DIVAGAÇÕES BESTAS - (PERSONAGEM ALICE)

Tem dias que ela desanima e deseja jogar tudo para o alto.

Jogar os projetos, as expectativas, as ambições, a tal subida na escala de Maslow, aquela da hierarquia das necessidades humanas. Até porque anda navegando bem por baixo nessa malfadada escala da autorrealização.

Então, pensa, largando tudo, ela almeja fazer trabalhos bem prosaicos. Aqueles de uma subserviência consoladora; destes que apazigua a mente e que não nos faz desejar mais nada, além de servir, sorrir e ficar por trás, ou seja, não aparecer, não desejar muita coisa além do dever cumprido sem mais delongas.

Pensando, talvez plantando uma horta, cuidando das alfaces ou praticando o semear das orquídeas, que só florescem com pouco, dizem, mas exigem uma paciência de carmelitas descalças para que subsistam. Então, nessa atividade você precisa praticar esta abnegação sem amarras, esse desapego da ira.

Também gosta de observar o movimento dos garçons em um restaurante. Aqueles que servem sorrindo, retiram os pratos, oferecem o café; e a despeito da cara azeda do cliente, não toma aquilo como coisa pessoal. O seu trabalho é servir bem e ter uma paciência treinada de monge budista. E ponto.

Nessas divagações, encanta-se também pelas backing vocal de uma banda. E vê aquele desempenho como uma manifestação de desapego, onde usando o figurino igual a outras, limita a sua identidade e dança ao ritmo ondulante da música. Sua função é complementar e aparecer com sua voz apenas quanto for exigida. Pode ser apenas uma nota. Nota necessária que só ela sabe fazer, mas que não precise se estender tanto. Escondida, um tanto quanto invisível atrás da banda ou do vocalista

principal, apenas servindo.

Algo assim semelhante ao sentimento do personagem Holden de “O apanhador no campo de centeio”; ou seja, parar, segurar e manter a pureza das tarefas e dos sentimentos, servir.

Divagações bestas, ela pensa. Toda profissão tem suas pedras.

Mas na realidade ela só deseja esse desapegar, desacelerar, ou até se desmotivar. Isto em um mundo tão egocêntrico pode ter um quê de estoicismo, ela pensa penalizada, mas tudo bem. Não tem explicação esse desejo. Ele aparece no divagar das horas. Esse ficar quieta, anônima, como um autômato que de repente é exigida, mas não sugada, até porque a tarefa não se permitiria a isto.

Ela estaria ali para executar uma tarefa específica, eficiente, mas até de forma mecânica. Ela nem precisa ter nome, e com isso nem identidade, muito menos ambições. Apenas paciência treinada na abnegação de servir e retirar-se. Pode ser cura, pensa ela desalentada.

Angela Gasparetto
Enviado por Angela Gasparetto em 24/03/2021
Reeditado em 24/03/2021
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