O BOIZINHO ROSADO NA FAZENDA MODELO
“Camaradas, já ouvistes, por certo, algo a respeito do estranho sonho que tive à noite passada. Mas falarei do sonho mais tarde. Antes, tenho outras coisas a dizer.” - George Orwell em A Revolução dos Bichos.
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PRIMEIRA PARTE - Toda fábula tem um bosque, depois desse bosque o fazendeiro construiu um sonho. É sua fazenda seu esforço, ele prefere o campo e quase não aparece na cidade que fica logo ali. No meio do bosque, entre a cidade e a fazenda, bem no meio de uma clareira, um pé de manacá foi pintado para ilustrar essa introdução.
Na tarde que finda agora, chuva chumbo escurece nuvens pesadas. O vento sopra da colina a tempestade anunciada. Foi então e ao mesmo tempo que três grandes porcos e exaustos chegam resmungando ofegantes na porteira. Em cada fuça assustada olhos de pânico arregalados.
O fazendeiro, compadecido porque é religioso, deu-lhes abrigo no paiol que é o celeiro da fazenda e antes de correr para dentro da sua casa, apertando mais os olhos para lembrar-se da mulher que o esperava na frente da televisão, disse aos porcos:
_ Tudo podem, só na casa não é permitido entrar.
Um trovão fez tremer toda a terra. E nela a fazenda o paiol toda a palha do milho reunida e os cascos da bicharada. A chuva caiu barulhenta, nem deu para ouvir o que os porcos tramaram.
O sol já estendia seus braços longos sobre tudo quando enfim amanheceu.
O sol amanheceu todos os dias para todos até a semana seguinte quando na porta do paiol todos os bichos da fazenda amontoados desorganizavam uma fila, a razão para o conclave era esse comunicado pregado tão alto que nem todos alcançaram leitura.
REUNIÃO EXTRAORDINÁRIA NO CELEIRO,
TODOS DEVEM COMPARECER.
Chegamos a tempo de ouvir o cavalo relincha pedindo silêncio:
- Todos estão presentes?
- Tooooodooooos - Respondeu o coro das ovelhas.
O cavalo continuou:
- Bem sabemos que não é todo dia que temos uma reunião...
- Ora, nunca tivemos uma! - Interrompe a galinha choca, fazendo questão de deixar o cavalo com cara de taxo. Mas ele continua afirme no seu propósito:
- Ouçam todos, os porcos têm algo a dizer.
O cavalo sai de cena, trota para o lado e dá passagem ao primeiro dos três suínos.
Disse o primeiro:
- Irmãos, eu já fui um porco rico, estudei nas melhores escolas, tive mesa farta e toda a liberdade do mundo. Mas um dia o vento forte soprou sobre tudo que eu tinha e tudo que eu tinha se perdeu.
O segundo porco não deu tempo para que ninguém suspirasse e disse:
- Irmãos, eu sempre acreditei na bondade dos justos, nas promessas dos fortes e me iludi com ideologias. Toda filosofia mudaria meu mundo, é o que sempre acreditei. Mas um dia o vento forte soprou sobre tudo e tudo que ficou do que um dia acreditei foi apenas o vento soprando no vazio.
No silêncio surpreendente que se fez o terceiro porco depois de erguer a cabeça finalmente disse:
- Irmãos, nem a melhor casa edificada com pedras pode suportar o vento forte da cobiça, a tempestade da ganância e a fúria da injustiça. Nós devemos nos unir se quisermos permanecer de pé quando o vento forte soprar novamente. Devemos nos unir conta as ideologias que prometem a fraternidade que corrompe nossos filhos nas escolas, todos nós, os de penas e os de pelos, os de cascos lisos e os de cascos fendidos, os carnívoros, os herbívoros. Nós porcos sofremos a verdade e vamos conduzi-los para a fazenda modelo. Nenhum de nós fará mais que sua força permitir, e de nosso trabalho homem algum viverá. Animais da fazenda, uni-vos!
A turba delira.
- Silênnncio! - Grunhe o terceiro porco. Sua voz tinha a força de um forte vento breve. Era um silêncio de dar medo, dava para ouvir o coração das galinhas que ainda estavam dentro dos ovos, o porco continuou:
- Tenho em minhas patas a nova lei do paiol. Depois passou solene o documento para o cachorro que leu em voz alta:
__________ A NOVA LEI DO PAIOL ___________
1 - os animais tomarão a fazenda e cuidarão dela.
2 - o milho será nossa religião.
3 - o milho será nosso trabalho.
4 - o milho será nossa diversão.
5 - o milho será de todos.
6 - a próxima safra deve ser sempre a melhor safra.
7 - todos os grãos serão guardados nos cofres dos porcos para o progresso da ordem.
Um raio partiu o céu em mil pedaços e o clarão iluminou uma enorme caixa nos fundos do paiol. Como aquilo veio parar aqui? Isso não importa, talvez seja a especialidade do ilustrador surpreender. É o cofre. Todos temeram em segredo a força dos porcos. A partir daquele dia nenhum grão se perdeu. As vacas comeram menos, os cavalos puxaram a menos dois balaios de milho e as galinhas tiveram sua ração cortada pela metade sem que botassem menos por isso. Os ratos passaram a morar no poleiro e montariam guarda em turnos. A lei foi justa para todos. O galo desapareceu. Aos porcos somos gratos.
Todos somos gratos ao porcos, menos o boizinho rosado.
SEGUNDA PARTE – No calor dos acontecimentos ninguém deu pela falta do Rosado, estávamos acostumados com sua ausência, mesmo quando estava no curral ninguém o percebia porque o danado desenvolveu técnicas de invisibilidade.
O Rosado sempre foge para o outro lado.
Quando o sol se põe entre as colinas e o dourado se espalha na superfície do lago todo o vale fica colorido. Entre manacás e lírios o boizinho se esquece da fazenda, passa o tempo percebendo. Percebe insetos pequeninos desse tamanho e desse tamanho grande de assustar zunindo para o ar ficar cheio das vozes deles. E tem as borboletas e as abelhas. E outras criaturas que ele não sabe o nome só para inventar apelidos divertidos. O Rosado dá nome novo para tudo que é coisa velha nesse sonho.
O que o Rosado vai fazer lá não é ver o que não há.
Todo esse zunido dos insetos, o cacarejo das perdizes, o chilreio dos pardais, todo esse barulho harmônico é música para os ouvidos dele. O Rosado busca paz na sombra do manacá. E isto explica porque ele não sabe o que se passou na fazenda depois da chuva de ontem.
O boizinho passara aquele dia e, excepcionalmente, a noite toda contemplando o vale. Acordou quando não ouviu o galo. E porque havia algo de extraordinário nesse silêncio, resolveu perceber de longe e só voltou pra fazenda tarde.
O rosado percebeu a fazenda escura e porque tinha ouvido apurado percebeu ruídos diferentes. Talvez porque tenha brincado com os insetos percebeu tristeza no ar. Talvez porque estivera na companhia de tantos amigos, tenha percebido a fazenda vazia.
Sem saber que os animais exaustos já descansavam, aproximou-se lentamente da varanda da casa, a sede da fazenda estava acordada. O galo não estava no poleiro nem o cachorro no capacho. O Rosado espiou para dentro:
- Mas que é isso que vejo?
Dentro da sala, fumando e dando gargalhadas, de pé três grandes porcos elegantemente vestidos dançavam. Sentados de frente para televisão, o fazendeiro e sua esposa tinham os olhos esbugalhados como se assistissem vidrados ou mortos a sombra dos porcos na tela.
Os três porcos bebiam vinho em taças de cristal, não perceberam a presença do Rosado vigia na janela. Como se acordasse de um pesadelo, invisível o boizinho rosado se retirou em busca de sentido. A cabeça rachada ao meio, o Rosado era agora um boizinho de duas cabeças.
Arrastou-se cambaleando até curral, todos já dormiam.
Arrastou-se cambaleando até o paiol, todos já dormiam.
Arrastou-se até cambaleando até o galinheiro onde os ratos guardavam a entrada e intuiu que não devia ir ao bret, mas decidido a ver tudo com esses olhos que a terra há de comer um dia chega ainda cambaleando no tronco do barracão.
O horror decorava as tábuas.
O couro do boi malhado esticado sobre as tábuas do bret no tronco do barracão.
O Malhado tinha sido esquartejado.
No canto superior esquerdo, do lado da cabeça pendurada do Malhado , uma tábua com a seguinte inscrição:
A NOVA LEI É PARA TODOS
TERCEIRA PARTE – Quando a aurora começava a pintar o horizonte, o Rosado sem vontade de mais nada descansa recostado num mourão.
Em todos os cantos da fazenda os animais acordam preparados para o trabalho. A lembrança dos manacás faz distante a colina. Simultaneamente ouvem-se palavras de ordem vindas do curral, do paiol, do galinheiro e do bret. Longas filas se formam em marcha compassada, em coro os animais entoam a mesma canção:
Milho, milho verde, milho milhão
milho maduro, granado cada tostão
na espiga, no balaio, milho milhão,
na terra, no cofre, no bolso do patrão
Outra nuvem escura ameaça cobrir a colina, o Rosado não ainda sabe como perceber aquilo mas escolhe decidir e volta para a sede da fazenda, contorna a varanda e espia mais uma vez. Agora os porcos estão sentados onde estavam antes o fazendeiro e sua esposa. O casal de pé atrás do sofá continua estátua, o medo é a força que os paralisa.
_ O medo paralisa tudo.
O apresentador anuncia os índices elevados da economia na televisão. O apresentador é um lobo engravatado, de olhos vivos e sorriso confiante repete ininterruptamente:
A nova fazenda é modelo. Você sabe fazer a coisa certa. Todos gostariam de ser como você. Atingimos sucesso. A nova fazenda é modelo. O mundo tem olhos para perceber e mãos para servir. Todos querem ser como você, todos querem viver na nova fazenda modelo.
O Rosado percebe o peso da depressão que paira no horizonte como nuvem de chumbo, e segue pela estrada sem olhar para trás. Sozinho.
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Baltazar Gonçalves