Um garnisé chamado Major queria ser rei

Nasceu em um terreiro grande, com aves de várias espécies. Galinhas caipiras, galinhas de angola, patos, marrecos, faisões ornamentais, além de um pavão e um casal de peru. Ele, o único machinho garnisé, nascido de um dos quatro ovos trazidos de fora e chocados por uma galinha, juntamente com os ovos de outras do mesmo galinheiro. Com as irmãzinhas, somou-se às três franguinhas da raça que já estavam por lá.
 
Foi crescendo bonito, elegante nas penas avermelhadas. Adulado pelas irmãs e pelas outras três. Peito permanentemente estufado, soberbo. Já adulto, esqueceu o tamanho que tinha. Achava que podia mandar no terreiro. Metido que só.

Pela tradição, o rei do terreiro era o galo. Mas o garnisé resolveu que era hora de o grandalhão aposentar-se. No auge das suas forças, admirado e disputado pelas galinhas, respeitado pelos patos, marrecos e faisões, amigão do peito do pavão e compadre do peru, a aposentadoria nem de longe passava pela cabeça do portentoso soberano.

O garnisé não tinha muita paciência com a política. Tentou fazer a cabeça dos outros e do próprio galo, mas foi perda de tempo. Então decidiu se impor à sua maneira. Pelos seus cálculos, ganharia o poder do terreiro em poucos dias. Iriam ver quem mandava.

Começou a acordar mais cedo. Ainda no poleiro, era o primeiro a encher o peito e soltar o canto. O mais alto que podia. O sol ainda estava longe e o bicho alvoroçava o terreiro e os galos da vizinhança. Ninguém mais dormia sob o fuso horário do garnisé atrevido.

Na hora do desjejum queria ser o primeiro. O patrão entrava no cercado e o danado corria para encontrá-lo. Fiscalizava o suprimento da ração no cocho. Que ninguém chegasse perto. Quando se aproximavam, ele ia para cima. Espantava a todos. Até o galo, mesmo achando graça do topete do baixinho, afastava-se.

O atrevimento não durou muito. Logo começaram a fazer reuniões sem que o baixinho fosse convidado. Cochichos ao pé do ouvido nas sombras. O galo passou a ser cobrado para botar ordem no galinheiro. Ninguém aguentava mais tanta insolência.

O galo chamou-o para uma conversa. Não houve jeito. O garnisé não alterou o seu comportamento. Então começou o bullying. Quando cantava ainda no escuro para anunciar o dia, já tomava uma bicada de quem dormia empoleirado ao lado. Estatelava-se no chão e corria para o meio do terreiro continuar a cantoria. Ao querer ser o primeiro no cocho, levava bicada de todo mundo. Ficava por último.

Assim, o garnisé foi sendo socialmente isolado. O único apoio vinha das franguinhas da raça. Mas pouco elas podiam. Eram minoria naquele congresso.

Com o tempo o patrão foi percebendo que o bichinho apanhava de todo mundo. Estava emagrecendo. Andava estressado. Escondia-se onde fosse possível. Andava triste.

Sob a ótica de quem via as coisas de fora do galinheiro, o dono concluiu que não podia deixar o enjeitado garnisé à mercê de tantos bichos malvados. Por isso presenteou-o a um amigo. Mandou de mudança o garnisé atrevido. Junto foi a Mariquinha, uma das franguinhas da raça que já estava no galinheiro quando ele nasceu, para fazer-lhe companhia.

Na casa nova recuperou o ânimo. Era o rei em terreiro enorme, só para ele e a franguinha. Um rei meio sem graça, sem súditos. Portanto, não tendo em quem mandar, sobrava para a Mariquinha. Mas ela às vezes o enquadrava. Quando ele queria e ela não, não tinha conversa. Com as asas semiabertas e o pescoço esticado, traçando uma linha paralela ao chão, chispava para cima dele, que se escafedia entre as jabuticabeiras para escapar da fúria da companheira. Deve ser dor de cabeça ou um tipo de tensão pré-menstrual galinácea – pensava ele abobalhado.

Nas madrugadas fazia sucesso. Antes de amanhecer, começava a cantoria. Soltava a voz estridente e irritava os galos da vizinhança, que se punham a responder com os impropérios que podiam. Um de cada vez. Primeiro o de mais perto, depois outro mais longe e assim sucediam-se até recomeçar com o garnisé. Os passarinhos também acordavam. Ninguém mais tinha paz naquele pedaço.

E assim os meses foram-se passando. A casa que um deputado construía para sua amante, no terreno cuja lateral, nos fundos, fazia divisa com o galinheiro, ficou pronta. A moradora importante descobriu, já na primeira noite, o que era o canto de um garnisé na alvorada.

A mulher acordava e não conseguia mais dormir. Cada vez mais estressada, negando-se ao deputado, depois de uma semana resolveu se queixar a ele na visita vespertina.

- Há um galo aí do lado que não me deixa dormir. Tem um canto estridente, irritante. Não parece um galo normal. Assim fico cansada e sem ânimo para você. Tome providência, faça alguma coisa. Uma lei, uma portaria, uma norma qualquer.

Dias depois um fiscal da secretaria de saúde pública bateu à porta da morada do garnisé. A dona da casa foi atender.

- A senhora tem galinhas, isso é proibido aqui nesta região. É cidade, incomoda os vizinhos. Mau cheiro, barulho.

- Nós só temos o Major e a Mariquinha, sua mulher.

- Um major? Então aqui mora um oficial?

- Sim, o Major, nosso garnisé. E a Mariquinha...

- Então o Major não é um major? É um galo, desses pequenininhos?

- Isso mesmo, o Major é um galinho.

- Então não pode. Vou lhe deixar uma notificação. A senhora tem cinco dias para arrumar um lugar para esse major, ou melhor, esse galo. Caso contrário pagará multa. E o major... O garnisé será aprendido.

De novo o garnisé foi despachado para outro canto. Foi de mala e cuia, e levou a Mariquinha. Indignado. Como um major poderia ser afrontado por um deputado em pleno regime militar? Mesmo sendo o político do partido governista? Fosse ele um major de verdade, teria o tal deputado tamanho desplante? Mas a patente do galinho estava só no nome, uma pena para ele. Pena mesmo!

Na nova casa, o Major e a Mariquinha foram colocados em um galinheiro com um galo velho, meia dúzia de galinhas e uma ninhada de pintinhos. Alegrou-se novamente o garnisé. Pensou em assumir o poder imediatamente. Mas não contava ele com a falta de compreensão do galo. Meio caduco, o velho não deu trela ao pequeno. Nem lhe dera boas-vindas. Um olhar de aceitação sequer. Não queria papo. Guardava as energias que ainda tinha para cumprir o seu papel com as galinhas. Às vezes, após uma cobertura, caía de lado. Precisava de alguns segundos para recuperar-se. Havia dias em que cismava com uma só, esquecia-se das outras. Mas ia levando a vida como dava. Intruso não iria admitir jamais. Estava para nascer o frangote com tutano suficiente para despojá-lo do direito adquirido. Ainda mais um garnisé. Isso, nunca!

O baixinho tentava se aproximar para o diálogo, mas não encontrava receptividade. O velho partia para cima dele. Pequeno, escondia-se onde não podia ser alcançado. Um dia deixou a pouca educação e o respeito para com os mais velhos de lado, e determinou-se a enfrentar o galo. Atracaram-se os dois a bicadas e unhadas. Penas voavam para todo lado. As galinhas, apavoradas, puseram-se a cacarejar desesperadamente. Os pintinhos piavam apavorados e corriam sem rumo. Um escarcéu no galinheiro. Briga feia.

Aquela gritaria toda chamou a atenção do dono das aves, que acorreu para averiguar o motivo do alvoroço. Seria um ratão no encalço dos pintinhos? Um gaviãozinho, talvez. Ou a raposa fazendo a ronda de reconhecimento para atacar à noite?

Surpreso, deparou-se com uma cena apavorante. O garnisé tinha a crista em farrapos. O sangue já lhe tampava os olhos, porém não desistia da luta. Por sua vez, o galo, mesmo ofegante, administrava o entrevero com bastante tranquilidade, favorecido pelo porte e peso avantajados em relação ao adversário.

Na mesma hora o homem concluiu que os dois não podiam continuar no mesmo cercado. Entretanto, não havia outro para separá-los. Aquele era o único espaço disponível no quintal. Desta forma, só restava uma solução. Um dos dois tinha de ir para a panela.

O galo, pela idade avançada, jamais poderia oferecer uma carne macia e saborosa. Portanto, abatê-lo para comer seria uma péssima ideia. O garnisé, apesar de pequeno, ainda era jovem. Pouco tempo em uma panela de pressão haveria de ser suficiente para amaciar-lhe a carne, ponderava o homem.

Nada mais havendo a considerar, assim ficou sentenciado. O valente e persistente Major, que tanto almejava ser um rei de galinheiro, virou uma saborosa e revigorante canja.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 27/04/2012
Reeditado em 31/03/2021
Código do texto: T3636094
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