A BORBOLETA

A história principia em um jardim. Por entre emaranhado de raízes que sustentam os caules retorcidos da planta Felicidade, uma lagarta se arrasta. Já estivera antes, sondando o jardim do Castelo Amarelo. Usara as suas muitas pernas para chegar à violeta, cujo néctar a imortalizaria como borboleta. Teria asas grandes o bastante para voar, em cores brilhantes e distintas. O canteiro do castelo abrangia uma grande área de terreno, com plantação de flores variadas, agrupadas por espécies que se sucediam conforme a combinação de cores, a formar um tapete multicolorido, de composição paisagística indubitável, mas que lhe confundia a percepção e criava dificuldades para se mover. Encontrar a violeta naquela florada era penoso para suas perninhas curtas e visão rasteira. A relva até que lhe ajudava no impulso do corpo alongado e mole. Por um bom tempo continuou a circunvagar, até avistar um tufo de flores purpúreas. Tentou agilizar as passadas; o problema seriam as muitas pernas de curto tamanho. Gostaria de tê-las em menor número e mais longas. De repente percebeu um vulto se aproximar. Era a rainha do Castelo Amarelo. Ah, que linda! Tão branca, de cabelos escuros. E as sobrancelhas espessas, pareciam duas lagartas negras embelezando aqueles olhos. E a boca, enorme e vermelha! E ela sorria, que dentes brancos e brilhantes! Pronto, estava apaixonado, sim, porque era uma lagarta-macho. Agora, mais do que nunca teria que apressar a metamorfose. Queria ser uma borboleta-azul, macho, com asas em azul-metálico brilhante e reflexo de seda, para impressionar a rainha.

— Cuidado, minha rainha, quase me pisou...

— Ah, então é você que anda picotando as minhas flores... Saia já daqui!

A pobre lagarta no sufoco da corrida de perninhas curtas foi se alojar logo por detrás de uma parede do castelo, até perceber a tinta fresca. As suas listras quebradas de oráculo chinês estavam manchadas de amarelo.

Felizmente, agora, mantinha-se vivinha no jardim da bruxa. A estrada fora comprida e só lhe restava chorar a saudade da rainha má. A planta da Felicidade lhe daria pouso.

Condoída, a bruxa lhe introduziu no seu castelo assombrado, limpou-lhe o dorso e a transformou em uma borboleta, não a borboleta azul brilhante, não tinha poderes tamanhos para tal, mas em uma borboleta cor de chocolate, com motivos em ondas grafados em preto, bem machona.

O tempo passava e a borboleta não tirava o sentido da rainha. Vendo-se com asas, decidiu voar rumo ao castelo. Antes, sentiu a necessidade de um preparo cultural. Avistou uns livros na mesa de vidro da casa da bruxa, alçou voo e pousou em um livro de poesias. Não conseguiu, porém, virar-lhe as folhas. Voltou ao jardim e à planta da Felicidade. Era uma manhã de muito sol, assim, ficou quietinha, sobre as folhas verdes. Ao anoitecer, enquanto todos dormiam, sobrevoou a biblioteca da bruxa. Leu o título de muitas obras, estava à procura de uma que lhe ensinasse como conquistar a rainha. Não encontrou nada pertinente. Sentindo-se cansada, pousou na vidraça da janela e ali permaneceu pousada. Pousada mesmo, como repouso. Tão pousada estava que nem ligou para o clique da câmera a lhe registrar. Talvez as fotos a levassem à mídia e, aparecendo na sociedade, poderia ser notado pela rainha de sobrancelhas negras, visto que era borboleta-macho. Aguardou a sua imagem nos jornais. O tempo passava. Decidido, com notoriedade na sociedade ou não, foi sondar a rainha. Os portões pesados do castelo se mantinham fechados. Acomodou-se no jardim. Quem sabe, já uma borboleta machona, a violeta lhe notasse. Dias após dias, exibia-se com voos rasantes em círculos, a bater as asas cor de chocolate, fazendo pausas, para recuperar as forças e retomar em movimentos dançantes. Às vezes, ousava até a janela do quarto da rainha e ficava a admirá-la no seu leito de bela adormecida. Retornava ao jardim a pretender da violeta alguma ajuda. Flutuava ao seu redor, numa coreografia vertiginosa. As demais flores lhe prestavam o tributo da admiração pelo belo espetáculo, mas a violeta não lhe dava a mínima. A borboleta machona, um pouco cansada daquela exibição quase feminina, resolveu desistir. Os pensamentos voam, e nesse voar, a violeta captou a intenção da borboleta e resolveu dar-lhe uma colher de chá. Apenas uma colher de chá, não estava a fim de oferecer-lhe um banquete faustoso. Sob certos aspectos, a borboleta até que era charmosa, possuía uma leveza de voo bem centrado e bem simétrico. Devia ser uma borboleta nobre, não custava nada lhe revelar os seus próprios segredos, pensou a violeta. Também, nem tanto. Esperaria uma distração daquela esvoaçante e se transmutaria em rainha. Era um processo um tanto doloroso, mas, também, por amor a ela, a lagarta se transformara naquele ser de belas asas. Seria só por uns segundos, tempo suficiente de uma dádiva, afinal, já tinha o seu pretendente afetivo e efetivo.

Naquele jardim encantado, a lagarta/borboleta e a violeta/rainha conheceram as entrâncias do amor. Por um breve tempo, é verdade. Após o chá servido, a rainha desapareceria e voltaria ao estado de flor. Misericordiosa, derramaria o seu néctar sobre a borboleta, eternizando-a.

E, agora, todo aquele amor se esvaecia. Depois de tantas lágrimas, a borboleta-macho esqueceria o chá e iria à procura de uma borboleta-fêmea a servir-lhe chocolate quente.

A bruxa, de longe, balançava a cabeça, ou melhor, a vassoura, com um sorriso enigmático.

(Baseado no pouso de uma borboleta, em dois momentos reais)

Rita de Cássia Amorim Andrade
Enviado por Rita de Cássia Amorim Andrade em 17/01/2011
Código do texto: T2735356
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