APOLLINAIRE E O LEÃO
 
 
Em 1911, Guillaume de Apollinaire tinha acabado de publicar As façanhas de um jovem Dom Juan. Como se sabe o livrinho, uma pequena novela, causou o maior bafafá, os críticos severos não acharam "apropriado" nem "aceitável" que se escrevesse sobre "aquilo" e "daquela maneira". Ainda que essas coisas narradas pudessem de fato acontecer. Aquilo tudo muito o enfastiou, espantalhava-lhe tanta má-fé ou incapacidade de leitura. Se é que ele foi lido. Foi tanta a canseira, que resolveu viajar, resolveu ir até a África para espairecer. Consultou seu amigo Santos-Dumont se a máquina que tinha acabado de inventar era capaz de fazer uma viagem até Camarões. Recebeu uma resposta negativa. Foi até o Havre e tomou um navio que o levou até Douala, de onde seguiu aos trancos e barrancos até Youndé. Montou uma pequena equipe e se perdeu pelos Camarões afora. Foi até o Pangeré-Djerém, mais ao norte. Certo dia andava pela savana, sozinho, portando um arma e fumando um charuto. Perto de uma pequena floresta, deparou-se com um imenso e vistoso leão. Muito diverso daquele que tinha encontrado o Tartarin, lá de Tarascón, conforme lhe havia lhe contado na adolescência Alphonse Daudet, já à beira da morte. Então se deparou com o dito leão. Ficou catatônico, não dava prazo de pegar a arma, nem de correr. Melhor seria fingir de morto. Mas leão come bicho é morto mesmo. E pelo que sabia esses felinos não sabiam muito de arte dramática, apesar da muita tragédia que ocasionavam. Aliás leão só faz isso, pois quem pega e mata é a leoa. Viu que o leão lhe olhava de um jeito esquisito, pareceu-lhe uma mistura de indignação e reprovação. E o leão continuou parado, deitado na relva seca, e o secando com os olhos. "Qual é a desse leão? Não vai me atacar?", pensou Apollinaire. Então o leão atacou! Não com os dentes, sim com a língua felina que tinha. Felina e ferina, diga-se de passagem. Então o leão lhe disse... Sim o leão falava. A fera tinha afirmado ao próprio Apolinaire que a culpa era dos gregos. Que foi Esopo quem lhes desenvolveu essas habilidades, só evitavam fazê-las para não atrair ainda mais a atenção dos pretensiosos e altivos seres humanos.
_ Então é aqui que veio se esconder...
_ O quê?
_ É isso mesmo, sou eu quem está falando. Aqui todo mundo sabe da sua história. Não se fala de outra coisa na grande savana, desde o Sahel até o Kalahari, de Douala até Mombaça. Ninguém fala em outra coisa nas colônias francófilas, é o assunto do momento. "Preferia que ele me comesse", pensou Apollinaire. Então disse:
_ Eu não acredito!
_ Pode acreditar - nisso ele balançou de forma arrogante a imensa juba - aqui somos selvagens mas não somos ignorantes. Essa notícias correrm, voam, andam de barco e acompanham os safáris. Ninguém sabe ler mas todo tem ouvidos e língua. Ficamos sabendo do que você disse em seu livreto desavergonhado, aquele do Dom Juan. Aquilo é completamente inapropriado! Inaceitáaavel! Não podia ser dito.
_ Mas você leu o livro?
_ É claro que não, não perderia meu tempo com aquelas indecências. Além do mais sou analfabeto. Ainda que não o fosse desaprovo tudo que está ali está.
Disse o leão, que era um baita hipócrita. Seu modo de vida pouco "apropriado" era tido e sabido em toda a África. E agora começava a ser conhecido até na Europa e na América. Aquilo que era má fama para o leão era fonte de reputação e prestígio. Então retrucou Apollinaire:
_ Logo o senhor me vem com uma desses! Bem sei que faz tudo que é inapropriado e inaceitável... Sei como vive com as leoas de todas idades e até suas parentes. Reprova o que eu falo ou escrevo e faz bem pior...
_ Ô humano! Fique em seu lugar! Faço sim, não nego. Mas não fico falando e escrevendo por aí. Fazendo apologia da indecência para a juventude. Pare de falar!
Apollinaire entendeu tudo. Pode fazer, mas não pode dizer. Veja o que o Leopoldo da Bélgica faz, mas fica calado e ninguém o reprova. Parece que a literatura deve falar de uma castidade que não existe. Produzir conforto e acomodação em ouvidos hipócritas. Além do mais ficava a impressão de que o que não era falado ou escrito não existesse. A hipocrisia não escolhe lugar. Nessas circunstâncias era melhor se situar na hipocrisia confortável de Paris, espalhada nos arejados espaços desenhados por Haussman. Sim, iria voltar para Paris, para espairecer. Enquanto pensava essas coisas olhava o leão distanciar, que se infiltrava pela relva da savana balançando sua hipócrita bunda gorda, pois bem sabia que suas leoas já deviam ter abatido um tenro gnu. Cheio daquela confiança de quem acredita que tudo pode ser feito, mas pouco pode ser dito ou escrito. O mundo anda, mas a literatura deve ficar parada.