Escolhi.

Eu tinha um amigo e aqui espero conseguir contar sua saga. Não, ele definitivamente não foi um herói, tampouco um vilão. Ou melhor, tudo depende do seu ponto de vista. Estou narrando sua vida no trecho mais importante, conforme ele me pediu. Fiquei lisonjeado por se tratar de uma proposta antecipada, mas se ele me confiou, talvez consiga viver com isso, afinal ele, meu amigo Gus, me conhecia muito bem. Isso mesmo, conhecia. 

- Alô, quem fala, por favor? 

- Oi, cara! É o Gus! Desculpa o horário, sei que gosta de acordar tarde, mas entenda, tenho o motivo perfeito! 

- Gus, seu animal... O que quer de mim tão cedo? 

- De você alguns pedaços de atenção... Amigo, decidi morrer! 

Sim, esse era o Gus feliz da vida. Ou da morte, pela morte, sei lá. Nessa manhã, depois desse telefonema ele me levou á loucura até seu fim ensaiado. Nunca quis ajudar ele a fazer isso, seria quase matar, porém em muitos momentos sentia a falta de algo em Gus. Começamos desse trecho mesmo, não pretendo contar toda a vida de Gus, até por que não há necessidade. Ele mesmo poderia comprimir tudo em uma conversa. 

- Gus, por favor, leve a sério meu café da manhã. Como pode me fazer acordar com esse tipo de noticia?

- Desculpe, jamais foi minha intenção te atrapalhar cara, mas preciso de você pra isso, entende? 

- Não sei se começo a rir ou a tomar meu café. E por favor, não estrague a xícara que te servi. Beba. 

- Estou cansado de acordar, tanto que nem sei mais se eu acordo de verdade ou se essa porra toda é um sonho. 

- Ah, ótimo, morrer vai te fazer acordar de verdade. Entendi. 

- Perdoe, mas acho que minha ingenuidade não o fez me levar a sério. Pretendo mesmo morrer, amigo. Pretendo desfalecer, não acordar mais, dar o ultimo suspiro, tanto faz. Apenas preciso disso. 

- Olha, gosto de ti, Gus. E entendo seus recentes dilemas, mas não vejo necessidade. E sinceramente, também não acredito. Acho que se fosse pra morrer de verdade não viria me avisar. Suicida bem resolvido não precisa da confirmação de amigos, não acha? 

- Não quero que me confirme, já decidi. Quero que me ajude em algumas coisas, oras. 

- Cordas, veneno, até arma de fogo, tudo isso um suicida de respeito providenciaria sozinho. 

Não foi fácil receber a notícia. Gus passou a manhã me explicando seus motivos pra me convocar pra liga de suporte aos suicidas. Certo, minha receptividade não foi a melhor, mas eu realmente não o levei a sério. Ou talvez algo em mim não queria pensar nisso de forma séria, transformando as palavras do me amigo suicida em bolinhas de tênis pra eu ficar brincando de rebater. Mas certo, infelizmente o momento do fim do Tae Brake chegou.

- Cheguei nesse mundo há poucas décadas, fiz tudo que nosso padrão social e individual sugeriu. Lembra da nossa brincadeira de ser herói, cara? Lembra? Tínhamos oito, por aí, e eu queria salvar o mundo. Mas em alguns dias tínhamos de trocar, e eu acabava sendo o vilão pra te deixar ser o herói e me derrotar. Por que eu não poderia ser herói pra sempre? 

- Alternância, amigo. Faz parte da vida. 

- Isso mesmo, essa palavra que usou com jocosidade que é a nossa chave. Alternância. Cara, não quero mais alternar, não quero mais viver um terço e dedicar pra outras coisas a maior parte de mim. Mas isso não é um lamento, entende? Só quero que você me leve a sério.

- Gus, você e suas palavras ainda não são coesivas pra mim.  Que ganharia morrendo? 

- O que perderia? Uma vida serviçal? Pessoas dependentes ou estimuladas por mim? Ou se eu estivesse no topo, perderia a droga do topo? Meu amigo, tudo isso seria resumido em duas frases no meu epitáfio. 

- Tua vida é tão ruim assim? 

- Não sei, não tenho outras vidas pra comparar, isso que também me irrita.

- Gus, isso é irracional. E todas as coisas que gosta? E sua carreira, projetos, família? 

- Continuam. Sei que vão acabar me chamando de egoísta mesmo. 

- Vou te chamar é de um puto sem razão. Isso que você é, um puto sem razão. 

- Amigo, quem nunca considerou a morte um dia? Todo mundo tem seu momento suicida. O homem morre de medo da morte, mas mal sabe que dorme abraçado com ela, por isso sonha tanto com a danada da morte, sonha e de manhã acorda fingindo não sonhar, ou diz que é pesadelo, mas quer saber? A morte é um presente... Um prêmio pra quem chega lá, e que de tão especial, não deve ser revelado pra ninguém que não a mereça. 

- E por que justamente você a merece?

- Abrir mão da vida não é fácil, cara. Chamam os suicidas de tolos e conotam a morte de "caminho mais rápido de quem quer fugir", mas em vida ninguém vai saber o quanto a pessoa teve de coragem pra decidir não viver mais. Os que alcançam os ápices são chamados de loucos, veja pela história da humanidade. O que decide por sua própria vida alcança o ápice, o diferente dele é que não pode provar para vivo, que esse por tolice não reconhece como legado a coragem da decisão. Eu não sei se mereço, mas sei o quanto essa decisão mexe comigo, sei o quanto vai ser doloroso me desvincular da minha vida literalmente. Sei que aceitei isso, e mesmo que eu pareça um insano contando suas insanidades, aceitei contente. O máximo do orgulho, daquela que deve ser a maior decisão de todas. 

Ele sabia usar as palavras, não é? Sempre soube. Foi isso que ele falava que me fez pensar, afinal de contas, não tem mal nenhum pensar. Gus havia decidido, ainda que com minha relutância, porém não obstante admiração. Ele falou por dias comigo sobre isso. Falou sobre sua vida, sua família, seus meios de interação e suas conquistas. Ainda assim parecia tudo já tão distante... Começávamos uma conversa, ele me contava o que poderia acontecer com as pessoas qual ele participava na vida, e o ar da conversa era seco, como se houvesse algo em Gus que tirava a vida das coisas com palavras soadas com entusiasmo. E mesmo com esse ar, a conversa era de fato interessante, era viciante falar das variáveis e variantes da vida com a morte, ou a morte com a vida. Incrível como essas conversas sempre levam a um dúbio constante.

- Gus, eu quero morrer sem corpo.

- Oi?? 

- Não quero deixar corpo pra velas e flores, ou o ritual estranho do velório. Gente chorando, segurando velas ao redor do meu corpo vestido num terno barato e com tampões nos orifícios. Meu corpo vai comigo. 

- Oi?? 

- Pára com isso, vê se me entende... 

- Ah, entender que quer morrer com sorriso e pulinhos de alegria não é o bastante pra você? Também tenho que entender que queres levar teu corpo pro submundo... Beleza. 

- Não sei se ficaria em paz com tanto culto com meu corpo. Dá a impressão de ligação com a vida aqui. Quero apenas desaparecer da vida. Da vida minha, da vida sua, da vida de todos. Eu respiro fundo e penso em morte. Não inclui rituais com meu corpo. 

- Ok. Então tenta respirar de novo e pensa em... Nada.

- ... Pensei em pássaros, relva, vento, montanhas...

Gus escolheu. Armamos uma procura por algumas colinas. Pensamos em colinas como do "sonho de morte" do meu amigo, a relva, os pássaros e as montanhas. Algumas colinas na América do Sul poderiam proporcionar a situação. Sabe, eu precisava mesmo viajar e Gus não iria mais viver pra gastar dinheiro, então resolvemos ir. Era engraçado ver Gus interagir com alguns locais que passamos, ele parecia tão radiante e sem vida. Contraditório, mas entenderiam se o vissem. Andamos por algumas cidades e ele interagia com a fauna e flora tranqüilamente, mas com as pessoas era diferente, a atenção parecia diferente, parecia que as outras pessoas eram suicidas e ele voluntário do CVV. Por alguns momentos cheguei até a esquecer do Gus Suicida Simpático e reconhecer o Gus Candidato a Papa. 

- Gus, queridão, ainda podemos comprar passagens de volta. 

- Fique a vontade, cara. Mas só quero que saia daqui depois que eu for. 

- Ainda não entendi minha função de fato. Sou seu escudeiro de morte há tempos... 

- Quero que faça isso sair daqui, amigo. Faça minha decisão tomar vida, mas somente isso. 

E o clima mórbido voltou. Se Gus iria se matar e eu escrever, pra quem seria o fardo principal? Ainda assim aceitei e parecia que havia aceitado há muito tempo. Naquele dia acordamos cedo. Arrumamos algum equipamento, pagamos o hotel e seguimos por uma trilha inóspita e visivelmente fora de uso. Caminhamos em silencio, guardando palavras. A sincronia nos passos, o olhar incerto, e tenho certeza que estávamos sentindo o gosto da pulsação no paladar. O sorriso de Gus não saía de sua boca, olhei tanto pra ele que descobri que não o conhecia, ou estava conhecendo. Tive a sensação de olhar pra alguém totalmente diferente, como se eu estivesse sido enganado o tempo todo de que aquele não era o velho Gus. A brisa da manhã soava, e o céu era tão azul que as nuvens eram pequenas pra não atrapalhar. Subimos a trilha em contorno a uma cordilheira. Lá do alto achamos um espaço descampado. Gus parou, eu deitei no chão. Ele estava de costas e analisou a orla com passos curtos, olhando pra baixo. Se afastou até parar em determinado local.

- Gus...

- Relaxa, amigo. Não vai doer mais que uma vida inteira por aqui. Ou o resto que me sobraria. 

- Eu não sei, eu... 

- Bom, eu sei. Eu sei que te dei uma boa história, né? Te aluguei por um bom tempo e realmente foi providencial na minha vida, mas agora não terei mais vida. 

- É realmente bom o que vai fazer? 

- Talvez não. Morrer pra vida não deve ser bom, mas eu consegui escolher, afinal. Quero que escreva pra eu deixar algo pra vida, não vou ser um ingrato pra ela. Você vai contar pra vida que a felicidade não depende só de um lado, ou que simplesmente a felicidade não seja a meta. Vai dizer pra ela que as dores e as alegrias são tão iguais quando não são olhadas apenas como consequências. Que os padrões não ajustam, eles limitam, e que um erro não merece receber esse nome, que poderia ser chamado de sinônimo de opção. Vai dizer que se olhar de cima pode ver o brio do mundo, a dor, a cor, sentir o cheiro e ouvir as gargalhadas, mas que além dele, onde ninguém pode ver, talvez existam outras coisas pra cada um, e que o que não existe é tolice quando se há opção. São apenas escolhas. 

- Eu dou seu adeus pra mais alguém? 

- Pra qualquer um que escolha me ouvir. 

Gus foi pra sempre. Levou seu corpo, sua mente, seu espirito. Só não me levou. Eu não queria ir mesmo. Pensei em ficar aqui sentando ouvindo essa brisa, ou o chamado Levante. Teve uma coisa que Gus levou de mim, e humildemente agradecerei todo dia por ele ter levado meu medo.