VISÃO FABULAR

2º COLOCADO, A NÍVEL ESTADUAL, NO CONCURSO DE CONTOS ORGANIZADO PELA ACADEMIA CACHOEIRENSE DE LETRAS.

Era mês de março, época de muitas chuvas e de grandes cheias. Depois de flutuar com o meu filhote grudado no pescoço pelas águas do Rio Zambeze e até mesmo andar pelo seu enorme e profundo leito, favorecido pelos meus mais de quatro mil quilos de massa corpórea, precisei sair pelos arredores para dar uma boa chacoalhada de lama na minha grossa e lisa pele a fim de livrar-me dos costumeiros e insuportáveis parasitos. O banho de lama pode não ser lá muito higiênico, mas nos é bastante confortável. Aliás, eu não sei quem nos colocou o apelido de “cavalos do rio”, já que estamos mais para “porcuspótamos” do que para hipopótamos. Mas como o nome já está consagrado, o que me importa agora é o seu sentido hipocorístico. Sus! Etimologia à parte, vamos voltar ao nosso emporcalhado banho.

Com a família toda reunida no piscinão pantaneiro, deitávamos e rolávamos sem nenhuma cerimônia. Ah, que festa! Aquela meleca de água e terra estava uma delícia! Depois de muitas labreadas, apoiei as minhas curtas e grossas patas no fundo do pântano de forma que a minha enorme cabeça e o meu largo e arredondado focinho pairassem por sobre o lamaçal, deixando que os meus esbugalhados olhos espreitassem em derredor. O cenário era fantástico como sempre: bichos que voam, uns que se arrastam, outros que andam como eu e até uns que vivem pulando de galho em galho. Hip hurra! Oh, natureza sobeja, bendita seja!

Por longas horas permaneci contemplando tudo com a mesma admiração de sempre. Foi quando surgiu - sei lá de onde - o mais esquisito ser que já tive notícia, até mesmo que pudesse imaginar. Santo Deus! Meus miolos tumefizeram-se de repente e provocaram o maior rebuliço dentro da minha gigantesca cachimônia. Olha, fiquei deveras atordoado, abestalhado... senti-me como se fosse um outro hipo: um hipócrita. Acho até que tremi dos pés à cabeça. Ou será que foi só o barro que cedeu ante as minhas portentosas patas? Sei lá! Afinal não sou nenhum covarde. Não arredei os pés do lugar. O fato de estar atolado não teve nada a ver com a minha corajosa decisão. O bicho esquisito também ficou parado, estatelado e mal se mexia. Parecia até que estava vendo um monstro. Monstro? Ora, onde já se viu?! É muita imaginação!

Passei, então, a observá-lo nos mínimos detalhes: cabeça pequena, mal arredondada e focinho para baixo. Isso eu vi logo de cara. Por sobre a cabeça uma coisa arredondada dos lados com uma espécie de cone sobressaído bem no centro. Cá pra nós, uma cabeça maluca à beça. O mais interessante eram os seus olhos. Que coisa horrível! Dois estavam pregados na cara com pelos nas bordas e sobre eles, em forma de meia-lua, mais um punhado de pelos. Sobre esse par de olhos, mais dois outros redondos e transparentes providos de aros e ligados ao pavilhão das orelhas por uma espécie de hastes, tendo ainda no seu centro um cavalete apoiado sobre o seu nariz. Como não sou trouxa, logo, logo deduzi que toda aquela parafernália visual era para ele poder escutar melhor o que vê. Esperteza pura! As duas orelhas estavam colocadas uma em cada lado da cara, e como eram grandes! Em relação às minhas, proporcionalmente aos corpos, eram enormes. Fiquei até na dúvida cruel se era eu que tinha mais corpo do que orelha ou se era ele que tinha mais orelha do que corpo. Confesso que fiquei de orelha em pé.

Assim como eu, ele também tinha quatro patas. Só que as dele, apenas duas pisavam no chão, enquanto as outras ficavam dependuradas abaixo do seu pescoço. As duas patas do chão eram compridas e estreitas e cobertas por um couro. As patas penduradas eram pequenas e largas com cinco garras em cada uma. Olhando-as mais detidamente, lembrei-me de outro bicho mais ou menos semelhante, só que todo peludo, barulhento e que vive pulando pelas árvores. Não, na verdade um não tem nada a ver com o outro. O bicho pula-pula não é tão esquisito assim. Comparar um com o outro é o mesmo que dizer que eu pareço com um cavalo. É muita burrice numa só.

E o ser estranho continuava ali estático. E eu também. Pelo seu corpo nenhum pelo, mas um couro muito estranho que até tremulava ao vento, principalmente da cintura para cima. Tinha cores estranhas e bem delineadas que mais pareciam desenhos. O couro do tórax era independente das patas inferiores, que mais me lembravam palafitas. Pasmem! O equilíbrio daquele ser sobre aquelas duas varetas era mesmo muito impressionante.

Susto enorme eu levei foi quando ele moveu lentamente as patas superiores para agarrar um objeto meio arredondado que havia dentro de uma espécie de bolsa do lado esquerdo do seu tórax. Pensei: “Que marsupial mais escalafobético!” Quando ele começou a tirar um troço estranho lá de dentro, pus-me logo em posição de defesa. Ergui as orelhinhas e esbodeguei os olhos. Assim que ele levou aquele troço nos seus olhos e mirou em nossa direção, imediatamente me lembrei de algumas histórias contadas por nossos antepassados de que havia seres que apreciavam a nossa carne, que os guerreiros tiravam o nosso couro espesso para lhes servir de escudo e que os nossos dentes eram extraídos por caçadores e vendidos como marfim. Arrepiei todo! Daí não pensei mais, estiquei as mandíbulas até onde deu e lasquei um rotundo grunhido, esperando que ele entendesse, pelo menos, de hipomancia. Do objeto estranho escutei só um clique, mas do ser esquisito eu pude ouvir, meio estrovinhado, foi um escabroso e estrepitante urro, mais ou menos assim: “Só Corro! Só Corro”! E não é que o desengonçado ser correu mesmo! Saiu a toda a brida, numa disparada que só vento. Eu bem que podia ter ido atrás dele, pois, apesar do meu avultado peso, eu ainda sou bem veloz. Mas deixei pra lá.

Agora para encerrar de vez o papo, sabem aquela coisa arredondada que ele portava na cabeça? Pois é, na correria ela desprendeu-se dele e saiu voando desordenadamente até o chão. Curioso que sou, fui até lá para ver. Na batata! Pelo formato da coisa, percebi, de vereda, que se tratava de um mini-disco-voador. Ufa, ufa, ufo! Só podia ser! Porém, só uma coisinha me deixa encafifado até hoje: como é que pode uma nave ser menor do que o seu cosmonauta a ponto de só conter o seu cocuruto? Estranho, né? E, ainda, por que ele, naquela hora, resolveu correr e não voar? Creio que só a ciência infusa pode explicar. No mais, que me importa?! Além de não querer ser um hipogrifo, também não me ufano por ufologia nenhuma.

A provável hipotipose que esta narrativa causou ao leitor, foi a mesma vivida “in loco” pelo desavisado turista que, com toda certeza, nunca mais vai querer fotografar um hipopótamo de tão perto em seu habitat. Aprendeu, talvez por hipótese heurística, que, no mundo animal, a estesia de um, muitas vezes, leva à sinestesia de outro no intrico conflito de interesses ou de soberania. Moral da história: Todo coscuvilheiro que se preza, tem por propensão o criterioso hábito de sempre “pôr as barbas de molho”. Quando não, macaquice à parte, adota para si o adágio que sentencia: “Macaco velho não mete a mão em cumbuca!” Logo, numa espécie de instinto territorialista, reconhece que cada macaco no seu galho também contribui com sobejidão para o exercício constante da política instituída como ecologicamente correta.

Genilton Vaillant de Sá
Enviado por Genilton Vaillant de Sá em 02/12/2014
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