Chalálá, Cap. II

Nunca se soube de quem partiu a idéia. Talvez fosse dos respeitáveis senhores de terno do início de rua, pessoas de classe média, proprietários ou moradores das melhores casas. Ou quem sabe de Joaquina, a alagoana bonita de 35 anos que vivia com a filha numa das casas próximas ao final da rua, quase na subida do morro. Dos garotos e meninas é que não deveria ter sido. Joaquina preferia conversar com Chalalá sempre em particular. O que estava se tornando praticamente impossível, já que ele fazia questão de atender a todos. E até a si mesmo, com freqüência. Com sua pele morena, os cabelos cacheados, o joelho torneado sempre visível nas roupas que usava, a volúpia no andar, no falar e até mesmo no sorriso dos dentes perfeitos, o homem que estivesse com Joaquina só poderia pensar primeiro em comê-la. Era mais do que natural. E Chalalá era um homem normal. Só que para ele, considerando-se sobretudo a importância que lhe davam e que nunca havia pensado em conseguir, a conquista de Joaquina tratava-se de uma recorrência pouco original. Ligava para isso tanto quanto ligava para tudo o que tiravam de sua casa e depois até, em certos casos, devolviam. Conhecedora de suas potencialidades, não pela exposição demorada ao espelho de casa, mas pelos olhares gulosos e insistentes de dez entre dez homens que passavam a pé na rua ou em seus carros, Joaquina percebeu logo que com Chalalá nada disso adiantava. E foi isso que a cativou. Para ela Chalalá era um cara que vivia no mundo da lua. E sabia fazer com que os outros reconhecessem que esse era um direito seu. Se ele fosse encontrado conversando com os passarinhos na única árvore que havia no fundo do seu quintal de terra batida, isso seria considerado absolutamente normal. Era como o Mané, o homem de Pau Grande, um dos ídolos do pintor, esse sim um comedor em potencial.

Como não podia deixar de ser, os dois não puderam ser omitidos da especulação feminina.

- Romana, você não se incomoda com a insistência da Joaquina em querer falar com Chalalá sempre em particular?

- Quê isso, menina! Tenho mais em que pensar. Além do mais, para mim não é Joaquina. É Joaquim.

- Ora, Romana, menina é você. E só você mesma. Uma mulher com uma bunda daquela não pode ser lésbica. E a filhinha dela vai pelo mesmo caminho. Como é bonita a sapequinha.

- Não é isso que estou dizendo. O que imagino é que talvez Chalalá converse com ela do jeito que conversasse com um Joaquim. Não ligo muito. Ele deve saber o que está fazendo. Sempre agi assim. Ele faz o que quer. E tem dado certo.

O fato é que estávamos no mês de maio e surgiu a idéia de que Chalalá deveria se candidatar ao cargo de vereador. Sua eleição seria mais do que certa. Todos sabiam disso. Chalalá já era naquele momento conhecido em toda a cidade. O problema era convencê-lo do projeto. Os mais velhos tinham medo de fazer a proposta. Indivíduo de índole rebelde, embora sempre respeitador e raras vezes irascível, Chalalá não era o tipo que pudesse facilmente aceitar a contingência de se achar envolvido nas relações mórbidas de um ambiente cuja sordidez e hiprocisia eram, todos reconheciam, os traços marcantes. Características incompatíveis com o perfil do maluco que pintava quadros que apesar disso vendiam bem. Sabiam que Chalalá não precisava de dinheiro. Algum do que tinha até conseguia distribuir. Diferente de todos os que se dedicam a esses cargos, cuja preocupação maior é sempre a de satisfazer às exigências do próprio bolso. Só que todos sabiam também que a maior preocupação de Chalalá era com o coletivo. Era uma coisa intrínseca nele. E, se para alcançar certo sucesso nesse campo fosse necessário algum sacrifício, ele não hesitaria em vivê-lo. Assim, combinaram os adultos que a proposta deveria ser levada pelos garotos e meninas do bairro em que Chalalá e Romana viviam. Sabiam que o apelo seria forte, sendo a idéia, nessas condições, praticamente impossível de não se concretizar. Chalalá era fissurado em crianças. Passava a maior parte de seu tempo com elas. E nesses momentos escutava muito mais do que falava.Todos pensavam que ele ensinava alguma coisa. E ele sempre preocupado em aprender. Ou em ter de volta a sensação do tempo em que tinha sido criança também. Chalalá gostava de lembrar que um dia pensou que todo mundo fosse filho de Papai Noel, como na música do grande Assis Valente, mais um de seus ídolos, que o fazia chorar toda vez que pensava nela, principalmente quando havia crianças por perto.

A estratégia tinha que dar certo. Era o tipo do desafio que os garotos gostariam de enfrentar. Estavam certos de que ele aceitaria. Apenas não tinham idéia, assim como o próprio Chalalá, da dimensão do que viria depois.

Chalalá, como se previa, não pôde resistir à forte pressão dos garotos e meninas na varanda de sua casa, sob o azul desbotado daquelas paredes cujo reboco ameaçava cair. A reunião havia sido provocada por eles, que vieram cheios de refrigerantes de dois litros. Romana fez questão de se encarregar dos doces. Sabia que ia ser difícil para o marido. Trouxe-lhe chá. Chalalá impôs apenas uma condição: que fosse criado no bojo de sua candidatura um novo partido político unicamente pelo qual aceitaria concorrer: O Partido da Causa Perdida, PCP ou 2PC, que muitos depois interpretaram como sendo duas vezes o Partido Comunista. Chalalá imaginava que, com um nome tão pouco sugestivo ou inapropriado, o movimento refluísse e, mesmo depois de eleito, se isso ocorresse, ele acabasse ao final do mandato com a garantia de poder voltar para sua casa, seus quadros, Romana e as peladas no campinho ao final da rua, no início do morro. Tudo isso porque ele achava que não teria condições de efetivamente fazer alguma coisa. Nunca tinha gerenciado nada. Não tinha a menor experiência administrativa. Achava, como todo mundo, que os políticos estavam sempre preocupados com os próprios interesses e nunca com os da coletividade. Não dava muita importância a isso, talvez por não ver muito sentido nesse tipo de conduta. Reconhecia, contudo, que as pessoas tinham esse direito – o direito de se locupletarem. Achava, portanto, difícil a convivência num meio em que os interesses da maioria seriam contrários aos seus. Parecia curioso que todos achassem que ele pudesse sair vencedor, suportar a pressão e até conseguir alterar o padrão de comportamento vigente na Câmara dos Vereadores. Ria sozinho quando pensava que o achavam um santo. Mas, se lhe fazia mal decepcionar uma pessoa, o que dizer de uma multidão? Sim, porque sua popularidade tinha praticamente se disseminado pela cidade. E penetrara nos mais diferentes níveis. Pelo menos um dono de uma cadeia de supermercados viera procurá-lo e o fêz, segundo lhe disse, em caráter sigiloso. Não pediu nada e nem nada ofereceu. Queria apenas conhecê-lo. Algumas senhoras da sociedade, atrizes e jogadores de futebol disseram-lhe que não viam melhor candidato. O policial gordo que o agredira visitava-o com certa freqüência. Pedira-lhe cerimoniosamente que aceitasse a discreta segurança pessoal, extensiva a Romana, que ele e mais três colegas estariam dispostos a oferecer-lhe nas horas vagas e mesmo nas horas de trabalho, sempre que fosse possível. Até o pessoal do movimento, no morro que havia no final da rua, reconhecia a liderança de Chalalá e lhe tinha respeito. Anteriormente houve situações em que foi interpelado ao subir o morro para resgatar um garoto ou menina em apuros por ter se tornado inadimplente, em função do consumo excessivo de drogas decorrente do aumento da sua dependência. Agora Chalalá subia o morro à hora que queria, sozinho ou acompanhado, e muitas vezes era para demover o garoto ou a menina, principalmente no caso de iniciantes, da intenção de aquirir maconha ou cocaína. E a rapaziada nada falava. Às vezes diziam até que Chalalá estava certo. Curiosamente as ações de violência na rua praticamente acabaram. Tinha-se a impressão de ter havido um acordo entre a polícia e o pessoal do tráfico. Houve uma diminuição considerável do número de investidas policiais e o movimento ficou reduzido apenas aos consumidores compulsivos ou aqueles com acentuado grau de dependência, que não eram muitos.

Mas o tempo correu, logo chegou o dia 3 de outubro e não deu outra: Chalalá foi eleito. Com uma votação incrível. Teve praticamente o triplo dos votos alcançados pelo segundo colocado. Carlos Gonçalves Damasceno era agora o Chalalá Gonçalves Azul.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 21/11/2012
Reeditado em 13/12/2012
Código do texto: T3997092
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