Crise folclórica

 
2Q==



CRISE FOLCLÓRICA

Miguel Carqueija


Com minha fama de advogado de clientes exóticos, acabei sendo procurado por uma turma de representantes do folclore indígena brasileiro. Lá estavam, no meu escritório, o Curupira, o Caipora, o Saci-Pererê, a Cuca e várias outras figuras. Eles estavam dispostos a lutar por seus direitos na mídia, que, segundo afirmavam, estavam sendo preteridos.
— Mas, não tem o Sítio do Pica-pau Amarelo? — lembrei.
— É só isso que tem — respondeu a Cuca, irritada. — E lá eu não faço boa figura...
— O que acontece — observou o Curupira — é que hoje em dia muitos dos seus escritores produzem obras de fantasia, mas preferem o folclore europeu, com dragões e elfos, ou então histórias de extraterrestres e discos voadores. Nós mesmos somos sistematicamente esquecidos pelos próprios brasileiros!
Puxei pela minha memória, para ver se poderia acalmar os ânimos, mas não achei muita coisa:
— Bem, vamos ver... além de Lobato, tem o Thales Andrade, com o indiozinho Itaí...
— Quem se lembra de Thales Andrade? — indagou o Anhangá, de mau humor (que era, aliás, o seu estado habitual) — Fale o que existe na mídia atual: livros, quadrinhos, televisão, filmes.
Eu, por mais que desse tratos à bola, só consegui lembrar das histórias do Roberto Causo, com o Tajarê.
— Uma andorinha não faz verão — sentenciou o Anhangá. — E ele nem se lembrou de mim, que sou o mais assustador de todos no folclore indígena!
Eu não o achava tão assustador assim: parecia-me apenas um morcego velho, feio e mal-cheiroso, pendurado de cabeça para baixo no meu lustre. Mas achei melhor não contrariá-lo, e mudei de assunto:
— E o Boitatá? Ele não deveria estar aqui?
— É claro que não, seu tonto — casquinou o Saci. — Ele jamais caberia numa sala tão pequena!
Respirei fundo, tentando imaginar o que viria a seguir:
— O que vocês querem realmente que eu faça?
— Precisamos estabelecer cotas — sentenciou o Negrinho do Pastoreio. — Assim os autores nacionais vão ter que se lembrar da gente.
— Em todas as mídias? — indaguei.
— É claro! Tevê, cinema, teatro, quadrinhos...
— Não sei, não — falei, brincando com a caneta no mata-borrão da escrivaninha. — Nos livros, tudo bem. Quando a gente chega no audiovisual, a coisa se complica um pouco.
— Ora essa, e por que? — perguntou o Saci, pitando o seu cachimbo fedorento.
— Porque quase todos vocês estão nus — esclareci.
— Ué, e que tem isso?
— O que tem? — circunvaguei o olhar pelo Saci, pelo Caipora, pelo Curupira. — Bem se vê que vocês não entendem os tempos modernos. Para serem mais aceitos na mídia, seria de bom tom começarem a usar roupas...
O Caipora, refastelado nu e com as pernas abertas na minha melhor poltrona (e pode crer, não era um espetáculo extasiante), pareceu escandalizado perante a idéia:
— Usar roupas? Você acha, mesmo, que nós vamos praticar uma imoralidade dessas?
— Na verdade, o Anhangá não precisa — falei, olhando de esguelha para o morcegão. — Mas os que tiverem forma humana...
— Tá falando mesmo sério? — questionou o Curupira.
— Deixa eu explicar uma coisa, meu chapa. Em simples textos, não tem problema. O que pega é na tv, no teatro, no cinema. O pessoal sem roupa não é muito aceito...
Dei uma olhada embaraçada para a chefe das icamiabas, e para minha surpresa ela me deu razão:
— Vocês sabem? Acho que o doutor aqui está certo. Tem muita coisa que a gente pode fazer com o visual, e eu já comecei a ter idéias!
“Com certeza — pensei, olhando o Curupira, o Caipora e o Saci-Pererê — o problema não está só no visual, mas no odoral também. Vou ter que convencê-los a usar um bom desodorante.”
— Então, meu caro? — perguntou o Pedro Malasartes. — Eu, pelo menos, uso roupas. Nos outros a gente pode dar um jeito temporário. Você pode pegar o nosso caso?
Não respondi de imediato. O assunto era delicado e requeria muita prudência.
— Bem... não creio que devêssemos processar a mídia, isso teria desdobramentos imprevisíveis. Se querem a minha opinião, temos que produzir vocês.
— Como? — o Curupira e os demais pareciam admirados.
— Vou falar com um amigo meu que é produtor artístico. Quem sabe a gente arma um espetáculo itinerante com vocês e depois... a coisa pode render...
(E naturalmente eu terei uma comissão para receber...)
E lá se foram eles, satisfeitos, falando em convidar o Ziraldo para tomar parte no espetáculo. As últimas palavras que ouvi foram do Pedro Malasartes tentando convencer o Caipora a usar fraque, bengala e cartola...


imagem: capa do livro "O Saci" de Monteiro Lobato


Tal Saci me pega de jeito, meio contrafeito.Tal Curupira me pega de jeito, meio suspeito.Tal Cuca me pega de jeito, meio desfeito.Tal Anhangá me pega de jeito, meio liquefeito. Tal Caipora me pega de jeito, meio sujeito. Tal Malasartes me pega de jeito, meio perfeito. Tal escrita me pega de jeito, meio desfeito. Mas todos eles sabendo que existem e existirão eternamente na mente daquele que imagina e cria esperança em forma de palavras. Em gratidão pelas apalavrinhações das escritas acima de Miguel Carqueija - "Crise Folclórica"
(interação de Roberta Lessaa)