UmaVidaemVermelho

David sempre teve problemas na escola quando era pequeno. Aos seis anos, voltou para casa com um olho roxo, depois de uma briga com um grandalhão da segunda série que queria lhe tomar o lanche. Sua mãe, sempre reclamava com ele por ter de inventar desculpas no trabalho para poder ir para as constantes reuniões com o diretor da escola.

Em casa, David fazia desenhos em folhas de papel, geralmente amassadas pelas fortes marcas de borracha que acompanhavam a fúria criativa de seus trabalhos. Sua habilidade não era lá essas coisas, mas ele se distraia fazendo cartoons de seus “inimigos” sendo espancados por amigos imaginários que o acompanhavam. Esses “amigos” eram em geral, mais fortes e mais altos que os idiotas que o perseguiam e invariavelmente usavam um gorro vermelho, que cobria a maior parte da cabeça.

David nunca teve muitos amigos e durante a maior parte do tempo, ficava sozinho. Seus passeios pelo playground da escola eram sempre acompanhados de olhares desagradáveis e piadas de mal gosto por parte das outras crianças. David nunca deixava para trás sua caneta nanquim e sua pasta com os desenhos que fazia o tempo inteiro; sempre que parava em algum lugar. Como ele gostava do vermelho, era sua cor preferida para expressar a maioria das coisas; casas, flores, árvores com folhas avermelhadas, roupas, carros, e principalmente as armas. Como gostava dos enormes martelos que desenhava para seus “companheiros” baterem nas cabeças dos grandalhões idiotas que o atormentavam sempre que podiam.

Quando começou a sétima série, conheceu uma menina, que era diferente de qualquer um que havia conhecido; seu nome era Helena, ela era a melhor pessoa com quem já havia estado até então. Helena gostava dos desenhos de David, mas achava que às vezes eles eram muito “vermelhos”.

Ela gostava da companhia dele, e ele gostava da dela. Os dois ficavam a maior parte do tempo juntos quando estavam na escola, e isso era convenientemente bom; pois David não entendia muito do que o professor de biologia queria dizer quando falava de biodiversidade e coisas do tipo. Helena parecia se interessar por isso de uma forma sem igual e procurava explicar a David de uma maneira mais fácil de compreender.

Com o tempo, David passou a ter um sentimento de enorme carinho por Helena, a quem passou a chamar de Bunny (coelhinha). Bunny muitas vezes dava idéias para novos desenhos que David passou a fazer com mais freqüência. Vez ou outra, David viu os olhos de Bunny cintilarem quando ele estava pintando seus desenhos, mas isso não o atraia mais a atenção do que os olhares que começou a notar que os perseguiam.

Dois caras de aparência hostil começaram a se “deixarem ver” com frequência enquanto David estava com Bunny. Ele tentou avisá-la várias vezes, mas ela não lhe dava atenção; dizendo que era bobagem e que não devia se preocupar. Mas David estava certo, assim como dois mais dois são quatro, que aqueles homens queriam algo com Bunny.

Assim, quando Bunny não estava perto, David começava a procurar pelos dois homens estranhos que, ele tinha certeza, buscavam por Bunny. David nunca havia reparado antes. Mas certa vez, ao aproximar-se de um deles, enquanto estava de costas olhando para Bunny no fim de um corredor do colégio; David notou como eles eram esquisitos. Um deles usava uma roupa colorida feita de um tecido que parecia cipó trançado e exalava um cheiro forte de jasmim. Ele tinha o cabelo azul, arrepiado, que deixava as orelhas grandes e pontudas aparecerem. Usava presa à cintura uma bainha de bambu talhada com vários símbolos imcompreensíveis e uma algibeira pequena, que cintilava com um brilho tênue. Seus calçados pareciam leves e deviam ter sido feitos à mão. Seu companheiro se aproximava rapidamente de Helena, que ainda não o havia visto, devido à pilastra de concreto que os separavam. David, num ato impulsivo, começou a correr em direção à criatura que se aproximava perigosamente de Bunny, que agora tinha algo branco e comprido no alto da cabeça.

Eles eram loucos, o homem havia começado a desembainhar uma espada semelhante àquela que David havia visto na cintura do outro que havia ficado pra trás. O Playground estava agora cheio de crianças, eles não teriam coragem de fazer algo assim na frente de testemunhas.

Enquanto David corria, sentiu um peso enorme em suas mãos. Um grande martelo havia “aparecido” ali e ele agradeceu aquilo. A criatura não parecia ter notado a aproximação de David e permaneceu de costas, agora com a espada nas mãos. Tudo aquilo havia acontecido num milésimo de segundo. O que havia ficado pra trás mal teve tempo de reagir. Assim, David ergueu o grande martelo no ar no momento em que a criatura avançou com a espada em direção a Bunny, que se virava para encarar seu algoz.

O martelo desceu com todo seu peso no corpo da criatura ao mesmo tempo em que David viu o rosto de Helena se contorcer de dor. O sangue que veio em seguida borrou sua visão. Tudo agora era como em seus desenhos, vermelho e borrado. O martelo levantou-se novamente e desceu com a mesma fúria. A outra criatura olhou seu companheiro ser massacrado sem conseguir reagir, até que teve enfim, consciência do que acontecera. Avançou alguns metros, mas parou subitamente ao ver um pequeno tufão se formar em torno do corpo de David, agora curvado e acinzentado. Uma pequena névoa pálida se formara cobrindo sua pele; e os olhos, agora amarelos, brilhavam em fúria.

A criatura se afastou alguns passos, e desapareceu em seguida. David jamais o viu novamente depois desse incidente. David largou seu martelo que bateu no chão com um estrondo. Voltou-se para Bunny, que jazia na escada ao lado de um homem vestido com um terno listrado que tinha jogada ao seu lado, uma bengala talhada em madeira de carvalho.

Bunny sangrava muito e falava com dificuldade quando David a pegou nos braços. As palavras saiam com pequenas bolhas de sangue que começavam a se formar em sua garganta.

“Bunny!”

“Não chore David...” disse Bunny com dificuldade.

Mas David chorou. E foi a coisa mais densa que ele já havia sentido.

“Você não pode morrer... não assim...”

“Você tem que prestar muita atenção no que vou lhe falar. É muito importante que entenda...” falou Bunny, quase sem ar.

David balançou a cabeça, ainda com as lágrimas cobrindo seu rosto manchado de sangue.

Bunny tirou de dentro da mochila uma pequena caixa de madeira, com uma infinidade de desenhos que David nunca tinha visto. A caixa não tinha trava ou fechadura e parecia lisa e sem função aparente. David limpou o rosto com as costas da mão.

“Esta caixa é muito importante, pois com ela, portas que estão fechadas há muito tempo podem se abrir novamente.” Tossiu Bunny. “Guarde-a com cuidado, pois um dia virão tomá-la de você. Não deixe que a levem embora!” e ela parou por um instante que pareceu eterno... “Quando o momento chegar você consegui-rá abrir essas portas e elas nos levarão a lugares impressionantes.” Seus olhos fecharam lentamente e se abriram com dificuldade. “Adeus David. Nos vemos em sonhos...” e seu rosto caiu com as orelhas de coelha se desfazendo quando Helena tomou o lugar de Bunny.

Logo as pessoas começaram a se amontoar no playground do colégio, se perguntando o que havia acontecido. Tudo o que viram foi o homem do serviço social caindo e David correndo para socorrer Helena, a menina que havia chegado na escola no meio do ano letivo. O homem levantou-se desorientado, tentando se apoiar na enorme bengala. Disse que veio para levar Helena. David não sabia o que pensar, pois Helena não se lembrava de maneira alguma o que havia dito para David sobre a estranha caixa.

Helena foi levada. David ainda sente falta da amiga, que não deixou endereço para que ele lhe enviasse cartas ou postais. Todas as noites depois do ocorrido, David sonha com a amiga e algumas vezes é como se ela estivesse realmente ali com ele. Invariavelmente seus sonhos terminam mal, mas David gosta de vê-la, mesmo que por um instante.