OS PORCOS E O TEMPO

Início dos anos 50! As manhãs eram muito azuis! Os dias eram tão claros, que parecia que o céu e a terra era uma coisa só, naquele fim de mundo.

Estamos no extremo oeste do Estado de São Paulo. Tudo era tão precário! As pequenas cidades da região viviam basicamente das atividades da agricultura e pecuária. A vida selvagem, vivia lado a lado com a civilização. Havia uma fauna variada, matas abundantes e rios piscosos que ajudavam na alimentação das comunidades rurais, formadas por pequenos agricultores, sitiantes, pescadores e peões das grandes fazendas. Os utensílios das casas eram característicos às necessidades da região. Ficavam pendurados nas paredes do lado de fora. São impensáveis nos dias atuais. Ferramentas usadas no serviço braçal, machados, serras manuais, foices, cuias, enxadões, enxadas, espingardas, berrantes, panelas de ferro, dependendo do local. Varas de pesc, jacás de colher frutas, peneiras de peneirar arroz e café. Torrador e moedor de cafés etc. Enfim tudo que ajudava na luta pela vida e era indispensável nas casas e nas famílias do interior no longínquo início dos 50. Haviam também artefatos exóticos, como monjolos ao lado das casas, movidos à agua para socar o arroz ou debulhar café e milho. As bicas de água, além de tocar os monjolos, serviam para formar pequenos lagos onde os patos nadavam e também matar a sede dos animais.

Naqueles tempos, a expansão cafeeira já era uma realidade. O rei negro era força pujante e impulsionava o crescimento das cidades, fomentando o seu desenvolvimento. As cidades surgiam de pequenos agrupamentos ribeirinhos, que aos poucos se tornavam vilarejos, muitos ainda ligados à pesca e atividades da caça. Aos poucos migravam para a lavoura e se tornavam pequenas cidades. O crescimento dos cafezais e de outros plantações como algodão e milho, além da pecuária, levavam muitas destas vilas, a se emanciparem à categoria de municípios. A expansão pecuária também era muito rápida, desde o no final dos anos 30. O boi ia devagar tomando lugar das matas e se emancipando como novo dono do pedaço. As matas eram formidáveis. Eu ainda testemunhei nos finais dos 50, início dos 60, muitas destas matas, todas ricas em Perobas, Aroeiras, Cedros, Angicos, Pau D’ alhos, Guaiuviras e Ipês. Quanta riqueza havia naqueles solos!

A madeira, portanto, era outra fonte de riqueza dada a sua extraordinária abundância. A vida, assim, era, como não poderia ser diferente, primitiva e bucólica. Os carros de bois, os cavalos, as carroças e charretes eram os meios de transporte mais usados. Os caminhões e tratores já existiam, mas eram raríssimos. Carros? Naquela época, no interior eram bem incomuns. O Famoso Ford bigode, o conhecido “Pé de Bode” era a unanimidade e pontilhavam na paisagem, sempre da posse dos ricos das cidades. Rústico como um trator, simples e desconfortável como um trem de carga. Enfim uma carroça movida à gasolina, o Ford bigode despertava admiração e desejos!

Desde o início do século 19, com a morte dos fundadores, as grandes fazendas iam aos poucos sendo divididas. Os inventários das famílias, estabeleciam novos donos de áreas cada vez menores. Muitas fazendas já eram frutos de muitas subdivisões e deram origem ao surgimento de áreas ainda menores. Assim era comum, apesar das grandes fazendas, por volta de 1950, encontrar pequenos sitiantes, que produziam uma agricultura de subsistência e mantinham algumas criações de suínos, cavalos, carneiros, cavalos e vacas para aumentar a renda e garantir o sustento das famílias.

Um destes sítios pertencia ao meu avô. Homem rude, de origem alemã, emigrado para o Brasil ainda criança, vindo do sul, foi se embrenhado naquelas paragens por conta de sua habilidade de construtor de igrejas, depois sitiante. Trabalhador incansável, resoluto, alegre e profundo conhecedor das técnicas de plantio e dos segredos da terra e do tempo. Fazia enxertia nas plantas. Uma grande novidade para a época, técnica trazida por seus pais alemães. Assim um pé de mexerica, também produzia limão cravo. O pé de limão galego tinha um galho que produzia mexerica bode e vice-versa. Um prodígio, para a época. Cuidava das árvores doentes. Também era notável seu saber no manejo dos animais e conhecedor de muitas doenças dos cavalos, vacas e principalmente porcos, os quais criava em grande quantidade soltos pelo sitio, para produção de carne e óleo, os quais vendia para aumentar o faturamento do sitio. Era comum sua ida a cidade com os animais vivos no carroção puxado por seis burros e a volta carregado com os apetrechos básicos da época, como o imperativo querosene, a carne seca, manjuba salgada, sacos de açúcar, arreatas de selaria, farinha de trigo, fermentos, cordas, laços e remédios. A velha cibalena, o antiguíssimo guaiacol para dor de dente, sempre faziam parte do arsenal doméstico, além claro, da munição, pólvora, chumbo, espoletas, anzóis, isto jamais poderia faltar.

A criação de porcos era uma grande atividade do sítio do velho Alemão. Landrace, Duroc e o Nilo Preto eram as raças mais cultivadas pelo sabor da carne, precocidade e rusticidade. Para alimentação dos porcos, meu avô plantava enormes áreas com mandioca, rica em carboidratos e altamente produtivas naquelas nesgas de terras roxas de altíssima qualidade. A mandioca é uma planta generosa, que não exige solos ricos e vai muito bem mesmo em solo arenosos, uma dádiva do criador, porém quando encontra um solo fértil, como era o caso do sitio do meu avô, `s margens do rio Tietê, explodiam em crescimento e vigor. Algumas raízes chegavam a superar facilmente os 70 kg, algumas atingindo os inacreditáveis 100 KG. Abóboras gigantes, quase do tamanho de um homem não era coisa do outro mundo e ficavam expostas na frente dos armazéns da cidade, para atrair as atenções. Coisa difícil de acreditar nos dias de hoje, onde o que vale é a precocidade do plantio!

Atualmente as terras desta região abrigam plantações mais nobres e exigentes em termo de solo, como café, laranja ou ainda são abusivamente ocupadas por mares de canaviais intermináveis para produção do etanol. Um desperdício, se pensarmos que temos tantas bocas para alimentar neste mundo!

Naquela época tudo era muito diferente. A simples e banal mandioca, creiam, já ocupou vastas porções daquelas terras nobilíssimas, numa época em que nossa agricultura era de puramente subsistência e usada integralmente para produção de alimentos, nunca para gerar energia e riqueza concentrada nas mãos de poucos, como acontece nos dias de hoje. Cabe ressaltar que as plantações obedeciam a métodos naturais, hoje chamados de primitivos. Não agrediam o solo, não usavam defensivos agrícolas, pesticidas e nenhuma química. Havia um controle natural das pragas feitas, pelos sócios felizes dos agricultores, os pássaros, que se alimentavam dos insetos que hospedavam as bactérias e fungos, promotores das doenças. Por conseguinte, os rios eram limpos e os peixes abundantes e saudáveis. A natureza era a mãe de todos e tudo prosperava no seu equilíbrio maternal.

Pois bem, Peter (Pedro em portugues) Govedice, ou simplesmente Pedro Alemão, meu avô, dentre outras coisas plantava grandes áreas de mandioca nas suas terras roxas à beira do rio Tietê, nas bacias de Iacanga. Com o passar dos anos, alguns mandiocais e outras plantações, eram abandonados em detrimento de outras áreas novas de plantio um pouco mais afastadas do rio, no interior da propriedade, menos sujeitas a enchentes e ataques das capivaras. Assim muitos pés de mandioca, nunca foram colhidos e ficaram por lá crescendo por anos e anos a fio, fechando-se como verdadeiras matas à beira do rio, enroladas por um emaranhado de cipós.

No sitio havia uma fartura grande de espécies animais. Além das vacas leiteiras, cavalos, criava-se de tudo. Galinhas, patos, pavões, marrecos, gansos, galinha d'angola, cabras, porcos, pombas, até paturis (pequenos patos selvagens) domesticados, também conviviam lado a lado, disputando espaço e comida com a bicharada doméstica. Muita variedade. Muita proteína.

Esta abundância animal, trazia sempre os gaviões para perto da sede, sempre de olho em algum pintinho tonto ou uma franguinha distraída. Eram rechaçados com tiros de espingarda. Por isso eram extremamente cuidadosos e ariscos. Ficavam pousados de longe nas árvores secas, só observando. Faziam ataques cirurgicos.

Do outro lado da margem do Tietê haviam também outros sítios que eram de posse de uma comunidade de agricultores japoneses que cultivavam legumes de variados tipos, todo tipo de hortaliças, além de arrozais verdejantes. Tudo para venda nas cidades grandes.

O rio ali era bem largo. Em alguns trechos podia atingir até 1.300 metros de largura.

Assim não havia muita comunicação entre os sitiantes de margens opostas! Encontravam-se esporadicamente em algum evento religioso da cidadezinha mais próxima, Iacanga, que ficava a uns 20 km dali. Uma distância enorme, quando cumpridas no lombo de um cavalo ou no dorso de uma charrete saltitante. A vida escorria mansa. Nunca soube se a felicidade morava naquelas bandas, mas, por certo, nunca vi a tristeza dando as caras por lá.

Num belo dia, logo cedo, meu avô, que se encontrava no curral, ordenhando uma de suas vacas, viu uma comitiva de japoneses cruzando o rio em vários botes, na direção a sua casa. Ele levantou-se, colocou o chapéu de palha na anca da Malhada a quem ordenhava e enfiou os polegares dentro da cinta que prendia a calça com suspensórios, deixando os outros dedos em paralelo com o corpo, na altura das virilhas, tamborilando-os nas coxas, num gesto que não escondia alguma ansiedade. Que haveria de ser? Pensou ele. Ele não tinha nenhum relacionamento com aqueles agricultores nipônicos. Que poderiam eles querer a esta hora da manhã?

Logo a comitiva de olhos puxados, com os rostos tensos e lábios ressecados, se acercaram do meu avô. O cumprimento foi mínimo e entrecortado. Um “ b’m dia” nada mais. Meu avô que era um homem extrovertido respondeu mais efusivo com um “ Bom dia meus amigos”, bem claro, com todas as letras bem pronunciadas com seu irrepreensível sotaque germânico. Os japoneses hesitaram um pouco. Entreolharam-se. Logo, o que parecia o mais idoso, baixinho e atarracado, com as calças sujas de terra e camisa de fustão, abotoada na gola, sem encará-lo diretamente, falou com um português sofrível de quem ainda estava longe de dominar nosso idioma:

- Seo Alemón, seu porco atacou roça e comeu, estragou verdura! Prejuízo “muto” grande! Precisa acertar, né !

Meu avô entendeu direitinho, mas se fez de rogado, até para dar tempo à surpresa que o fato lhe trazia.

- Como assim? Seu...ahn? Qual o nome do amigo?

- Issao..Issao Kamikawa!

- Então seu Issao, redarguiu agora mais sério, meu avô. O que o Sr está dizendo, há meu ver, não faz sentido. Se eu entendi direito, sua roça foi atacada, por animais, certo?

O japonês balançou a cabeça afirmativamente, no que foi acompanhado pelos outros simultaneamente.

- Bem, disse meu avô! Há vários animais que poderiam ter feito este estrago. Um boi, por exemplo ou porcos do mato. O Sr já verificou com os outros sitiantes, seus vizinhos do seu lado do rio, se algum boi ou porco deles, não pulou a cerca e atacou sua horta? É mais fácil acreditar nisso do que na sua versão de que foram meus porcos.

o Japonês chefe da comitiva, respondeu-lhe resoluto franzindo o cenho:

-No. Foi seo porco. Viu rastro e viu porco igual o seu!

Recuperando o velho humor, meu avô arguiu que entre a roça dos japoneses do outro lado do rio e o sitio dele, havia 1.3 quilômetro de água de distância e porco, pelo que se saiba, não sabe nadar!

- O Sr sabia que porco não nada, Sr Issao?

- Isso pareceu desconcertar o japonês, mas ele retrucou.

- Foi porco igual o seu. Naguchi viu! Disse apontando para outro japonês, este magérrimo com rosto pequeno, que o chapéu de palha gigante, deixava ainda menor.

-Bem senhores, disse meu avô querendo encerrar a conversa.

- ...Porco não sabe nadar! O rio é largo! Porco também não sabe pilotar uma canoa para ir comer do outro lado do rio. Assim, só posso lamentar seu prejuízo, mas não há nada que eu possa fazer, porque estou certo de que não foram os meus porcos que atacaram suas plantações. Talvez tenha sido capivaras ou mesmo os catetos, que são muito comuns nestas bandas. Os catetos e queixadas andam em bandos e podem devastar plantações em poucas horas.

Eu sinto muito, mas não posso aceitar essa conversa!

Disse as últimas palavras com uma inusitada rispidez, que os japoneses deram meia volta e partiram.

A reclamação dos japoneses, foi motivo de muita risada e acalentou as conversas do meu avô com minha avó e seus empregados, além dos vizinhos em torno da mesa de café por vários e vários dias.

Meu avô, que nunca perdia uma chance de fazer uma piada. Se exultava com o episódio, dizendo aos seus camaradas:

-Ses viram essa! Precisa amarrar os botes, porque tem porco, piloteiro aqui. Pior són os que aprenderam a remar com suas " mônzinhas". Imitando um porco segurando um remo. Com ironia seu sotaque piorava e como todo descendente, tinha dificuldade de pronunciar os ditongos formados por ão.

Uns dias depois, Pedro Alemão estava serrando um tronco com ajuda de um empregado, quando viu novamente os japoneses cruzando o rio.

-Dieses Ding irritiert mich, Heiliger Gott! Esbravejou em alemão. Voltando-se para os empregados um pouco assustados, suavizou o tom e mais calmo disse:

- Lá vem os Tanakas!!! O que será desta vez?

Os japoneses em bando aportaram seus botes e se encaminharam em direção da casa do Alemão, mas desta vez tinham alguns porcos feitos seus reféns com eles.

Meu avô ficou, bem surpreso. Issao comandava o grupo e desta vez não titubeou. Dirigindo-se ao meu avô foi logo falando:

-Este porco é seu? Haviam dois Nilos pretos e um Landrace pintado nas mãos dos japoneses, presos nas cordas. Acostumados com seus porcos, meu avô logo os reconheceu e não pensou em mentir.

Disse, com alguma hesitação:

- Ssim! De fato estes porcos são daqui. Mas que diabos eles foram parar do outro lado do rio? Isso é mistérrio! Disse ele. Quando nervoso, acentuava no sotaque alemão.

-Issao deu-se por vencedor e ficou bem confiante.

– Estragou muita coisa. Melhor ver com os olhos! O convite era uma ordem àquela altura.

- Tá bom. Solte os porcos. Vamos lá ver o que eles fizeram, disse entre chateado e incrédulo, meu avô.

Rumaram em suas canoas e botes para o outro lado do rio atrás dos japoneses. O estrago era mesmo grande. Várias leiras de plantações de batata doce e almeirão haviam sido arrasadas pelos porcos. Canteiros de beterraba, melancia entre outros foram beliscados aqui e acolá, os canteiros de alface pareciam ter sido bombardeados, tal o montante de perda.

Fizeram um acordo financeiro e meu avô concordou em pagá-los assim que vendesse alguns animais.

Mas àquela altura, o mais importante, era impedir os porcos de atravessar o rio para atacar a propriedade dos japas e ele se comprometeu a fazer isso o mais rápido possível.

Por um momento, meu avô pensou em dar um fim na criação, mas desistiu da ideia, curioso em descobrir como se dava a travessura dos porcos.

Pensou-se inicialmente que os porcos tivessem desenvolvido habilidades aquáticas. Mas quando jogaram alguns porcos no rio, perceberam que isto não era possível. Eles, com uma corda amarrada em um dos pés, afundavam como um martelo sem cabo e acabaram afogados. Foram resgatados pelos botes mais abaixo e terminaram na panela no dia seguinte.

Até que Mineiro, empregado antigo, teve a brilhante ideia de segui-los, por horas e horas noite adentro. Lá pelas 4.00hs da madruga, ele notou um certo movimento dos porcos em direção ao velho mandiocal abandonado, cujos pés de mandioca, com os anos, já tinham atingido alturas inimagináveis, como se fossem gigantescas árvores, de angicos ou perobeiras com troncos retorcidos e enormes. Suas raizes pareciam árvores gigantes caída.

Ajudado pela luz da lua cheia e seguindo seu instinto, com a velha astúcia e habilidade de caçador, Mineiro foi seguindo o bando, até que eles sumiram numa grota nas margens do rio, perdida em meio a arbustos densos e moitas fechadas de capim colonião em meio ao cipoal.

Ao adentrar na grota, se deparou com uma raiz enorme escura, que parecia uma manilha de cimento semienterrada no chão que seguia por baixo da terra em direção ao rio.

Ao examinar com o farolete, percebeu que havia um buraco nela e antes, um trilho onde o capim estava bem amassado e sujo, por onde os porcos adentravam naquela raiz. A princípio pensou ser um ninho feito pelas porcas para cria de seus bebês, mas viu que eram muito profundos. Esperou amanhecer e ai fez a sua descoberta mais notável de sua vida, que o deixou boquiaberto.

Era uma raiz de uma mandioca gigantesca que pela fertilidade incrível do solo e pelo tempo que lá ficou, cresceu assustadoramente e se encaminhou por baixo do rio. Esgueirando com o corpo, viu ainda, que havia um túnel dentro da raiz. Deduziu, então, que os porcos foram devorando o interior da raiz de mandioca e acabaram por cavar um túnel. Seria isso?

Ele ficou encasquetado e seguiu se arrastando pelo túnel adentro, tentando comprovar sua tese, concluindo que de fato, a raiz atravessava toda a extensão por baixo do rio. Andou um 5 metros e não teve mais dúvidas. Os porcos, ao comerem a mandioca, acabaram mesmo por construir um túnel gigantesco, fazendo desta uma passagem para atacar as roças dos japoneses do outro lado do imenso rio. Mesmo que nesta parte o rio se fazia uma pouco mais estreito, era inacreditável. A ponto de ele ter entrado no túnel por várias vezes para poder crer naquilo que seus olhos lhe mostravam claramente.

Gente, impensável, mas era isso mesmo que vocês leem: A raiz da mandioca crescera por debaixo do rio por mais de 1.000 metros e servia de passagem para os porcos irem atacar a roça dos japas do outro lado.

Quando contou sua descoberta ao meu avô. Este quase teve um ataque do coração de tanto rir.

-Você bebeu pinga de macumba, Mineiro? Foi? Que tem você, loco?

-Porcos cavaram um túnel, é? Será que a prefeitura não quer contratar eles? São porcos engenheirrrros ! Carregando no alemão. Cada frase, seguida de uma estrondosa gargalhada. Esfolou-se de tanto rir. Saiu rindo de volta para casa, indo em direção da minha avó que cozinhava nos fundos. Nestas horas, queria dividir suas troças com todos como todo grande gozador.

- O Zé, o Inácio, vem aqui, chamou os outros empregados. O Mineiro descobriu um porco engenheiro e quá..quá..quá..qua...! O velho alemão segurava a barriga não se sabe se para conter a gargalhada ou dar mais impulso a ela. Riu até se destrambelhar!

Mineiro ficou fulo de raiva com a falta de confiança no seu relato e deu-lhe as costas e foi amolar seu facão no fundo do rancho. Amolar facão era sempre um sinal de que a pessoa não estava para brincadeiras.

Mais tarde, refeito parcialmente do ataque de riso. Meu avô pediu ao Mineiro para levá-lo ao local.

Mineiro ia vários metros na frente, ainda zangado com a zombaria e escárnio sofrido. Não queria conversa.

Quando chegaram, depararam com o túnel de quase 50 centímetros de altura. Meu avô ficou pasmo e caladinho. Só rosnava limpando a garganta dizendo:

- Mein Gott! Não é possível! Jurava que era brincadeirra!

Mineiro sentiu-se vingado. Tá vendo agora, seu Alemão? Perguntava, ainda irritado.

Então ele teve uma ideia brilhante de soltar os cachorros no túnel e checar do outro lado para comprovar sua teoria. Soltaram três cães experimentados em caça de veados e capivara. Campeão, um cachorro mestiço americano, farejador nato, foi na frente, liderando Magrelo e Faro Fino.

Logo, Zé da Onça, Inácio, meu avô e Mineiro atravessaram o Tietê de canoa. Quando chegaram do outro lado, os cachorros lá estavam de velho, perambulando pelas roças dos japoneses. Estes também ficaram estupefatos com a descoberta e muito contentes pelo fato de que de agora em diante não mais sofreriam com os ataques dos porcos do meu avô.

Issao, pediu um pedaço de rama da tal mandioca para plantar em sua roça. Mas meu avô, brincalhão como sempre, disse que não podia, pois ela só crescia do outro lado do rio e que não adiantava plantá-la em suas terras. Era mandioca alemã.

O túnel foi logo tapado com madeira. Os porcos mais velhos foram vendidos para não ensinar a traquinagem aos mais novos. Os japoneses seguiram trabalhando muito e quietos como formigas. Meu avô seguiu tocando suas terras e sempre achando alguma coisa para rir todos os dias.

O tempo, no entanto, jogou duro com todos eles e virou as páginas do seu livro amarelo.

Retirou aquelas pessoas da paisagem e pôs outras no lugar e depois outras e mais outras, cada vez mais diferentes, como sempre faz!

O tempo é mesmo inexorável, muda e destrói todas as coisas. Acabou com as matas, com as madeiras, com os gigantescos mandiocais, com a simplicidade, com os bichos, os homens e os porcos, até o rio não é mais o mesmo. Represado pelas represas hidroelétricas, desfigurou-se, virou uma enorme massa de água rasa e poluída. Eu também cresci e vim tentar a sorte e a vida em São Paulo.

Meu avô também partiu, com ele seu velho sítio sendo englobado pelas novas fazendas que se formaram mais tarde na região.

Eu era menino, porém uma das estórias engraçadas o meu avô ficou escondida dentro de mim, protegida do tempo mau, intacta, no baú da minha memória. Eu a guardei, a resgatei e trouxe-a aqui para vocês, porque sei que vocês também não gostam da maldade do tempo e acreditam, como eu, que nos tempos como aqueles e nas estórias como essa do meu avô, o tempo nunca passa e a inocência, permanece!

Celio Govedice
Enviado por Celio Govedice em 06/10/2012
Reeditado em 03/12/2020
Código do texto: T3918879
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