abraço sempre sentido.

Poderia falar sobre a eterna semelhança dos serviços saúde dos países de terceiro mundo e sobre o nada que tenho como o nada que posso fazer.

Poderia delongar-me perdendo-me em mil alçares de âncora nos detalhes.

Mas falou-me agora o coração, deitada eu no macio alvo do infinito dele, que o valor verdadeiro não está em nada que os olhos miram ou que os braços tocam ou que a boca sente e goza e os ouvidos auferem.

Mas sim no silencioso profundo oceano de amor onde é permitido ao coração habitar pelo eterno do átimo que brota da nascente que jaz em cada laço de Seres que se (re)conhecem.

Um fato que acabou de me ocorrer: todos aqui estudam medicina e até agora ninguém conversou nada de medicina com ninguém (graças a Deus)

Deito para dormir e minha cabeça perde-se no turbilhão de pensamentos que criam um movimento browniano em velocidade luminosa

(por terem sido estes escritos escritos em e para um diálogo, deixo a integralidade intocável dos dizeres primordiais, sem alterações estéticas ou com fins de impecabilidade moral)

Menina do céu

Peguei uma diarréia braba kkkk

Dia 4

Imersão

Os marroquinos constroem casas com um quarto a mais para receber todos que possam querer lá estar. Deixam as portas abertas e as vidas destrancadas ansiando a entrada por almas a serem (re)conhecidas. Preparam copiosas refeições a serem sempre compartilhadas e degustadas com o corpo coberto e as mãos e o espírito nus. Vivem em comunhão com o coletivo e oferecem as graças de si a Allah.

O mal do século: o egoísmo de viver inteiramente p’ra si.

Pensamento do dia

Despedidas são apenas para aqueles que amam com os olhos. Pois, para aqueles que amam com o coração e a alma, não existe separação.

-Rumi.

Dias 5 e 6

O silêncio consagra

A existência deve ser compartilhada. Mas a solidão também é grande.

Existe em verdade também o crescer em se estar sozinho.

Percebo que talvez tenha eu aprendido a grandeza da partilha, mas minha inclinação natural é para o estar só. Para o degustar da expansão da mente solitária.

Caminhamos por horas por caminhos tortuosos e secos e pedregosos atravessamos cachoeiras e vilas e florestas e vimos distintas formas de vida vária e o que me devorava era a devastadora vontade de estar só. Olhando em silêncio. Sem a obrigação social existencial da pronúncia.

Permaneci silenciosa velando no extremo final da fila. Em silêncio desejando que meu silêncio e minha ausência de desejo de pertencimento fossem também parte integrante do pertencer.

O ar seco atravessava meu corpo e rompia meus lábios em mil pedaços. O calor penetrava junto aos raios do sol as janelas-olhares do corpo olhares-janelas da alma.

Era bom.

Imlil. Reunião de vilarejos de produtores de maçã, criadores de ovelhas e guias-espirituais de turistas.

Não quis juntar-me ao jogo noturno de cartas. Permaneci por quase uma hora sentada na varanda olhando as formas das árvores e estrelas, deixando os pensamentos vagarem livremente enquanto observava a existência sem obrigações.

Meus pés nus tocaram o chão rubro suave e sagrado da mesquita.

Não lavei as mãos com as águas que purificam dos pecados do homem.

Mas lavei as mãos sem querer.

Em algum momento da vida que já me não lembro e não quero lembrar.

Deito-me sozinha e sinto-me feliz assim. Escrevendo sem papel e sem ajuste. Sem praticar idioma que não aquele meu.

Liberto-me da culpa. Redenção consciente de si mesmo.

Talvez por isso sinto que sou feliz.

Dia 7

Vazio

(Porém cheio)

Dia 8

Viagem na roda do meu quarto

(Unable to write now)

Findou-se aí a criação lírica.

Talvez por uma enfim aptidão em se viver a vida em suas nuances de pragmatismo empírico e vivo e corporalmente denso.

Talvez por uma emancipação dos devaneios tolos (e de uma tão prolixa infinitude de sentires) para então um gozar hedônico e nobre da matéria na rica matéria da antropologia vivida na pele que habita a alma.

Talvez por um silêncio do grito que dilacerara o existir mundano para permitir plena soberania do etéreo.

Transcorreram-se outros 13 dias inteiramente vividos.

Pel'O eterno espaço entre os dedos dos pés e mãos mergulhou e escorreu a água, a terra e a areia.

Beijou meu olhar o olhar de Grécia e Tróia, cruzou o oceano em uma fotografia de instante-eterno habitando em mesmo momento-Um as pardas janelas-alma de litorâneo Brasil e os rubros mares-concreto de pra lá de Marrakech.

Escalei o céu de areia até tocar de todo corpo pairando em onda seca e macia o céu com lua sem estrelas. E joguei o corpo sem óbice n'um tobogã em direção ao sol-nascente-dando-a-luz-ao-mundo.

De volta à garoa da terra paulistana (e cheguei como chega a garoa, e com ela), permiti-me chover até que não houvesse mais nuvens carregadas de pesados sentires e entreguei-me à mesma perene vida prosaica: porém com um novo arco-íris que ali e para o eterno nascia, em um novo nascer do Eu-lírico que vive a poesia da Vida.

Nicolle Ramponi
Enviado por Nicolle Ramponi em 31/08/2018
Código do texto: T6435852
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