809-ONDE COME UM COMEM CEM - Série da Vovó Bia

A noite em que os ciganos pernoitaram sob a enorme paineira próxima à sede da Fazenda Palmital tornou-se inesquecível para Doralice, Otávio e Carlos, netos de vovó Bia. Eles ficaram agitados, perguntando sobre ciganos, só foram para seus quartos depois de tomarem um chá de erva-cidreira preparado pela mãe.

Durante o dia seguinte, eles não cansavam de fazer perguntas sobre os ciganos. Ao entardecer, após o jantar, Dorinha não se conteve e disse:

— Vovó, a senhora sabe de histórias de ciganos? Conta uma pra nós!

Vovó Bia, conhecia, sim, histórias de ciganos. Histórias não apropriadas para crianças, pois a má fama deles corria o mundo e era antiga.

— Vou contar-lhes uma história, mas é a propósito da comida que sua mãe deu pra eles.

— Como chama essa história?

— ONDE COME UM, COMEM CEM.

— Oba! - Disseram os três ao mesmo tempo.

Vovó se preparou, ajeitando-se na cadeira. Colocou o tricô sobre a mesinha e alisando a saia sobre as pernas, começou:

Foi uma vez, quando andava pelo mundo um Mestre, homem sábio e filósofo, acompanhado de seus discípulos. Não tinham barracas, nem colchões, nem nada. Quando a noite chegava, sempre encontravam uma família caridosa que lhes davam o que comer e lhes oferecia lugar para passarem a noite.

Certa ocasião atravessava o Mestre e os seus discípulos uma região árida, um deserto, quando viram ao longe um oásis.

— Oásis? – indagou Carlinhos.

— Sim, o oásis. É um local refrescante no meio das dunas de areia. Geralmente, tem uma mina d´água, e ao seu redor crescem árvores do deserto, principalmente palmeiras. Nos oásis moram apenas algumas pessoas que vivem pobremente.

O Mestre e os seguidores caminharam até o oásis. Era um oásis de tamareiras, que produzem tâmara, fruto doce, muito gostoso. É quase que a única alimentação de quem vive lá. Naquele oásis só havia uma choupana feita de palmas e troncos de tamareiras. Parecia até inabitado, mas um casal de idosos ali vivia.

O grupo de peregrinos poderia se espalhar pelo pequeno bosque de tamareiras e comer o que pudessem. Mas, não. O Mestre preferiu chegar à porta do barraco humilde e pedir ao casal de velhinhos que lá estava:

— Meu bondoso velhinho, posso comer algumas tâmaras do oásis? E tomar um pouco da água da mina que vejo acolá?

O velho, olhando para a mulher, disse:

— Sim, mas não é preciso ir até as tamareiras. Temos aqui uma vasilha com tâmaras já preparadas, estão suaves o néctar das flores. Temos uma pequena taça de mel que lhe ofereço. E beba da água do pote, é mais fresca do que a mina.

Antes de pegar uma tâmara, o Mestre disse:

— Tenho alguns amigos que me acompanham. Posso chamá-los para participarem desta refeição?

O velho olhou para a esposa, e ambos cochicharam entre si. O velho voltou e disse ao Mestre:

— Só temos aqui estas tâmaras, esta taça de mel e este pequeno pote de água. Mas, sim, manda seus amigos entrarem. Eu mesmo vou colher mais tâmaras, e trarei mais água.

O Mestre então disse:

— Aqui, onde come um, comem cem. Não precisa colher mais tâmaras nem buscar mais água, nem se preocupar com o mel. O que temos aqui é suficiente. – Disse o Mestre, fazendo um gesto com a mão direita, sobre o prato, a taça e o pote.

E chamou os discípulos, que se sentaram no chão, pelos cantos da humilde choupana. E repetiu:

— Aqui, onde come um, comem cem.

Em seguida, passou o prato de tâmaras, a taça de mel e o pote d’água entre os discípulos. Cada qual comeu o quanto quis e se fartou bebendo do pote.

O velho e sua mulher ficaram surpresos ao verem que o prato de tâmaras não se esvaziava. O mesmo acontecia com a tacinha de mel e com a bilha com água. Assim, eles também participaram da refeição e comeram como há tempo não o faziam. Quando terminaram, o prato tinha mais tâmaras, a taça estava plena de mel até a borda e o pote d’água estava cheio até o bico.

Os dois velhinhos estavam assustados, pois sabiam, na sua simplicidade, que haviam presenciado um milagre. Sentiam que estavam na presença de um homem muito especial. Ainda assim, ela falou com o Mestre:

— Aqui não há lugar para todos dormirem. Mas meu marido irá cortar mais folhas das tamareiras e prepararei o local para todos.

O Mestre aceitou. E embora os três minúsculos cômodos do barraco fossem suficientes só para o casal, neles dormiram o Mestre e os doze seguidores.

No dia seguinte, antes de amanhecer, o Mestre se pôs de pé e acordou os seus seguidores. Os velhinhos também acordaram. A anciã não queria que eles partissem, e disse ao Mestre:

— Fique conosco mais algum tempo.

Ele respondeu:

— Devemos seguir nosso caminho. Agradeço a vocês dois e os abençoo. Lembrem-se de que aqui, onde come um, comem cem.

E seguiram.

A partir daquela visita, os velhinhos notaram que a cada dia que passava, as tamareiras se multiplicavam, aumentando o tamanho do oásis, produzindo mais e mais tâmaras. As abelhas vinham fazer suas colméias nas proximidades do barraco; e a fonte, cada vez mais, jorrava água límpida e refrescante.

Não demorou muito tempo e o oásis ficou conhecido dos caravaneiros que por ali passavam como o Oásis da Abundância.

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As crianças escutavam atentas, os olhos fixos na figura da vóvó Bia, a maior contadora de história do mundo. Dorinha foi quem interrompeu o silêncio:

— Vovó, esse Mestre era Jesus?

— Sim, pode ser. Não está nos Evangelhos mas... quem sabe?

Sem a resposta definitiva, as crianças obedeceram aos mandados dos pais e foram para seus quartos.

— Benção, vovó, vovô, papai, mamãe. – Disseram em coro.

— Deus os abençoe. – Eles responderam.

O silêncio da noite estendeu seu manto sobre a casa-grande da Fazenda Palmital.

ANTÔNIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 30 de outubro de 2013

(comemorando 55 anos do casamento Tony e Enny- 1958)

Conto # 809 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 22/05/2015
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